Aeroporto Internacional de Incheon
O zumbido baixo e constante de vozes em diversas línguas, misturado ao som suave de anúncios em coreano, envolveu Imani assim que ela passou pelas portas de desembarque. O Aeroporto Internacional de Incheon era um organismo vivo, pulsante de energia e movimento. Ela respirou fundo, o ar levemente perfumado com o aroma indistinto de limpeza e café distante. Um sorriso hesitante curvou seus lábios. Finalmente, estava aqui. Seul.
Enquanto seguia o fluxo de passageiros em direção ao controle de passaportes, Imani sentiu um nó no estômago, uma mistura de excitação palpável e uma pontada de nervosismo. Era a primeira vez que pisava na Coreia do Sul, a terra que sua avó tanto amava e de onde havia partido há décadas. Imani carregava consigo as histórias da avó, fragmentos de um passado distante, sussurros sobre paisagens exuberantes e a melodia doce da língua coreana. Agora, estava aqui para vivenciar tudo por si mesma, para encontrar suas próprias raízes em meio a este turbilhão moderno.
Na fila, observou ao redor. Rostos diversos, expressões cansadas de longas viagens, mas também olhos curiosos e animados como os seus. A modernidade do aeroporto a impressionava: linhas limpas, painéis digitais reluzentes, e a eficiência silenciosa de tudo funcionando em perfeita sincronia. Contrastava com as imagens mentais que construíra da Coreia, baseadas nas fotos antigas e nos relatos da avó – casas tradicionais de madeira, campos de chá verde ondulantes, vestimentas coloridas. Sabia que Seul era uma metrópole vibrante, mas a realidade da escala tecnológica e da urbanização ainda a surpreendia.
Ao chegar ao balcão de imigração, entregou seu passaporte com um sorriso gentil para o oficial. A troca foi rápida, eficiente, um breve intercâmbio de formalidades com um toque de cordialidade coreana. Com o passaporte carimbado e um “Bem-vinda à Coreia” em inglês, Imani oficialmente pisou em solo coreano. Uma onda de calor preencheu seu peito. Era real. Ela realmente estava aqui.
Já dentro do táxi laranja vibrante, Imani colou o rosto na janela, absorvendo a paisagem que se desenrolava. Deixando para trás a organização impessoal do aeroporto, Seul a abraçou com um caos organizado e fascinante. Arranha-céus de vidro e aço cortavam o céu, contrastando com telhados curvos de templos discretos que surgiam entre os edifícios modernos. Letreiros em coreano e inglês competiam por atenção, cores vibrantes e caracteres elegantes dançando diante de seus olhos. O trânsito pulsava com energia, um rio constante de carros em tons metálicos e motocicletas ágeis serpenteando entre eles.
O taxista, um senhor de rosto amigável e uniforme impecável, ligou o rádio em uma estação de K-Pop. A melodia energética e as vozes agudas preencheram o carro, um ritmo contagiante que parecia vibrar com a própria cidade. Imani não entendia a letra, mas a música a envolveu, uma trilha sonora instantânea para sua chegada.
Enquanto o táxi avançava, a arquitetura mudava constantemente. Ruas largas e modernas davam lugar a vielas estreitas e sinuosas, ladeadas por casas mais antigas, algumas com fachadas desgastadas pelo tempo, outras meticulosamente restauradas. Em meio ao concreto e ao aço, a natureza persistia: árvores de ginkgo imponentes alinhavam avenidas, e pequenos jardins secretos espreitavam entre os edifícios. Imani capturou vislumbres de vida cotidiana: pessoas apressadas nas calçadas, vendedores de rua preparando comida em carrinhos fumegantes, e casais de mãos dadas passeando despreocupadamente.
A paleta de cores de Seul também a surpreendeu. Não era apenas o cinza urbano que esperava, mas um caleidoscópio de tons vibrantes: o vermelho intenso dos telhados de templos, o verde exuberante das árvores, o amarelo berrante dos táxis, e o azul profundo do céu, que se espreitava entre os arranha-céus. Era uma cidade que pulsava com vida e cor, uma sinfonia visual que a hipnotizava.
O táxi parou em frente a um portão de madeira escura, adornado com lanternas de papel delicadas. O taxista apontou para a casa atrás do portão, um hanok encantador com telhado curvo e paredes de madeira clara. Era a casa de hóspedes “Lua Cheia”, onde Imani reservara sua estadia.
Ao passar pelo portão, Imani entrou em um pátio interno tranquilo, um oásis de calma no meio da cidade agitada. Pequenos arbustos e flores coloridas adornavam o jardim, e o som suave de uma fonte d’água preenchia o ar. Uma senhora de meia-idade, com um sorriso caloroso que iluminava seu rosto, saiu da casa para recebê-la.
“Annyeonghaseyo! Bem-vinda à Lua Cheia!” disse a senhora em coreano, com um inglês ligeiramente sotaquado logo em seguida. “Você deve ser a Imani. Eu sou a senhora Lee, sua anfitriã.” Sra. Lee curvou-se levemente em saudação, um gesto elegante e acolhedor.
“Olá, Sra. Lee. É um prazer conhecê-la,” respondeu Imani, devolvendo o sorriso e também se curvando, tentando imitar a graça coreana. “Obrigada por me receber.”
“Oh, por favor, me chame de Sra. Lee,” ela insistiu, com um gesto de mão gentil. “Entre, entre. Você deve estar cansada da viagem.”
Sra. Lee a guiou para dentro da casa, um espaço acolhedor e charmoso. O interior era decorado com móveis de madeira escura e papel de arroz nas paredes, criando uma atmosfera tradicional e serena. O aroma suave de incenso e chá pairava no ar, convidando ao relaxamento. Ela mostrou o quarto de Imani, um espaço simples, mas confortável, com uma janela ampla que dava para o pátio interno.
“Espero que você se sinta em casa aqui,” disse Sra. Lee, com um olhar genuíno. “Se precisar de alguma coisa, não hesite em me procurar. O chá está sempre pronto na sala comum.”
“Muito obrigada, Sra. Lee,” Imani respondeu, sentindo-se instantaneamente mais relaxada e acolhida. A atmosfera da casa de hóspedes era um contraste bem-vindo com a agitação da cidade lá fora.
Depois de se instalar brevemente na casa de hóspedes, Imani sentiu um impulso irresistível de começar sua exploração. Pegou o mapa de Seul que sua avó lhe dera e traçou o caminho até o Museu Nacional da Coreia. A excitação de finalmente estar em Seul, combinada com a promessa de mergulhar na história e cultura coreanas, a impulsionava.
O Museu Nacional da Coreia era imponente, um edifício moderno e elegante que abrigava séculos de história e arte. Ao entrar, Imani sentiu-se imediatamente pequena diante da vastidão do espaço e da riqueza das coleções. Salas amplas e bem iluminadas exibiam artefatos que narravam a história da Coreia desde a pré-história até a era moderna.
Imani caminhou lentamente pelas galerias, absorvendo cada detalhe. Cerâmicas celadon delicadas, pinturas em seda intrincadas, esculturas budistas serenas, e artefatos da era Joseon – cada objeto contava uma história, sussurrando sobre um passado vibrante e complexo. Ela se deteve diante de uma armadura de guerreiro ornamentada, imaginando quem a teria usado em batalhas há séculos. Em outra vitrine, um conjunto de joias douradas cintilava sob a luz, testemunhas silenciosas de uma época de reis e rainhas.
A cada passo, Imani sentia uma conexão mais forte com suas raízes. Os artefatos não eram apenas objetos em um museu, mas elos tangíveis com sua ancestralidade. Ela imaginava sua avó caminhando por corredores semelhantes, talvez admirando os mesmos tesouros, sentindo o mesmo orgulho em sua herança. A cada vitrine, a história da Coreia, e consequentemente, parte da sua própria história, se tornava mais real e palpável.
De volta ao quarto na casa de hóspedes, já no final da tarde, Imani abriu sua mala e retirou cuidadosamente um objeto especial: um mapa de Seul antigo, dobrado e amarelado pelo tempo. Era um presente de sua avó, dado a ela antes da viagem.
O mapa não era um guia turístico moderno, mas sim uma representação nostálgica de Seul de décadas atrás. Ruas com nomes antigos, marcos históricos que talvez não existissem mais, e anotações a lápis rabiscadas pela mão da avó – “Mercado de Namdaemun – Experimente o mandu!”, “Palácio Changdeokgung – O jardim secreto é imperdível!”, “Casa de Chá Insadong – Música tradicional ao vivo!”.
Imani desdobrou o mapa sobre a mesa, alisando os vincos com cuidado. Passou os dedos pelas linhas desbotadas, sentindo a textura do papel envelhecido. Era mais do que um simples mapa; era uma cápsula do tempo, um pedaço da memória da avó, um guia pessoal para sua jornada em Seul. Ao observar as anotações carinhosas, sentiu a presença da avó ali, guiando seus primeiros passos na terra ancestral. Um sorriso genuíno iluminou seu rosto. A aventura em Seul estava apenas começando. E ela tinha a sensação de que seria uma jornada inesquecível, entrelaçando passado e presente de maneiras que mal podia imaginar.
A manhã seguinte em Seul amanheceu ensolarada, banhando a cidade com uma luz dourada. Imani, animada para continuar sua exploração, decidiu seguir uma das anotações do mapa de sua avó: Insadong. A promessa de um mercado de antiguidades soava irresistível, um lugar perfeito para talvez encontrar um pedaço autêntico do passado coreano.
Ao sair da casa de hóspedes e entrar nas ruas de Insadong, Imani foi imediatamente envolvida por uma explosão sensorial. A rua fervilhava de vida, uma sinfonia de sons, cores e aromas. Vendedores ambulantes anunciavam seus produtos em coreano melódico, o aroma doce de tteokbokki picante misturava-se com o perfume suave de incenso de uma loja próxima, e o burburinho constante de conversas em diversas línguas criava uma atmosfera vibrante e cosmopolita.
Insadong era um labirinto encantador de ruelas estreitas e sinuosas, ladeadas por casas tradicionais hanok convertidas em lojas de chá, galerias de arte, restaurantes e, claro, lojas de antiguidades. As vitrines transbordavam de tesouros: cerâmicas celadon delicadas, máscaras tradicionais coloridas, caligrafias antigas em pergaminho, caixas de joias lacadas, e uma miríade de outros objetos misteriosos e fascinantes.
Imani caminhava lentamente, deixando-se levar pelo fluxo da multidão e absorvendo a atmosfera única de Insadong. Parava em frente a cada loja, seus olhos curiosos varrendo as prateleiras repletas de história. Ela sentia a textura áspera de cerâmicas antigas, admirava a beleza intrincada de pinturas em leques de seda, e se perguntava sobre as histórias por trás de cada objeto. Quem teria usado aquele pente de jade? Quem teria escrito aquelas palavras em caligrafia elegante?
A mistura de antigo e moderno em Insadong era cativante. Em meio às lojas tradicionais, surgiam cafés charmosos com design moderno, lojas de cosméticos coreanos reluzentes e galerias de arte contemporânea. Era como se o passado e o presente dançassem juntos, criando uma tapeçaria cultural única e vibrante.
Em uma loja mais escondida, no fundo de uma viela estreita, algo chamou a atenção de Imani. No canto escuro da loja, em meio a uma pilha de móveis antigos empoeirados, repousava um baú de madeira. Não era particularmente grande ou ornamentado, mas possuía uma aura de mistério e antiguidade que a atraiu irresistivelmente.
O baú era feito de madeira escura, com detalhes em metal desgastados pelo tempo. A superfície estava coberta de arranhões e marcas, contando silenciosamente histórias de anos e talvez séculos. Imani aproximou-se, tocando a madeira fria e áspera com a ponta dos dedos. Havia algo nele, uma sensação quase palpável de que guardava segredos.
Um vendedor idoso, com um rosto enrugado e um olhar astuto, aproximou-se, observando o interesse de Imani. Ele falou em coreano, gesticulando para o baú e sorrindo amigavelmente. Imani respondeu em inglês, explicando que estava apenas olhando, mas no fundo, já sabia que não sairia da loja sem aquele baú.
Iniciou-se uma negociação amigável, uma dança de preços e contrapropostas em uma mistura de inglês hesitante, coreano sorridente e gestos universais. O vendedor, experiente, avaliou o interesse de Imani e começou alto. Imani, lembrando-se dos conselhos da avó sobre barganhar em mercados, fez uma contraproposta mais baixa, com um sorriso doce.
A negociação prosseguiu, com ambos cedendo gradualmente, em um ritmo divertido e respeitoso. Finalmente, chegaram a um preço que agradou a ambos. Imani pagou pelo baú, sentindo uma satisfação inexplicável ao se tornar a nova guardiã daquele objeto misterioso. O vendedor embrulhou o baú em papel pardo e o entregou a Imani com uma reverência cordial.
De volta ao quarto da casa de hóspedes, com o baú posicionado no chão de madeira polida, Imani sentiu uma onda de expectativa palpável. Era como abrir um presente de si mesma, um presente do passado. Com cuidado, removeu o papel pardo e examinou o baú novamente. Ele parecia ainda mais misterioso sob a luz suave do quarto.
Seus dedos encontraram o fecho de metal, enferrujado e resistente. Com um pouco de força, conseguiu destravá-lo. O baú rangeu suavemente ao se abrir, liberando um cheiro empoeirado e antigo, um aroma que falava de tempo e segredos guardados.
Dentro do baú, em meio a um forro de tecido desbotado, havia alguns objetos antigos: um leque de seda dobrado, um cordão de contas de madeira escura, e um pequeno livro encadernado em couro. O coração de Imani acelerou. Seria este… o diário?
Com mãos um pouco trêmulas, retirou o livro do baú. Era mais fino do que imaginava, mas parecia pesado na mão. A capa de couro estava gasta e rachada, mas as costuras laterais ainda se mantinham firmes. Não havia título, apenas o couro liso e envelhecido.
Com o diário em mãos, Imani sentou-se na cama, as costas apoiadas em travesseiros macios. Abriu o livro com cuidado, como se estivesse manuseando algo extremamente frágil e precioso. As páginas eram amareladas pelo tempo, finas como papel de seda, e delicadamente preenchidas por uma caligrafia elegante.
Um close-up do diário revelava a beleza e a complexidade da escrita. Havia duas caligrafias distintas: uma em inglês antigo, cursiva e ornamentada, e outra em caracteres coreanos, graciosos e fluidos. As tintas haviam desbotado um pouco com o tempo, mas as palavras ainda eram legíveis, convidando a serem descobertas.
Imani passou os dedos suavemente sobre as palavras em inglês, reconhecendo o estilo arcaico, mas compreendendo o básico. Seus olhos vagaram para os caracteres coreanos, símbolos misteriosos e intrigantes que ela não conseguia decifrar, mas que sentia serem profundamente ligados à sua herança.
O cheiro do diário era único, uma mistura de papel antigo, tinta desbotada e um leve aroma de madeira do baú. Era um cheiro nostálgico, que evocava imagens de bibliotecas antigas e cartas de amor secretas.
Com o coração batendo um pouco mais rápido, Imani começou a ler as primeiras páginas do diário em inglês. As palavras eram lentas no início, decifrando a caligrafia e o vocabulário antigo, mas logo, a história começou a se desenrolar, a voz do passado ganhando vida nas páginas amareladas.
As primeiras entradas eram datadas de muitos anos atrás, na era Joseon. A voz era feminina, melancólica e poética, descrevendo a chegada a uma terra estrangeira, a beleza exótica da Coreia, mas também a dor da solidão e a sombra da escravidão.
"Cheguei a esta terra distante, trazida à força através do mar escuro... A beleza das montanhas e dos jardins é de tirar o fôlego, mas meu coração permanece pesado... Sou chamada Abena, e embora acorrentada, minha alma ainda anseia por liberdade..."
Imani engoliu em seco, sentindo um arrepio percorrer sua espinha. Abena. O nome ecoava em sua mente com uma estranha familiaridade. Escrava africana. Era possível? Seria esta a história de sua ancestral? A sinopse do livro que sua avó mencionara de repente se materializou em sua mente, ganhando uma nova e emocionante dimensão.
As páginas seguintes detalhavam a vida de Abena na casa da família nobre, os trabalhos árduos, a saudade de casa, e o encontro inesperado com um jovem nobre coreano, Lee Jun-ho. A descrição era delicada, cheia de suspiros e olhares furtivos, o início de um romance proibido que começava a florescer em meio às barreiras sociais e raciais da era Joseon.
Imani ficou completamente absorta na leitura, o mundo ao seu redor desaparecendo enquanto era transportada para o passado, para a Coreia ancestral de Abena e Jun-ho. A intriga a consumia, uma mistura de curiosidade histórica, conexão pessoal e a promessa de um romance épico e proibido. Ela mal podia esperar para virar a página e descobrir o que aconteceria a seguir. A aventura em Seul havia acabado de se tornar muito mais pessoal e emocionante do que jamais poderia ter imaginado.
O papel amarelado do diário transportou Imani séculos atrás, para uma Coreia distante, a era Joseon. As palavras ganhavam vida, pintando um quadro sombrio e dramático.
"… O mar bramava como um deus furioso, engolindo o céu e a terra. A madeira do navio rangia e gemia sob o ataque implacável das ondas. Há dias que não vejo nada além de água salgada e o rosto sombrio do céu. Estamos exaustos, famintos, e a esperança definha a cada dia que passa..."
As palavras de Abena se misturaram com as imagens que se formavam na mente de Imani. Um flashback cinematográfico a envolveu, transportando-a para o convés de um navio negreiro em alto mar.
O ar era denso e fétido, impregnado pelo cheiro nauseabundo de suor, doença e medo. O sol implacável castigava a pele, enquanto o balanço incessante do navio revolvia o estômago. Homens, mulheres e crianças, acorrentados e amontoados como carga, gemiam e choravam em desespero. Seus corpos esqueléticos, marcados pela viagem brutal e pela desnutrição, contrastavam com os rostos exaustos e vazios. No meio do sofrimento, alguns olhos ainda guardavam um brilho tênue de esperança ou a faísca da revolta silenciosa.
No meio daquele inferno flutuante, uma jovem mulher se destacava, mesmo em sua fragilidade. Seus traços africanos eram inconfundíveis, a pele ébano contrastando com os andrajos que mal cobriam seu corpo. Seus olhos, escuros e profundos, observavam o horizonte com uma mistura de resignação e desafio. Esta era Abena.
O navio avançava, cortando as ondas implacavelmente, impulsionado por ventos impiedosos e a ganância humana. No horizonte distante, uma linha tênue de terra começou a surgir, crescendo lentamente a cada hora que passava. A Coreia. O destino final daquela jornada de horror.
"… Chegamos a terra firme, mas não à liberdade. Fomos arrastados para um mercado, como animais, para sermos vendidos ao melhor lance. Humilhação e desespero eram o meu manto naquele dia…"
A cena mudou, o convés do navio desaparecendo para dar lugar a um mercado movimentado e barulhento. O ar agora vibrava com sons de negociação, gritos de vendedores e o cacarejar de aves engaioladas. O sol castigava o mercado, criando um calor sufocante e poeira densa.
Abena, agora limpa e vestida com roupas simples, mas ainda marcadas pela viagem, foi colocada em um estrado improvisado. Nobres e mercadores examinavam-na com olhares avaliadores, como se inspecionassem um objeto inanimado. Sussurros em coreano ecoavam ao seu redor, palavras que ela não compreendia, mas cujo tom era inequivocamente mercador.
Um nobre em particular se aproximou, seu traje de seda impecável contrastando com a sujeira do mercado. Seu rosto era frio e calculista enquanto examinava Abena de cima a baixo, como se buscasse defeitos em um cavalo de raça. Ele tocou seus dentes, examinou suas mãos, e observou seus movimentos com um olhar crítico. Este era Lord Park Chung-hee, patriarca da família nobre Park.
Após uma breve negociação com o mercador de escravos, Lord Park fez um gesto final de aprovação. O martelo bateu, selando o destino de Abena. Ela foi comprada. Agora pertencia à família Park.
Escoltada por servos silenciosos e obedientes, Abena foi levada para fora do mercado movimentado e em direção a uma residência imponente, cercada por muros altos e jardins exuberantes. A casa da família nobre Park. Seu novo lar. Sua nova prisão.
"… No meio da opulência e da frieza daquela casa, encontrei um raio de sol inesperado. No jardim secreto, sob a sombra dos bambus, nossos olhares se cruzaram pela primeira vez…"
A propriedade dos Park era um mundo à parte, um contraste gritante com a brutalidade do navio negreiro e a impessoalidade do mercado. Jardins exuberantes se estendiam por todos os lados, fontes murmurantes refrescavam o ar, e a arquitetura elegante da casa principal transmitia uma sensação de poder e tradição.
Abena foi designada para trabalhar nos jardins, um alívio físico após o confinamento do navio, mas ainda uma forma de servidão. Enquanto cuidava das flores e plantas exóticas, sentia-se observada. Um olhar discreto, curioso, pairava sobre ela, vindo de um canto do jardim.
Lee Jun-ho. O filho mais novo de Lord Park. Um jovem de beleza melancólica, com traços delicados e um ar pensativo. Ele a observava de longe, escondido entre as árvores de bambu, seus olhos escuros fixos em Abena com uma intensidade silenciosa.
Seus olhares se cruzaram. Um instante fugaz, mas carregado de eletricidade. Abena sentiu um choque percorrer seu corpo, uma faísca de algo desconhecido acendendo em meio à sua resignação. Havia curiosidade, talvez até mesmo simpatia, nos olhos do jovem nobre. Era diferente do desprezo frio dos outros membros da família.
Aquele foi o primeiro encontro. Um momento silencioso, mas significativo. Um prenúncio de algo que estava por vir.
"… Ele me olha, não como uma escrava, mas como… uma pessoa? É estranho, este sentimento. Em seus olhos não vejo desprezo, apenas uma curiosidade silenciosa. Seu nome é Lee Jun-ho. Ele é diferente de todos os outros nesta casa. A Coreia… mesmo em minha condição, não posso negar sua beleza. As montanhas verdejantes que abraçam a casa, as flores vibrantes que desabrocham nos jardins, e o céu… ah, o céu coreano, tão vasto e azul. Às vezes, esqueço por um instante a minha dor, absorvida pela beleza que me cerca. Mas a lembrança da minha liberdade perdida logo retorna, como uma sombra escura…"
As páginas do diário revelavam os pensamentos e sentimentos de Abena. Sua voz era poética e introspectiva, mesmo em meio ao sofrimento. Ela descrevia a beleza da Coreia com detalhes vívidos, como se encontrasse consolo e força na natureza que a cercava. As montanhas, os jardins, o céu… eram testemunhas silenciosas de sua dor e esperança.
E então, havia Jun-ho. Sua presença era um raio de luz em sua escuridão. A curiosidade em seus olhos, a forma como ele a observava, plantaram uma semente de esperança em seu coração. Um sentimento novo, confuso e proibido começava a germinar.
Os dias se transformaram em semanas. Abena seguia sua rotina de trabalho na casa e nos jardins, tentando se adaptar à sua nova realidade. Ela aprendia lentamente algumas palavras em coreano com os outros servos, esforçando-se para entender as ordens e navegar pelas complexidades da vida na casa nobre.
Enquanto trabalhava, Abena frequentemente sentia aquele olhar sobre si. Jun-ho a observava secretamente, de janelas entreabertas, de cantos dos jardins, sempre mantendo uma distância respeitosa, quase tímida. Seus olhares se cruzavam por breves instantes, trocando mensagens silenciosas que apenas eles pareciam entender.
Jun-ho não se aproximava, não falava com ela abertamente. Apenas observava. Mas em seu olhar, Abena sentia algo mais do que mera curiosidade. Havia uma melancolia compartilhada, uma compreensão silenciosa que começava a criar um laço invisível entre eles. Um eco do passado ressoava em seus corações, o prelúdio de uma história de amor que desafiaria todas as barreiras.
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