Capítulo 1 – A Máscara de Seraphina
A cidade sempre teve um nome para ela: "A Berração."
Seraphina Valtieri aprendeu, desde a infância, que o mundo não era gentil com aqueles que fugiam do comum. A sociedade apreciava a beleza dentro de padrões bem definidos, exaltava o previsível e rejeitava aquilo que não conseguia compreender. E Seraphina, desde que nascera, jamais se encaixou nesses moldes rígidos.
Sua pele possuía um tom alvoro e imaculado, semelhante à porcelana mais refinada. Seus olhos eram de um azul intenso, impossível de ser ignorado, um tom tão vívido que parecia desafiar a lógica. Mas o que mais despertava fascínio e estranheza era o seu cabelo—uma cascata vibrante de fios vermelhos profundos, como brasas vivas, entrelaçados com mechas prateadas que refletiam a luz como se estivessem cobertos por pó de estrelas. Era uma combinação tão rara que parecia saída de um conto de fadas, algo belo demais para ser real. E, para muitos, algo que não deveria existir.
A sociedade não sabia lidar com o incomum. E quando não se pode compreender algo, teme-se.
O medo disfarçado de curiosidade logo se transformou em desdém. Os olhares demorados se tornaram cochichos maldosos. As damas evitavam sua presença, os cavalheiros fingiam não notá-la e as mães puxavam suas filhas para longe, como se sua mera existência pudesse ser uma ameaça. Diziam que havia algo de errado nela, que seu sangue deveria ser amaldiçoado, que nenhuma dama respeitável deveria se parecer com uma criatura saída de um delírio febril.
Seraphina aprendeu a suportar o peso desses olhares. Mas suportar não significava aceitar.
O Disfarce
Ela não era tola. Sabia que, se quisesse sobreviver entre os sorrisos falsos da nobreza, precisaria apagar sua própria existência. E então, tornou-se uma sombra.
As lentes escuras passaram a esconder o brilho anormal de seus olhos. A peruca castanha domava a cor inusitada de seus cabelos. Os vestidos que usava eram sempre discretos, sem bordados luxuosos ou tecidos chamativos. Seu andar era silencioso, seus gestos contidos, sua voz baixa.
Com o tempo, as pessoas começaram a esquecê-la. Não a aceitavam, mas a ignoravam. E ignorar era melhor do que ser desprezada.
Ou ao menos era o que ela dizia a si mesma.
Naquela noite, como tantas outras, Seraphina vestiu-se para um baile que não desejava comparecer. Se pudesse, teria permanecido em seu refúgio, longe dos olhares impiedosos da sociedade. Mas seu pai insistira, como fazia em todas as temporadas, lembrando-a de suas obrigações como filha de uma família respeitável.
Ela sabia que não importava quantos bailes frequentasse, quantas apresentações fizesse ou quantas tentativas houvesse de inseri-la na alta sociedade. No final, ninguém jamais a aceitaria.
Mas ainda assim, ela iria.
Pois ele estaria lá.
O Duque de Verendale
O Duque de Verendale era um homem que jamais notaria sua presença. E, mesmo assim, Seraphina nunca deixou de observá-lo.
Ela se lembrava da primeira vez que o vira, anos atrás. Um jovem nobre de presença imponente, com olhos de tempestade e um semblante carregado de mistérios. Sua postura era impecável, sua voz firme, seus gestos calculados. Era o tipo de homem que comandava um salão inteiro sem precisar erguer a voz.
E ele já pertencia a outra.
Por cinco anos, o duque foi casado com Lady Eleanor, uma mulher que a sociedade considerava perfeita. Eleanor era tudo o que uma dama deveria ser: elegante, graciosa, de beleza clássica e olhar doce. Seu sorriso iluminava qualquer ambiente. Ela era admirada, respeitada e, acima de tudo, profundamente amada por seu marido.
Seraphina jamais tentou competir. Nunca sequer ousou sonhar com a possibilidade. Seu amor pelo duque era um segredo que carregava sozinha, um fardo que aprendera a suportar. Ela o amava com a mesma intensidade com que sabia que ele nunca a enxergaria.
Mas naquela noite, algo mudaria.
O último baile da temporada.
A última noite de Lady Eleanor.
E o começo de algo que nem mesmo Seraphina poderia prever.
Capítulo 2 – O Duque Viúvo de Verendale
A chuva castigava os telhados escuros da imponente propriedade Verendale, acompanhada pelo uivo do vento que atravessava as colinas. A tempestade era um reflexo perfeito do estado de espírito de Lysander D’Arcy Verendale.
Dentro da mansão, tudo estava mergulhado em um silêncio pesado, quase opressor. Os criados se moviam pelos corredores com passos contidos, vozes abafadas, como se temessem perturbar o luto que pairava sobre a casa. As velas tremulavam nos castiçais, projetando sombras alongadas nas paredes de pedra, como se até a luz se recusasse a brilhar plenamente naquele lugar.
O duque estava sentado em seu gabinete, um aposento amplo, decorado com móveis de mogno escuro e estantes repletas de livros que ele não tinha ânimo para ler. O fogo crepitava na lareira, suas chamas lançando reflexos dourados na superfície da mesa de madeira maciça. Diante dele, uma taça de conhaque repousava intocada. Seus dedos longos seguravam o cristal com força, mas ele não bebera. Apenas observava o líquido âmbar, como se dentro dele houvesse uma resposta para o vazio que o consumia.
O vazio deixado por Eleanor.
Sua esposa.
Sua duquesa.
Lysander não era um homem sentimental. Desde jovem, aprendera que emoções eram uma fraqueza, algo a ser contido e controlado. Seu pai, o antigo duque, sempre lhe ensinara que um homem de sua posição não podia se dar ao luxo de demonstrar fraqueza. Mas agora, sozinho naquele gabinete, sem a presença reconfortante de Eleanor, ele sentia a ausência dela como um peso esmagador.
Fechou os olhos, permitindo-se reviver os momentos que haviam compartilhado. Seu casamento não fora um conto de fadas, não houvera paixão ardente ou promessas sussurradas ao luar. Mas havia respeito. Havia compreensão mútua. Eleanor fora sua amiga, sua confidente, uma presença constante que suavizava os fardos que ele carregava como duque.
E agora ela se fora.
Desde aquela noite fatídica, Lysander se tornara ainda mais recluso. Evitava a sociedade, ignorava os convites, recusava-se a participar dos eventos que antes eram obrigações inescapáveis. Ele sabia que os rumores já corriam pelos salões da nobreza—sussurros sobre o duque viúvo, sobre seu isolamento, sobre o destino incerto de seu ducado.
Não demoraria para que começassem as especulações.
Um duque sem herdeiro era um problema. Seu título, suas terras, tudo o que ele herdara de gerações passadas precisava de uma continuidade. Ele sabia que, mais cedo ou mais tarde, seu pai apareceria para lembrá-lo de suas obrigações. Para dizer-lhe que precisava se casar novamente. Que um homem em sua posição não poderia permanecer viúvo por muito tempo.
Lysander apertou a mandíbula ao pensar nisso. Ele não queria ouvir esses argumentos. Não agora.
Mas, no fundo, ele sabia que esse momento chegaria.
As Últimas Palavras de Eleanor
A dor da perda era insuportável, mas havia algo mais que o atormentava. Um detalhe que não lhe saía da cabeça.
Eleanor sabia que estava morrendo.
Naquela última noite, algo em seu olhar dissera mais do que qualquer palavra. Ela não parecia assustada, não demonstrava desespero ou medo. Havia uma aceitação serena em seus olhos, como se já estivesse em paz com o destino que a aguardava.
Mas havia algo a mais.
Como se ela soubesse de um segredo que ele desconhecia.
Algo que ela levou consigo para o túmulo.
Lysander abriu os olhos e soltou um longo suspiro, passando uma das mãos pelos cabelos escuros. A inquietação dentro dele crescia. O que Eleanor sabia? O que ela não lhe dissera?
E então, um nome surgiu em sua mente.
Seraphina Valtieri.
Ele não sabia exatamente por quê. Não lembrava de nada específico que ligasse sua esposa àquela mulher misteriosa, mas algo dentro dele dizia que Seraphina tinha um papel nessa história.
E de alguma forma, ele descobriria qual era.
3 - A Carta Escondida
A noite estava silenciosa, interrompida apenas pelo estalar da lenha na lareira e pelo som do vento sussurrando do lado de fora. Sentada à escrivaninha de seu quarto, Seraphina segurava um envelope entre as mãos trêmulas, seu coração pulsando forte dentro do peito. O selo de cera ainda intacto exibia o brasão delicado da falecida duquesa de Raventhorn, um lembrete cruel da mulher que, em vida, ocupara o lugar que Seraphina sempre desejou, mas nunca ousou reivindicar.
Ela deveria abrir aquela carta? Deveria permitir que as últimas palavras de Eleanor Montgomery, a duquesa perfeita, preenchessem o silêncio que ecoava dentro dela? Seu instinto gritava para que se livrasse do envelope, temendo as palavras que poderiam estar escritas ali. Mas a curiosidade era mais forte do que o medo.
Respirando fundo, Seraphina rompeu o selo com delicadeza, sentindo um arrepio percorrer sua espinha ao deslizar a folha de papel para fora do envelope. A caligrafia era graciosa e firme, mas havia uma leve urgência nos traços, como se a duquesa tivesse escrito aquelas palavras apressadamente, sabendo que o tempo estava contra ela.
*"Minha querida Seraphina,
Se você está lendo esta carta, então o destino seguiu seu curso, e minha jornada neste mundo chegou ao fim. Mas antes de partir, há algo que preciso lhe dizer, algo que guardei em silêncio por muito tempo.
Sempre soube da verdade. Sempre enxerguei aquilo que você tentou esconder de todos, talvez até de si mesma. Seu olhar nunca mentiu para mim. Vi o amor que você carregava em silêncio, o afeto proibido que brilhava em seus olhos sempre que meu marido entrava no salão. Mas jamais te odiei por isso. Nunca te condenei, pois sei que o coração não segue regras, e os sentimentos não podem ser apagados apenas porque a sociedade os considera errados.
Talvez, agora, a vida esteja lhe oferecendo uma nova chance, uma oportunidade de conquistar o que sempre esteve fora do seu alcance. Sei que você tem medo. Sei que seu coração está envolto em dúvidas e incertezas, mas preciso lhe pedir uma coisa: não fuja do destino que está se desenhando diante de você. Nem tudo está perdido, Seraphina. Às vezes, aquilo que sempre desejamos pode, enfim, nos pertencer."*
Seraphina sentiu um nó se formar em sua garganta, sua visão se tornando turva com as lágrimas que se acumulavam. Suas mãos apertavam o papel com força, como se temesse que a mensagem desaparecesse diante de seus olhos.
A duquesa sabia. Sempre soube.
Eleanor, a mulher que todos exaltavam como perfeita, aquela cuja sombra parecia impossível de ser superada, havia enxergado os sentimentos que Seraphina tentou enterrar tão fundo dentro de si. E, mais do que isso, não a desprezou por isso.
Mas como? Como ela poderia ter percebido algo que nem mesmo Seraphina ousava admitir? Como poderia ter escrito aquelas palavras na noite em que faleceu, como se já soubesse que sua partida abriria caminho para algo maior?
O peso daquela revelação era quase esmagador. O duque ainda a amava. Ainda se prendia à memória da esposa perdida. Mas Eleanor, antes de morrer, havia deixado aquela carta como um último sopro de esperança, uma promessa silenciosa de que a história ainda não havia chegado ao fim.
Seraphina fechou os olhos, sentindo o coração martelar em seu peito.
E se a duquesa estivesse certa?
E se o destino estivesse prestes a mudar?
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