"Não Era Aqui Que Eu Deveria Estar"**
No bairro tranquilo de Kichijoji, entre o som das cigarras e o ritmo constante dos passos apressados, Yuki caminava pelas ruas, o vento suave bagunçando os fios de cabelo que escapavam de sua franja. A cidade, com seus cafés escondidos e lojas pequenas, sempre a fazia sentir-se como se estivesse em um lugar suspenso no tempo. Mas hoje, algo estava diferente. A sensação de desconforto, um peso inexplicável sobre seus ombros, acompanhava cada passo que ela dava, e o pensamento, como uma sombra persistente, não saía de sua mente: **"não era aqui que eu deveria estar."**
Yuki tinha 27 anos e era bibliotecária. Sua vida era simples, mas cuidadosamente organizada. Ela adorava o cheiro de livros envelhecidos e a tranquilidade de seu trabalho, onde se refugiava do mundo agitado. Contudo, algo dentro dela sentia que aquele trabalho, aquela cidade, aquele bairro… nada fazia sentido de verdade. Sempre havia uma sensação de deslocamento, como se ela estivesse jogada em um enredo que não era seu. Como se, de alguma maneira, tivesse chegado a um ponto de sua vida sem nem saber como ou por que.
Naquele dia, ela estava a caminho da casa de Haruto, seu amigo de infância. Os dois se conheciam desde a escola primária, e sempre havia sido fácil falar com ele. Haruto era o tipo de pessoa que entendia quando ninguém mais entendia, mas, ao mesmo tempo, ele tinha sua própria angústia silenciosa. Ele morava em um pequeno apartamento no centro de Tóquio, longe da pequena cidade onde ambos cresceram. Ele sempre dizia que a vida na cidade grande era um reflexo de seus próprios pensamentos dispersos e, como um espelho distorcido, ele tentava encontrar seu caminho ali.
Ao chegar ao apartamento dele, Yuki foi recebida por um Haruto um pouco mais fechado que o habitual. Seus olhos, normalmente tão vivos e curiosos, estavam opacos, como se houvesse algo que ele não queria compartilhar.
— Oi, Yuki… — ele disse, seu sorriso forçado. — Sente-se.
Yuki sentou-se no sofá, tentando entender a atmosfera tensa, mas algo a fez hesitar. Havia uma sensação estranha, uma vibração no ar, como se as palavras de Haruto não se conectassem com aquilo que ele realmente queria dizer.
— Como vai? — perguntou Yuki, tentando quebrar o silêncio. — Tudo bem por aqui?
Haruto suspirou, olhando para a janela, onde as luzes da cidade brilhavam à distância, distantes e indiferentes. Ele parecia como sempre, mas, ao mesmo tempo, totalmente diferente.
— Eu… Eu não sei, Yuki. Eu só… sinto que não deveria estar aqui. Não deveria estar em Tóquio. Não sei por que estou aqui. Não sei o que fazer. Eu... — ele fez uma pausa, como se procurasse as palavras, mas nada vinha.
Aquelas palavras atingiram Yuki como um soco. Ela sabia exatamente o que ele queria dizer, porque ela sentia o mesmo. Algo estava errado, mas não sabia como mudar. Era como se ambos estivessem presos em um ciclo que não podiam interromper.
— Eu entendo, Haruto… — Yuki disse, sua voz suave. — Eu também… sinto que estou no lugar errado. Que minha vida não faz sentido. Como se estivesse sempre buscando algo que nunca encontrei.
Haruto olhou para ela com um olhar intenso, um olhar que parecia procurar uma resposta que nem ele sabia se existia.
— Mas como podemos sair disso? Como podemos escapar de algo que nem sabemos o que é?
O silêncio se instalou entre eles, denso e pesado. O som da cidade lá fora parecia se distorcer, como se tudo ao redor fosse um reflexo de sua confusão interna.
Yuki olhou para os seus pés, pensando em como sua vida havia se desviado ao longo dos anos. A pressão que ela sentia não era física, mas emocional. Estava presa em um lugar que não tinha raízes, um lugar que ela nunca escolheu, mas de alguma forma chegou ali.
— Talvez… — Yuki começou, hesitando. — Talvez nós precisemos parar de procurar. Talvez a gente só precise… deixar acontecer.
Haruto a olhou, seus olhos cheios de incerteza. Ele queria acreditar, mas o medo, aquele medo de não saber o que fazer, o que viria a seguir, ainda o dominava.
O som da porta de entrada foi ouvido e Yuki se virou rapidamente. Era uma batida rápida, seguida da abertura da porta.
— Haruto? — Uma voz suave, doce, fez os dois se virarem.
Era Sayuri, a ex-namorada de Haruto. Ela ainda tinha os olhos brilhantes e o sorriso encantador que conquistou Haruto anos atrás, mas agora, havia algo em seu olhar que os fazia perguntar: *qual era o seu lugar no meio dessa confusão?*
Yuki olhou para ela, então para Haruto, e algo mais se formou dentro dela. Talvez não fosse a cidade. Talvez não fosse o trabalho. Talvez o que faltasse fosse algo mais íntimo, algo que ela ainda não conseguia entender.
— Não era aqui que eu deveria estar… — pensou Yuki em silêncio, mas dessa vez, ao olhar para Haruto e Sayuri, ela não sabia se aquela frase era apenas uma reflexão ou se algo novo estava prestes a acontecer.
Haruto se levantou rapidamente ao ver Sayuri, uma expressão de surpresa misturada com algo que Yuki não conseguiu identificar. Era como se ele tivesse sido arrancado de um pensamento profundo, algo que ele não queria compartilhar. Sayuri, com um sorriso tímido, olhou para Yuki, como se tentasse medir o clima da sala.
— Ah, Yuki… você está aqui. Não sabia que você viria. — disse Sayuri, sua voz suave, mas com um tom carregado de algo não dito. Talvez uma culpa, ou uma ansiedade que Yuki não conseguia decifrar.
Yuki sorriu, mas era um sorriso sem vida, sem calor, como se o espaço entre ela e Sayuri estivesse tão grande quanto o oceano que separa duas almas que já foram próximas, mas que se distanciaram com o tempo. Ela se levantou e, de forma quase automática, cumprimentou Sayuri com um aceno de cabeça.
— Eu só… eu só precisava de um tempo, Sayuri. Não me importo. — respondeu Yuki, sentindo uma leve irritação, mas tentando manter a calma. O clima agora estava denso, e ela sentia a tensão crescer.
Haruto, desconfortável, olhou para as duas mulheres, como se estivesse preso entre elas, mas ao mesmo tempo, incapaz de tomar qualquer decisão. A situação estava fora de controle, e ele sabia disso.
— Sayuri… Eu… não esperava que você aparecesse aqui — disse ele, a voz mais baixa, quase como se tentasse esconder algo.
Sayuri olhou para Haruto com um sorriso triste, como se estivesse pedindo desculpas, mas sem dizer uma palavra. Ela sabia que sua presença complicaria ainda mais as coisas, mas não conseguia se afastar. Havia algo ali, entre eles, que parecia não ter sido resolvido.
Yuki sentou-se novamente no sofá, sentindo-se como uma espectadora da vida de ambos. A sensação de estar fora de lugar, de não pertencer a aquele cenário, era cada vez mais forte. Mas, ao mesmo tempo, ela sentia que tudo isso fazia parte de algo maior. Algo que ela não conseguia compreender, mas que, talvez, estivesse esperando por ela.
— Não sei o que fazer, Yuki. — Haruto quebrou o silêncio, finalmente se sentando novamente. Seu olhar estava vazio, mas ao mesmo tempo, parecia pedir ajuda. — Eu sempre fui bom em fugir de tudo, mas agora… agora não consigo mais. Não sei mais para onde ir.
Yuki olhou para ele, sem saber como responder. Ela não tinha respostas para si mesma, quanto mais para ele. Mas algo dentro dela dizia que eles não estavam sozinhos naquela sensação de perda, de vazio. Todos estavam tentando encontrar um caminho que, de algum modo, parecia sempre escapar de suas mãos.
— Talvez não precise saber para onde ir, Haruto — Yuki disse, tentando soar mais tranquila do que realmente se sentia. — Talvez o mais importante seja parar de buscar tanto e simplesmente ser.
Sayuri, que até então permanecia em silêncio, olhou para Yuki com uma expressão que quase parecia surpresa. Ela conhecia Yuki há muito tempo e sabia como ela evitava as perguntas mais profundas. Mas, naquele momento, Yuki parecia diferente. Algo havia mudado nela, como se as palavras não fossem mais um refúgio, mas sim um reflexo de sua própria busca por algo que, ela sabia, estava além de suas mãos.
— Yuki… você realmente acha que é isso que precisamos fazer? — Sayuri perguntou, seus olhos agora mais atentos. — Parar de procurar? Eu… não sei. Eu tentei fazer isso, mas sempre me sinto perdida.
Yuki fechou os olhos por um momento, permitindo que o silêncio se instalasse novamente. As palavras de Sayuri ressoaram em sua mente, e ela se perguntou se realmente existia uma solução para aquele sentimento constante de deslocamento.
— Eu não sei, Sayuri. Eu não tenho todas as respostas. Mas talvez… talvez não se trate de encontrar o lugar certo, mas de aceitar que esse lugar está em constante mudança. Talvez nossa busca seja apenas um reflexo da nossa incapacidade de aceitar o que somos e o que estamos vivendo agora. — Yuki falou, e as palavras, embora simples, pareciam carregar uma verdade maior.
Haruto olhou para Yuki, como se estivesse começando a compreender algo. Ele nunca tinha pensado dessa maneira antes. Sempre pensara que havia um lugar certo, um caminho claro a seguir. Mas e se, na verdade, o caminho fosse construir algo novo onde estavam, em vez de buscar algo distante?
Sayuri, que até então parecia mais confusa, agora parecia pensativa. Talvez Yuki tivesse tocado em algo que ela ainda não conseguia entender, mas que, em algum nível, ela sentia.
O silêncio se instalou novamente, mais pesado agora. As três pessoas estavam ali, no mesmo lugar, mas ao mesmo tempo, cada uma presa em sua própria busca, seus próprios dilemas. Yuki sentia que algo estava prestes a mudar, mas não sabia o quê. Algo dentro dela sabia que aquela conversa era apenas o começo de uma transformação que não poderia ser prevista.
As horas passaram, e a conversa, embora lenta e cheia de pausas, fez com que todos eles se vissem sob uma nova luz. Eles não sabiam para onde estavam indo, mas, pela primeira vez, parecia que estavam prontos para simplesmente caminhar, sem a necessidade de um destino fixo.
A madrugada avançava lentamente, e a luz suave da lua entrava pelas janelas do apartamento de Haruto, refletindo nas pequenas partículas de poeira que dançavam ao vento. O silêncio parecia envolver todos os três de maneira confortável agora, uma calmaria que contrastava com a agitação interna de cada um.
Yuki, ainda sentada no sofá, observava Haruto e Sayuri com uma sensação de inquietação crescente. Eles não estavam mais tão distantes, mas a tensão entre os três ainda estava presente, como uma nuvem que não se dissipava. Ela não sabia o que exatamente tinha mudado naquela noite, mas algo em sua alma parecia ter se rearranjado, como se houvesse aberto uma porta para um novo entendimento — não sobre o futuro, mas sobre o presente.
— Você não me contou o que aconteceu entre você e Sayuri — Yuki disse, quebrando o silêncio, sua voz suave, mas firme. O olhar que ela lançou a Haruto foi curioso, mas também cuidadoso. Ela sabia que ele não gostava de falar sobre isso, mas havia algo ali, algo não resolvido que ainda pairava sobre os três. — O que aconteceu? Por que você se afastou dela?
Haruto olhou para o chão por um momento, como se as palavras o tivessem pegado de surpresa. Ele não estava preparado para falar sobre isso, mas Yuki tinha o poder de fazer as perguntas certas no momento exato, quando ninguém mais se atrevia.
— Eu… eu não sei, Yuki. — ele começou, com a voz arrastada, como se o peso da lembrança fosse difícil de suportar. — Quando Sayuri e eu nos conhecemos, foi… simples. Era fácil. Eu era um garoto perdido, e ela era a luz que eu precisava. Mas, com o tempo, as coisas mudaram. Eu comecei a sentir que não estava sendo honesto comigo mesmo. Eu queria algo mais, algo diferente, mas ao mesmo tempo, não sabia o que era. Eu… eu a magoei, e por isso… nos afastamos.
Sayuri, que até então havia permanecido quieta, agora olhava para Haruto, seu rosto suavizado pela melancolia. Ela respirou fundo antes de falar.
— Não, Haruto. Eu também não fui perfeita. Eu pensei que conseguiria consertar tudo, que teria as respostas para nós dois. Mas, no fim, percebi que, em algum lugar, nós dois nos perdemos. Eu… eu nunca soube como lidar com os meus próprios medos, e acho que, de alguma forma, eles acabaram nos afastando. Eu me apaixonei por uma ideia, não pela realidade. E talvez isso tenha sido o mais difícil de aceitar.
A voz de Sayuri era frágil, mas havia uma força sutil em suas palavras. Yuki observava, silenciosa, percebendo a complexidade daquela relação. Era como um quebra-cabeça que, mesmo depois de tanto tempo, ainda não se encaixava completamente.
Ela sentiu um impulso de entender mais, de perguntar algo que talvez fosse difícil para todos, mas algo que precisavam saber. Algo que poderia ser o primeiro passo para finalmente encontrar um sentido para tudo o que estavam vivenciando.
— Então, o que vocês vão fazer agora? — Yuki perguntou, com um olhar que, mais do que curioso, era sincero, como se ela estivesse disposta a ouvir sem julgamentos. — Vocês ainda têm algo para construir juntos ou… já é tarde demais?
A pergunta ficou no ar, como uma espada suspensa, e os dois ficaram em silêncio por um momento. Haruto olhou para Sayuri com uma expressão vaga, como se não soubesse o que responder. Era uma questão difícil, porque a resposta não estava apenas no passado, mas no que eles sentiam naquele instante, no que estavam dispostos a fazer.
Sayuri foi a primeira a quebrar o silêncio.
— Eu não sei, Yuki. Eu não sei se podemos voltar ao que éramos antes. Mas, talvez, seja hora de olhar para frente, em vez de ficar olhando para trás. Talvez ainda haja algo aqui, mas eu não sei o que é. Eu… estou tentando entender.
Haruto assentiu lentamente, como se o entendimento estivesse começando a se formar em sua mente, mas ainda não estivesse completamente claro.
— Eu… eu também não sei. — ele disse, finalmente. — Mas talvez a gente precise dar o primeiro passo, sem saber para onde estamos indo. Talvez o que importa seja simplesmente caminhar, mesmo sem ter todas as respostas.
O ar parecia mais leve agora, como se, de algum modo, uma parte da barreira invisível que os separava tivesse sido removida. Não havia mais o peso das expectativas, nem as perguntas não respondidas. Havia, finalmente, um espaço para o silêncio confortável, para o entendimento implícito de que, por mais que ainda não soubessem o que o futuro traria, estavam dispostos a continuar.
Mas Yuki não pôde deixar de sentir que o peso da sua própria busca também estava ali. Ela sabia que não podia mais ignorar o que estava acontecendo dentro de si mesma. O pensamento de "não era aqui que eu deveria estar" ainda pairava em sua mente, mas agora, talvez, ela começasse a entender que não se tratava do lugar físico. Talvez fosse mais sobre onde ela estava emocionalmente, sobre como ela se sentia consigo mesma. E isso, de alguma maneira, a libertava.
— E eu? — Yuki falou, mais para si mesma do que para os outros, mas seus olhos encontraram os de Haruto e Sayuri. — E eu, onde é que eu me encaixo em tudo isso? Onde é que eu me encaixo… na minha própria vida?
A pergunta era silenciosa, mas carregada de um significado profundo. Ela não esperava uma resposta imediata, mas o som da sua própria voz parecia lançar um desafio para o futuro.
Os três ficaram ali, sentindo o peso daquilo tudo, sabendo que as respostas não viriam facilmente. Mas, ao mesmo tempo, havia algo libertador na busca por essas respostas. Algo que os unia, ainda que de maneiras diferentes, na jornada que todos estavam prestes a trilhar.
E, naquela noite, no apartamento simples de Haruto, o futuro parecia um horizonte aberto, cheio de possibilidades, mas sem pressa de ser desvendado.
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