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GRECORY

CAPÍTULO I

O mundo dos semideuses nunca foi tão glorioso quanto as lendas pregavam. Por trás de cada grande feito heroico, havia algo sujo, obscuro. Aqueles que deveriam lutar contra monstros e honrar os ritos e tradições em nome dos deuses cederam a um sistema corrompido, "livres" do controle dos Olimpianos.

De certa forma, eu entendia esse sentimento. Muitos de nós sequer recebiam respostas de seus pais divinos, vagando sem rumo, sem saber para onde ir ou o que fazer. Estavam perdidos, sozinhos, sem ninguém para ajudá-los no momento mais difícil da vida de um semideus: a descoberta de sua verdadeira natureza.

A minha foi assim.

Uma noite normal e feliz transformada em um coral de gritos e disparos. Meu pai, minha mãe — que mais tarde descobri ser apenas minha madrasta — e eu. Cada segundo era uma fuga, cada respiração um desespero. O som das chamas devorando minha casa, o calor queimando minha pele e os cortes espalhados pelo corpo.

Poderia ter cedido, como tantos outros. Quando o primeiro monstro apareceu para mim, disfarçado de uma velha senhora que vivia sozinha na floresta, eu já estava fraco. Carregava a culpa de tê-los deixado morrer. Poderia ter acreditado nas palavras gentis da criatura, que prometia um lugar seguro, onde eu seria amado, protegido e valorizado.

Mas eu escolhi resistir. Lutar contra ela. Contra todos eles.

— Gregory!

A voz sussurrante ao meu lado me puxou de volta à realidade. Meus dedos remexiam a terra argilosa e úmida, sentindo a textura dos pequenos substratos misturados ao solo. Mesmo com as luvas de jardinagem, eu distinguia cada detalhe — até as pequenas minhocas se movendo sob a superfície. Entre minhas mãos, um caule estreito de folhas em formato de estrelas de cinco pontas crescia vigorosamente.

O cheiro forte e excêntrico da planta dominava o ar, um aroma viciante para qualquer um... exceto para um filho de Deméter. Nosso sangue nos tornava imunes a toxinas, até mesmo as alucinógenas e viciantes.

Levantei-me, absorvendo a cena ao redor. O suor escorria pelas minhas costas, mas não era apenas o calor da estufa. Estar ali, em território inimigo, me deixava em alerta constante. Eu não podia errar. Não depois de tudo que já perdi.

O calor abafado da estufa se intensificava ao meio-dia, refletindo sobre os inúmeros pés de maconha iluminados em tons de verde vibrante. As plantas eram cultivadas em fileiras simétricas, formando corredores de terra onde trabalhadores iam e vinham, arrancando folhas de alguns, colocando-as nos cestos em suas costas e transportando outros para fora da estufa em vasos improvisados.

Voltei o olhar para Elly, que me observava de braços cruzados. Seus olhos cor de lama brilhavam sob o sol, e a sombra do grande chapéu de palha não escondia a interrogação em seu rosto. Ao contrário do que muitos pensavam ao ouvir seu nome, Elly era um garoto — e, como sempre, estava pronto para me lembrar de que eu pensava demais.

Foi então que me lembrei do porquê estava ali.

Uma missão de reconhecimento em uma das áreas de cultivo ilegal de drogas em Medford, Oregon. A fabricante e exportadora se intitulava Theiro's Express, mas eu sabia que aquilo era apenas um nome de fachada, assim como nosso trabalho de cultivadores substitutos, que não passava de uma desculpa para investigar o local. A verdadeira missão? Encontrar provas de que essa operação estava ligada às indústrias Gaya's Corp — a empresa que não só mergulhou os semideuses nesse inferno, como também era a provável assassina dos meus pais.

Bom, pelo menos essa era a minha missão. Elly resolveu vir junto porque acreditava que aquela empresa tinha algo a ver com o desaparecimento repentino dos deuses.

Não é como se alguém pudesse prender um bando de deuses em um porão empoeirado... certo? Alguma coisa bem séria estava acontecendo, algo que estava fazendo até as forças da natureza se agitarem ao ponto de causar uma série de incêndios por toda a Califórnia, mergulhando-a em chamas.

Ok, você deve pensar que "é apenas as consequências da poluição que o ser humano trouxe ao mundo". Disso eu não posso discordar. Mas, por outro lado, Elly parece ter razão sobre o que diz. Os deuses são forças da natureza implacáveis, agem de acordo com a própria vontade, mantendo o equilíbrio do universo. Só que isso... Isso não parecia uma vingança ou consequência natural. Era algo a mais. Algo maior do que todos nós podíamos imaginar.

Se os deuses realmente sumiram, estávamos por nossa conta em risco. E se essa empresa tinha algo a ver com isso... precisávamos descobrir antes que algo pior acontecesse.

— Não fica aí parado olhando pro nada! — sussurrou Elly, me repreendendo. — Estamos sendo observados, se esqueceu?

Falar era fácil. Ele sempre se esquecia que toda a nova geração de semideuses desde 2013, o que me incluía, nascia com o transtorno do déficit de atenção, hiperatividade e dislexia em certos casos. E eu tive a sorte de não ter apenas a dislexia. Tudo isso porque alguém escreveu sobre isso em um livro e, agora, a maior parte do mundo basicamente nos imaginava assim. E posso te garantir que essa visão das pessoas sobre nós pode ser tão poderosa quanto a Névoa — outro dos incríveis presentes que recebemos por virarmos ficção.

De canto de olho, percebi uma das várias câmeras espalhadas acima de nós, instaladas nos canos de irrigação e nas extremidades da estufa. Além disso, guardas altamente armados patrulhavam os corredores das plantações, verificando se fazíamos nosso devido trabalho da maneira correta. E aquelas armas...

— Desculpa — murmurei, suspirando. — Só estava pensando no plano...

Mentira. Eu definitivamente não estava pensando nisso.

— Se qualquer coisa der errado, nós-

— Ei — disse Elly, pousando sua mão suja de terra sobre a minha. Seu olhar era o mesmo de quando me acordava de um pesadelo no meio da noite — o que, como semideus, não era tão raro de acontecer. — Vai ficar tudo bem, ok? Nós vamos pegar o que precisamos da sala do diretor e dar o fora desse lugar com fedor de meia suada.

— Que engraçado... — disse uma voz rouca e levemente aguda sobre nossas costas. — Não lembro de termos contratado vocês para ficar de papinho durante o serviço.

Antes que eu soltasse uma risada da descrição de Elly sobre aquele lugar, uma sombra cobriu o calor do sol sobre minhas costas, fazendo-me virar e encarar um dos guardas. O fuzil de bronze celestial reluzia mesmo sob sua sombra.

Elly retirou sua mão de cima da minha sorrateiramente. Mantivemos as cabeças baixas, demonstrando um falso respeito. O rosto do guarda era quase indecifrável, como se a Névoa — uma espécie de véu mágico que separa o mundo dos deuses e criaturas mitológicas do mundo mortal — se desfizesse por pequenos fragmentos sempre que tentávamos focar nele.

— Sentimos muito por isso, senhor — disse Elly, curvando-se. — Só estava tentando ajudar Gregory com um problema nas luvas.

Ele me lançou um olhar afiado e, instintivamente, imitei Elly, curvando-me também.

— S-Sim. Me desculpe por isso — murmurei.

O guarda hesitou. Mesmo com aquela bagunça de Névoa e insetos distorcendo sua face, pude sentir sua desconfiança. Mas, após alguns segundos, ele baixou a arma.

— Tudo bem — disse. — Vou deixar essa passar, já que são novatos. Mas, na próxima vez, não prometo que serei tão bonzinho assim. Agora, voltem ao trabalho! Quero essas plantas brilhando de tão verdes até o pôr do sol!

— Sim, senhor! — respondemos, voltando ao trabalho.

Elly recolheu suas pequenas pás de jardinagem e as guardou no cinto de utilidades preso sobre o avental.

— Acho melhor ficarmos distantes por enquanto, até sairmos da estufa.

Eu queria protestar, mas conhecia Elly. Nada o faria mudar de ideia. Apenas assenti.

— Nos vemos no dormitório?

Ele sorriu levemente sob a sombra do chapéu, dando as costas para mim e seguindo adiante pelo corredor de ervas.

{o}

Estávamos naquela missão há quase duas semanas, todos os dias realizando a mesma rotina: cuidar do solo, colher as folhas com o máximo de cuidado possível e transferi-las para vasos caso seja necessário. Ao anoitecer, depois do toque de recolher, estudávamos o local em busca de informações sobre as estufas e os negócios de contrabando e vendas ilegais de drogas por todo o país, planejando rotas de fuga e averiguando a segurança da sala de reuniões do diretor Kallan Taveiros, um administrador daquela área de cultivo.

De vez em quando, eu e Elly subíamos no teto dos alojamentos para observar as estrelas. Nunca ficávamos muito tempo, com receio de sermos pegos ao retornar. O suficiente apenas para sentir o calor do abraço de Elly e o aroma de amora dos seus cabelos castanhos, cacheados e levemente desalinhados pela brisa fria da noite. Aquela seria uma delas, se não fosse o fato de o diretor Kallan ter marcado uma reunião com os patrocinadores poucas horas depois do toque de recolher. Como sabia disso? Com um pouco de lábia, certas quantidades refinadas de cocaína e um favor íntimo, podia-se conseguir tudo naquele lugar, isso se você encontrasse a pessoa certa no local certo.

Eu não gostava daquilo, muito menos Elly, que me ajudava com os informantes. Ter que vender nosso corpo em troca de informações era completamente nojento, mas era isso ou nada sobre as atividades internas do local. Estávamos no banheiro, na área dos chuveiros onde tomávamos banho depois do trabalho. Ali, nem mesmo os guardas que patrulhavam os pavilhões nos incomodariam—eram preguiçosos demais para checar ali. Nosso informante era o mesmo da noite anterior: Conner Still, um homem adulto, porém jovem, não passava dos vinte e cinco. Seus cabelos eram escuros e ligeiramente desgrenhados, os olhos penetrantes, a roupa discreta, como alguém que sabia que precisava passar despercebido. Sua expressão não era nada amigável ou serena, qualidades que geralmente se esperavam dos filhos de Deméter; pelo contrário, havia algo de malicioso e ansioso em seu semblante, uma impaciência faminta pelo que viemos lhe oferecer em troca das informações.

Conner passou pelos armários de aço, os pias e mictórios, aproximando-se de nós com aquele mesmo sorriso malicioso que me lançou na noite anterior. Seus cabelos eram curtos, castanhos escuros e ligeiramente despenteados. Os olhos, que pareciam vácuos sombrios, analisavam nossos corpos com uma expressão de fome e arrogância. Vestia roupas discretas, uma camiseta escura e jeans gastos, o que não era incomum entre os trabalhadores do local.

— Ora, ora... O que temos aqui? Gostaram tanto assim de ontem que vieram para o segundo round? — disse ele, em um tom baixo e cortante como o frio que preenchia a área dos chuveiros.

— Só queremos mais informações sobre a reunião de hoje — respondi, encarando-o com desprezo.

Conner riu, um som seco e desagradável.

— Então vamos logo ao que interessa — aproximei-me dele, sentindo o cheiro forte de cigarro que exalava de sua boca. Tentei manter o nojo sob controle, pois sabia que aquele momento era necessário.

Antes que pudesse continuar, ele me afastou com um gesto brusco.

— Você já teve sua vez — murmurou, voltando-se para Elly. Meu coração acelerou quando vi meu namorado recuar instintivamente, até suas costas tocarem a parede gelada. Conner se aproximou, deslizando um dedo pelo rosto de Elly com um sorriso presunçoso.

— Agora é a vez dele, enquanto você observa.

Antes que eu pudesse reagir, videiras emergiram das rachaduras do piso, enrolando-se ao redor dos meus braços e pernas. Seus espinhos fincaram-se na minha pele, atravessando a roupa e deixando arranhões ardentes. Meus pensamentos corriam desenfreados enquanto tentava ordenar que as plantas me soltassem, mas elas pareciam ignorar minha presença. Conner riu ao ver minha expressão frustrada.

— Eu não tentaria nada, se fosse você — alertou, com um brilho cruel nos olhos. — Isso só vai tornar as coisas mais demoradas.

Olhei para Elly. Ele estava assustado, mas determinado. Assentiu levemente, um gesto quase imperceptível. Eu queria detê-lo, impedir que aquilo acontecesse, mas sabia que não podíamos perder a oportunidade de obter as informações que precisávamos.

Depois de ter que assistir Elly ser despido até os pés por Conner, usado como um objeto sem sentimento, apenas o calor mesclado ao frio da área de chuveiros, as videiras se soltaram do meu corpo, revelando cortes em todos os lugares, fendas pelas minhas roupas e, o pior, a excitação inconsciente que senti ao observar os dois. Não me culpe, culpe a minha puberdade desenfreada de um adolescente de dezessete anos. Se estivesse no meu lugar, sentiria o mesmo que eu ao ver uma cena daquela diante de seus olhos, mesmo que fosse seu namorado nos braços de outro.

Por outro lado, eu queria voar no pescoço dele e afastá-lo de Elly, mas sabia que não podia—não sem o que precisávamos. A respiração de Elly estava ofegante, assim como a de Conner, com um vapor saindo de suas bocas devido ao frio da noite que preenchia o ambiente. Me aproximei deles e beijei Elly, o que deixou Conner levemente surpreso, mas logo me virei para ele, permitindo que o momento nos consumisse de uma forma que garantisse a informação que procurávamos. Quando acabamos, estávamos deitados sobre o piso frio e úmido, completamente exaustos, o suor escorrendo por todo o corpo. Não sabia que três pessoas eram capazes de se perder daquele jeito, principalmente porque na noite passada não fizemos metade do que aconteceu naquela.

Conner se ergueu do chão, ficando sentado enquanto ofegava.

— Pelos deuses... — murmurou, parecendo satisfeito. — Isso foi melhor do que eu esperava vindo de dois mortais.

O sangue gelou em minhas veias. Elly e eu trocamos um olhar rápido antes de nos afastarmos ligeiramente.

— Você disse "mortais"? — perguntei, minha voz carregada de alerta.

Conner piscou, fingindo confusão.

— Eu disse? — ele riu. — Desculpe. Às vezes esqueço que são semideuses como eu.

Isso não me convenceu, nem convenceu Elly. Mas não podíamos nos dar ao luxo de desvendar outro mistério naquela noite.

— Tanto faz... — murmurei, vestindo minhas roupas. Lancei um pacote de cocaína para Conner, que pegou com um brilho cintilante nos olhos. Por um breve instante, achei ter visto suas íris mudarem para um tom roxo bem claro, confirmando minhas suspeitas.

— Muito bem — disse ele, inspecionando o pacote. — Podem perguntar o que quiserem. Vou até deixar que peçam mais uma informação pelo serviço extra de hoje.

— Quero saber sobre a segurança da reunião de patrocinadores — disse, sem rodeios. — Sabemos que estará redobrada, mas queremos um furo na vigilância. Alguma brecha que nos leve à sala do diretor sem sermos vistos.

Conner, com um brilho de maldade nos olhos, começou a detalhar a segurança da reunião:

— Há guardas em cada entrada e câmeras monitorando todos os corredores. Mas há uma brecha. O corredor oeste, perto dos escritórios de manutenção, tem uma porta que não tranca bem. Se conseguirem chegar lá sem chamar atenção, podem usar o túnel de manutenção que leva diretamente à sala de reuniões. Apenas certifiquem-se de não serem pegos pelas rondas noturnas que acontecem a cada hora.

— Nós não vamos — garanti. — Agora, se nos dá licença, temos assuntos a resolver.

Elly e eu começamos a nos mover em direção à porta do banheiro, prontos para aproveitar essa informação crucial. No entanto, Conner, ainda com aquele sorriso calculista, nos deteve com uma última observação:

— Tem certeza de que vão jogar uma segunda informação fora? Não é todo dia que faço isso de bom grado.

Ainda de costas para Conner, senti um cheiro suave de uva pairando pelo ambiente. Me virei, encarando-o diretamente nos olhos.

— O que eu quero perguntar, você não vai responder. Mas avise minha mãe que estou bem, e que seja lá o que estiver acontecendo com vocês, vamos arrumar um jeito de ajudar.

Conner ficou imóvel por um momento, seu sorriso calculista voltando a se formar:

— Você é mais esperto do que eu imaginava garoto. Mas se é isso que quer, então está feito.

Com isso, o corpo de Conner começou a se dissolver em uma fina poeira púrpura, que se moveu em direção à janela do banheiro e desapareceu.

Elly, com a voz falhando de surpresa, perguntou:

— Então... nós... nós realmente...

— Sim — respondeu Gregory, surpreendentemente calmo. — Duas vezes, inclusive. Mas não é nada de mais. Dionísio sempre aparece quando quer algo mais... louco.

Elly olhou incrédulo para Gregory, sua indignação evidente.

— Transamos com um deus por dois dias e você nem perguntou o paradeiro dos outros, da sua mãe?!

Seus punhos estavam cerrados de raiva, mas Gregory os segurou gentilmente, tentando acalmá-lo:

— Olha, eu sei que você está com raiva de mim por isso, e eu te entendo. Mas mesmo que eu lhe perguntasse sobre isso, continuaríamos no escuro, porque ele não iria contar. Eu sei disso. Posso te garantir que quero achar eles tanto quanto você, mas essa não é a hora. Eles querem que encontremos um caminho para ajudá-los sozinhos.

Elly, ainda processando tudo aquilo, perguntou:

— Como você pode ter tanta certeza assim?

— Eu não sei — respondeu Gregory, com um olhar distante. — É apenas uma intuição, mas uma intuição que faz sentido. Se Dionísio precisasse nos avisar de algo, já teria feito isso antes mesmo de... você sabe.

— Vamos torcer para que sua intuição esteja certa — disse Elly, soltando seus braços e andando em direção a saída.

CAPÍTULO II

Agora, fora do banheiro, caminhamos sorrateiramente pelos corredores do edifício de dormitórios, passando pela cantina, que mais parecia uma mistura bizarra entre uma escola e uma prisão. Seguimos até a porta da saída de emergência, que dava para um corredor amplo e vazio. No corredor, havia apenas um extintor de incêndio empoeirado preso à parede à esquerda, e no final, a porta que levava para os fundos cintilava com o verde da placa de saída acima dela.

A noite já havia tomado por completo o céu, e nosso caminho era revelado apenas pelo brilho suave da lua filtrado pelas grandes janelas à direita. A lâmina de bronze da minha adaga também participava do contraste com a escuridão, cintilando suavemente assim como o arco de madeira e musgos bioluminescentes nas costas de Elly. As sombras ao nosso redor formavam figuras assimétricas e, de certa forma, aterrorizantes. Eu sabia que as armas que carregávamos eram uma anomalia ali; afinal, como poderíamos passar um arco e flechas daquele tamanho por toda essa vigilância? A resposta estava na pochete com bolso sem fundo que minha mãe me deu dois anos depois de descobrir que eu era um semideus. Ela me disse que aquela pochete seria o item mais importante durante minhas missões, e realmente havia sido minha salvação quando eu fugia de monstros, escondendo-me em lares improvisados e acampamentos secretos nas florestas próximas de Burns. Os monstros que vistoriavam os novos trabalhadores da estufa simplesmente não notaram essa pequena maravilha mágica.

O que me preocupava era o fato de que algo estava estranho desde que chegamos ali, a ausência de câmeras dentro do edifício. Parecia que só se importavam com o que acontecia nas estufas e nos caminhões de produtos, deixando o resto do lugar desprotegido. Além disso, não eram só as câmeras que estavam ausentes; os guardas que deveriam patrulhar aquela área também não estavam ali. Ou Dionísio mexeu uns pauzinhos para nos ajudar, ou a reunião era importante demais para os guardas perderem tempo vigiando aquela espelunca.

Já se passava da meia-noite, e não sabia se chegaríamos a tempo de pegar algo importante da reunião graças ao deus do vinho louco por sexo. Todas as saídas estavam trancadas, mas uma das janelas tinha a tranca quebrada, uma passagem que usávamos diariamente para nossas investigações. Saltamos pela janela, caindo nos fundos do edifício, e nos escondemos atrás de uma lata de lixo bem a tempo de uma sombra sobrevoar acima de nossas cabeças em alta velocidade. Era uma harpia, mergulhando em direção à grama com seus grandes pés de galinha, quase nos pegando de surpresa. Mas, por sorte, seu alvo era apenas um esquilo que se aventurou longe demais de casa, tornando-se um lanchinho da madrugada para ela. Aliviados, vimos a harpia alçar voo novamente, afastando-se de nós.

Olhando para a lata de lixo, tive uma ideia. Peguei uma semente do meu cinto de jardinagem e um punhado de terra, enterrando a semente e esperando. Como em um vídeo em time lapse, ela começou a germinar rapidamente, transformando-se em uma flor de pétalas rugosas vermelho tijolo, salpicadas de manchas brancas. No lugar do botão, havia um espaço oco com bordas levemente protuberantes, onde pequenos pelinhos vermelhos em formato de espinhos cresciam em seu interior. Sua aparência lembrava a flor de Bulbasaur, mas o cheiro era completamente diferente, um fedor de morte tão repugnante que até mesmo Elly teve dificuldade de ficar perto de mim.

— Por que plantou essa coisa justo agora? — perguntou Elly, afastando-se com uma careta.

— Essa "coisa" se chama Flor Cadáver. E eu sei que o cheiro é forte — respondi, mantendo a flor próxima. — É exatamente por isso que a germinei. O odor dela é quase tão forte quanto o de um cadáver em decomposição, talvez até mais, o que vai encobrir nosso cheiro dos monstros que patrulham a área, especialmente das harpias. Eu odeio harpias.

Com a flor em mãos, começamos a nos mover novamente, o cheiro horrível servindo como uma camuflagem perfeita, enquanto avançávamos em direção ao nosso objetivo.

Passamos por áreas com mato alto, usando as folhas das plantas para cobrir nossa visão de cima, despistando o olhar apurado das harpias. Quando chegamos próximos dos escritórios de manutenção, aproximei-me de um Abeto de Douglas, colocando o punhado de terra com a Flor Cadáver próxima ao tronco antes de seguirmos para o corredor oeste. Isso deixou a dríade daquela árvore nada contente.

A porta não parecia estar como Dionísio havia descrito, mas eu torcia para que estivesse antes que a dríade, furiosa, começasse a jogar uma chuva de pinhas na minha cabeça e acabasse por chamar atenção indesejada. Apenas um toque na maçaneta foi o suficiente para afastá-la da tranca, abrindo caminho para um interior que parecia mais um bunker do que um corredor de manutenção. O ambiente era estreito, com paredes de concreto nu, manchadas de umidade. Prateleiras de metal estavam alinhadas ao longo das paredes, repletas de ferramentas e peças de reposição, e o chão era coberto por uma camada fina de poeira.

Assim que entramos, a porta se fechou sozinha às nossas costas, trancando-nos lá dentro.

— É, parece que não tem mais volta — disse eu.

O lugar agora estava totalmente escuro e abafado, e o brilho da lâmina de bronze era quase escasso ali. Senti a mão de Elly se entrelaçando à minha, não conseguindo deixar de expressar um breve sorriso ao pensar que ele poderia estar com medo do escuro. Minha visão varreu o local em busca de alguma passagem, talvez uma placa indicando onde estava o tal túnel de manutenção, e finalmente encontrei uma pequena mesa repleta de ferramentas no canto próximo à porta por onde havíamos entrado. Lá também tinham algumas lanternas de cabeça penduradas em pregos acima da mesa, que gentilmente pegamos emprestado. Coloquei uma na cabeça de Elly, que ficou estranhamente fofo, e ele fez o mesmo comigo, nossos olhos se encontrando por um momento antes de voltarmos à missão; não tínhamos tempo para aquilo agora.

Mas à frente, próxima a um gerador de energia que soltava um zumbido desconfortável, havia uma porta com uma placa em vermelho e preto dizendo: "AVISO: ENTRADA SOMENTE PARA FUNCIONÁRIOS. PERIGO DE ALTA VOLTAGEM" – o que mais parecia um convite para a morte do que um aviso de perigo. Bom, como trabalhávamos ali há quase duas semanas, não estávamos proibidos de entrar já que éramos funcionários. Elly se aproximou da porta e tentou abri-la.

— Trancada — disse ele.

— Deixa comigo — falei, erguendo minha adaga e desferindo um corte contra a fechadura. A lâmina passou por ela como se cortasse manteiga, despedaçando a tranca e abrindo a porta em direção a um lance de escadas direto para o subsolo.

A escadaria, de granito, não era tão extensa, mas quando chegamos ao final e nos deparamos com um túnel estreito, com espaço apenas para duas pessoas andarem lado a lado, um pouco espremidas uma na outra, me perguntei a quantos metros abaixo da terra estávamos – provavelmente uns cinco, talvez mais, talvez menos. As paredes, que formavam uma abóbada sobre nossas cabeças, eram revestidas de concreto rachado e coberto de fungos em alguns pontos; cabos saíam das paredes no final da escadaria e seguiam adiante por todo o túnel em ambos os lados, levando provavelmente a energia dos geradores barulhentos da sala de manutenções para os edifícios da área de cultivo e para as estufas.

O problema era que Dionísio esqueceu de nos avisar que o túnel se dividia em uma série de outros iguais, como em um labirinto, que felizmente não era o de Dédalo. A cada esquina, havia números pintados e desgastados no concreto, talvez indicando a área em que a energia estava sendo direcionada. De primeira, pensamos em seguir em frente pelo túnel 2, mas quando outro lance de escadas surgiu de forma rápida e próxima demais, levando-nos para cima numa outra porta trancada, decidimos voltar e seguir pelo túnel 1, à direita, que era mais extenso e levava, em tese, baseando-se na posição que estavam acima do solo, na direção do edifício do diretor. Novamente apareceram mais túneis, pintados de forma que não seguiam a sequência numérica: 9, 5 e 6. Eu já estava ficando farto daquilo; minha ansiedade era visível ao observar a maneira como eu estalava os dedos e segurava o braço, e Elly percebeu isso, olhando para uma das rachaduras no concreto próxima a seus pés e se ajoelhando na direção dela, pousando sua mão sobre a fissura e fechando os olhos, concentrado.

Tentei perguntar a Elly o que ele estava fazendo, mas fui interrompido por ele.

— Shh! — sussurrou ele.

Quando Elly se levantou e limpou a sujeira de sua calça, ele se virou para mim.

— Corredor 5, à direita de novo. Depois é só subir.

— Eu já disse que te amo? — perguntei feliz e aliviado, segurando seu rosto e beijando suas bochechas.

— Todos os dias, na verdade — respondeu Elly com um sorriso travesso.

Então, fizemos o trajeto, escolhemos o corredor número cinco e finalmente chegamos à escadaria, subindo em direção à porta e fatiando sua fechadura como um pedaço de sabonete, saindo numa sala com painéis de controle de energia e caixas velhas; o cheiro de mofo era quase tão ruim quanto o dos túneis. Aproximei-me da porta e encontrei um pequeno furo na madeira, observando o lado de fora, um corredor trabalhado em madeira, com alguns quadros antigos e abajures tão velhos quanto, que banhavam o lugar em uma luz amarelada.

— Parece seguro — murmurei, — Mas não dá pra saber até onde.

— Então, vamos ter que ir até lá descobrir — disse Elly, com determinação.

Antes que eu usasse minha adaga para fatiar novamente outra fechadura, o que já estava virando um hobby, o som de passos e vozes começava a se aproximar de onde estávamos. Paramos e nos agachamos em silêncio, com os ouvidos rentes à porta para ouvir qualquer coisa que pudesse fazer barulho do lado de fora. Foi então que dois guardas, provavelmente mortais, passaram pelo corredor em patrulha.

— Até quando esses caras vão ficar nessa reunião? Esse lugar me dá arrepios — reclamou o primeiro guarda, seu tom revelando uma mistura de impaciência e desconforto.

O segundo guarda debochou da cara dele, rindo.

— Está com medo dessa velharia? — perguntou ele, sarcástico.

— Não cara — respondeu o primeiro guarda, com um tom corajoso e desesperado que só homens que tentam provar sua masculinidade para os outros usam. — Só não gosto de como esse lugar se parece. É como se algo de ruim pudesse acontecer a qualquer momento.

— Isso é bobeira — disse o segundo guarda, interrompendo-o. — A reunião logo logo vai terminar, e a gente volta pra casa. O que você está sentindo deve ser fome. Você comeu alguma coisa antes de vir pra cá?

— Não — admitiu o primeiro guarda.

O segundo guarda soltou uma risada travessa.

— Então vamos pra cozinha arrumar alguma coisa pra você comer. Uma pausa rápida pro lanche não vai fazer mal.

As vozes foram se distanciando no corredor e, quando desapareceram, aproveitei a deixa para cortar a fechadura com minha adaga e abrir a porta. O lugar estava silencioso, exceto por uma música que tocava distante no lado oposto ao que os guardas foram—um jazz clássico dos anos 40. Como eu sabia? Minha madrasta, que antes pensava ser minha mãe, adorava colocar os clássicos do jazz dos anos 40 enquanto fazíamos as tarefas de casa, chegando até a dançarmos juntos numa coreografia desajeitada e improvisada. A partir daí, passei a amar músicas clássicas, mesmo que isso me causasse um sentimento de saudade. No fundo, sentia como se minha madrasta dançasse comigo todas as vezes que eu as ouvia.

Com a porta aberta, Elly e eu saímos, mantendo-nos próximos à parede para não sermos detectados. O corredor, iluminado por aquelas luzes amareladas e decorado com quadros antigos, parecia um túnel do tempo para uma era passada, o jazz ecoando suavemente como um convite para um baile fantasma.

— Vamos, temos que nos apressar — sussurrei para Elly, enquanto seguíamos o som da música, que parecia vir da direção onde a reunião estava a acontecer. Cada passo era calculado, cada movimento feito para não perturbar o silêncio que reinava no lugar, exceto pela melodia que se infiltrava pelos corredores.

CAPÍTULO III

O som de algumas vozes foi se intensificando, mas era quase impossível entender o que diziam com o volume da música competindo com elas. Antes de tomarmos a direita no corredor, dei uma breve espiada nos arredores, só por precaução. Nada de câmeras, mas dois guardas vigiavam uma porta, o que me fez ter certeza de que estávamos no lugar certo. Tive que me virar rápido para Elly quando percebi que um dos guardas ameaçava olhar na nossa direção.

— Encontrei a sala — murmurei. — Tem dois guardas vigiando, então vai ser difícil de entrar.

— Eu tenho uma ideia — disse Elly, olhando para a grelha de um duto de ar bem ao nosso lado na parede. — Só vou precisar de uma chave de fenda e um bom par de mãos silenciosas.

Ele se ajoelhou diante da grelha e estendeu a mão na minha direção.

— Você trouxe o que eu te pedi, certo?

Nunca desejei tanto que uma ferramenta estivesse na minha pochete quanto naquele momento. Eu tinha colocado tantas coisas naquele saco sem fundo que nem me lembrava se havia pegado as ferramentas que Elly mencionou que precisaríamos. E se não estivesse ali, os guardas nem precisariam me matar – Elly faria isso sozinho. Por sorte, ao enfiar a mão no bolso da pochete e mentalizar uma chave de fenda, senti o cabo de plástico reforçado nas minhas mãos. Um alívio percorreu meu corpo, mesmo que a situação não fosse nada propícia a isso. Entreguei a ferramenta a Elly e o observei desparafusar os cantos da grelha o mais silenciosamente possível.

Era estranho ver meu namorado manuseando esse tipo de coisa. Isso me fazia imaginá-lo como um eletricista ou algo assim, o que, na minha cabeça, era quase tão esquisito e contraditório quanto uma árvore gostar de pegar fogo. Eu sabia que o pai dele era um mecânico conhecido em Burns, mas nunca entendi como a mãe dele, uma dríade de Amora-do-Himalaia, se apaixonou por alguém assim. Ele já tinha me contado que, nos fundos do quintal, o pai construiu um lindo jardim com parreiras especiais só para a amoreira da mãe dele se desenvolver melhor. Um mecânico que gostava de jardinagem? Nada contra, mas na minha cabeça não fazia sentido. Até que meu olhar encontrou os olhos concentrados de Elly, e percebi que, na verdade, não era preciso muito para o amor fazer isso acontecer. Esse sentimento te leva a fazer coisas que você nunca imaginou, só para estar com quem você gosta. Talvez ele fosse mesmo capaz de unir lados tão diferentes.

— Acabei — murmurou Elly, retirando a grelha do caminho e me chamando. — Vamos.

Sacudi a cabeça para afastar meus devaneios e voltei à missão, seguindo logo atrás dele pelo duto e recolocando a grelha para evitar chamar a atenção das patrulhas que passariam por ali. Metro após metro, nos esgueirávamos pelos dutos empoeirados e cobertos de teias, subindo e descendo, dando voltas até que as vozes estivessem abaixo de nós, agora mais audíveis. A música ainda tocava lentamente, como se estivéssemos em um bar de décadas atrás, mas era menos estridente do que lá fora, o que era totalmente estranho.

Elly avançou na frente, virando-se com dificuldade para ficar de frente para mim. Entre nós, uma outra grelha, também coberta de poeira e quase impossível de enxergar através, revelava o interior da sala de reuniões. Era um cômodo amplo, com uma mesa grande e retangular no centro, cercada por cadeiras antigas de madeira entalhada, dispostas com quatro assentos de cada lado e apenas um em cada ponta. As paredes eram revestidas de painéis de madeira escura, com detalhes dourados que refletiam a luz amarelada de um lustre pendurado no teto, cheio de poeira e teias sutis. Havia uma lareira apagada em um canto, com uma prateleira repleta de livros velhos acima dela, e um tapete persa desbotado cobria parte do chão de tábuas rangentes.

Na ponta inferior da mesa, logo abaixo da grelha por onde espiávamos, um homem alto e engravatado estava sentado. Seu terno marrom-canela estava aberto, revelando um colete, e a gravata da mesma cor contrastava com a camisa social preta por baixo. O cabelo penteado para o lado no clássico estilo de empresário engomadinho e os óculos de lente redonda refletiam o brilho do abajur. Ele poderia ser apenas mais um executivo tentando manter sua presença na reunião, não fosse a grande cicatriz de corte no lado esquerdo do rosto, que parecia estender seu sorriso de um jeito macabro. Aquela marca, combinada com a aura obscura e amedrontadora que emanava dele, deixava claro que não era um homem comum. Os acionistas sentados à sua frente pareciam sentir o mesmo.

O diretor Kallan então se levantou, apoiando as mãos sobre a mesa. Seus olhos castanhos carregavam o mesmo olhar severo que me lançou no meu segundo dia de trabalho, enquanto eu me dirigia para a estufa. A mesma sensação de aperto no estômago tomou conta de mim.

— Bom, creio que os assuntos a serem tratados aqui já se resolveram. Já podem ir embora — disse o diretor, numa voz aguda e estridente. — E avisem àquele estúpido do meu irmão que não marque outra reunião de emergência se não quiser voltar para o Tártaro sem a cabeça.

— M-Mas diretor Kallan — disse o acionista, hesitante —, ainda precisamos discutir o andamento da produção do exército artificial. Temos muitos semideuses, sim, mas os indígenas também têm, e está difícil até para os filhos de Deméter localizá-los na floresta. É como se algo estivesse protegendo-os, ocultando sua presença entre as árvores.

Kallan inclinou a cabeça, um sorriso frio surgindo em seus lábios antes de responder.

— Isso já era óbvio que ia acontecer — disse ele, a voz cortante como uma lâmina. — Estamos em um território que não nos pertence, atiçando a fúria de outros deuses e espíritos que deixaram bem clara sua posição de guerra caso seres que não pertencem ao seu mundo os ataquem. Mas estamos no lugar certo. Encélado está fazendo um bom trabalho chamando a atenção deles com as queimadas na sua querida florestinha enquanto procuramos mais monstros aliados. Agora, é questão de tempo até que declarem guerra contra os Olimpianos, assim como os vários outros deuses ao redor do mundo fizeram. Quando destruirmos cada pedaço do Olimpo, os gigantes irão se erguer novamente junto à Mãe Terra, e o mundo finalmente estará livre de deuses e mortais tolos e imprudentes.

Um silêncio tomou a sala por alguns segundos. Eu sabia que aquele silêncio não era de espanto; era o de um sorriso malicioso e esperançoso se formando nos rostos dos acionistas. Todas aquelas informações eram demais para mim e Elly absorvermos de uma vez, mas um dos acionistas não deixou o silêncio desesperador nos consumir. Ele se levantou da cadeira, assim como os outros, e falou:

— Muito bem então. Ficamos felizes em receber essa notícia do ex-capitão do exército. Mas ainda assim, a pedido de Alcioneu, peço que aumente ainda mais sua produção, assim como as outras produtoras fizeram. Elas vão ser necessárias para a primeira de muitas guerras que estão por vir, além, é claro, do experimento 069.

— Entendo — respondeu Kallan, claramente incomodado, os punhos cerrados por baixo da mesa. — Vou providenciar esse aumento a partir de amanhã. Talvez até uma expansão das estufas resolva o problema...

De repente, um ranger de metal ecoou pelo duto onde eu e Elly estávamos.

— O duto não vai aguentar nosso peso — sussurrou Elly. — É melhor a gente—

Era tarde demais. O duto se soltou do teto e caiu com tudo sobre a mesa, acertando dois dos acionistas com uma pancada na cabeça. Eles se desfizeram em pó instantaneamente. "Monstros", pensei. Era óbvio pela conversa, mas não pela aparência, que era completamente humana.

Saí de dentro do tubo de metal, que havia se partido ao meio no impacto, jogando eu e Elly para lados opostos da mesa. Os dois acionistas restantes se viraram para Elly e depois para mim:

— Semideuses?! — exclamou o primeiro.

— Como conseguiram chegar aqui?! — exclamou o segundo, atordoado.

— Ok. Plano B — disse eu, sacando minha adaga da bainha e afugentando os monstros por um breve momento.

Elly já estava de pé do outro lado da mesa, o arco preparado com uma flecha de ponta de bronze. Antes que eu pudesse olhar para ele, encontrei o olhar do diretor Kallan. De todos ali, era o mais amedrontador que eu já vira na vida. Sua aura agora estava tão intensa e perigosa que, pela janela, vi algumas plantas do lado de fora murcharem até virar pó. Ele exibiu um breve sorriso, satisfeito, como se estivesse contente com aquilo ou já esperasse que isso fosse acontecer.

— Finalmente... — disse o diretor, numa voz aguda. — Eu já estava enlouquecendo de ter que te esperar.

— O quê? — perguntei, assustado. — E-Então você—

— Ora, me poupe, garoto — interrompeu Kallan, desabotoando os pulsos do terno e depois o colete. — Você acha mesmo que iria entrar no meu território e eu não ficaria sabendo? Quanta inocência da sua parte.

— Eu tenho olhos e ouvidos em todo lugar — continuou ele. — Até nos dormitórios, quando vocês decidiram vir até aqui aceitar sua sentença de morte.

Naquele momento, me perguntei se Kallan também viu o que fizemos e falamos no banheiro com Dionísio. Era constrangedor pensar nisso, mas não era uma boa hora para me preocupar com um pensamento daquele. Eu estava apavorado demais apenas com sua presença naquela sala.

— Então…você deixou que viéssemos até aqui e não nos matou no caminho — concluí. — Por quê?

— Por quê? Você ainda pergunta o por quê?! — A madeira sob os pés de Kallan rangeu e se partiu, formando uma pequena cratera. — Eu estou aqui há anos! Preso nesse lugar sem poder comer nem mesmo um semideus sequer. E como se já não fosse o suficiente, me obrigaram a ensinar agricultura a essa cria repugnante de Deméter. Ensinar algo que eu fui criado para destruir!

Aos poucos, ele retirava as vestimentas de cima, até ficar com o peitoral à mostra. Seu abdômen definido e bronzeado era marcado por cicatrizes e cortes que pareciam feitos por uma lâmina afiada – uma foice, talvez.

— Eu destruo plantações com minhas pragas, deixo o solo infértil, levo doenças àqueles que sobrevivem da colheita. Não faço esse trabalho desde que me tornei diretor. E depois que vi vocês dois vindo na minha direção... — Ele lambeu os beiços enquanto, dos cantos das paredes, baratas, moscas e até gafanhotos do lado de fora se reuniam sobre seu peitoral, cobrindo-o como uma camiseta feita de insetos. — Eu não pude deixar que meu banquete da noite fosse simplesmente morto por outras mãos que não fossem as minhas!

O chão também estava infestado de insetos, que passavam por meus pés e subiam aos poucos pelo meu corpo. Os dois acionistas que nos observavam, tremendo de medo, soltaram uma desculpa no ar:

— V-Vamos chamar os guardas!

Mas Elly disparou duas flechas, uma em cada cabeça, transformando-os em mais um monte de poeira na sala.

— Muito bem, pirralho planta — disse Kallan, feliz. — Eles só atrapalhariam a nossa diversão.

Kallan avançou contra mim, os insetos abrindo caminho ou entrando por debaixo de sua calça pelos pés. Em uma fração de segundos, eles se amontoaram na mão dele, esticando-se até formar uma longa foice negra e brilhante. O golpe passou zunindo por cima da minha cabeça, e eu me abaixei bem a tempo. A pressão do ataque abriu uma enorme fissura na parede atrás de mim, grande o suficiente para revelar o corredor do outro lado, salpicado de respingos vermelhos escorrendo por todos os cantos.

Essa não, os guardas, pensei, o coração disparado. Por que eles tinham que mudar de lugar justo agora?! 

Dava para ver uma poça de líquido vermelho escoando por baixo da porta ao lado, mas as investidas de Kallan não me davam tempo para me preocupar com aquilo. De repente, ele agarrou meu rosto e me ergueu contra a parede, os insetos se revirando, tentando cobrir minha cara. Foi então que uma flecha acertou a parte superior de suas costas, arrancando um urro de dor – dele e dos insetos, juntos. Sim, um urro, porque a voz e o jeito assassino dele não tinham mais nada de humano.

A cada golpe que eu desviava ou aparava com a lâmina da minha adaga voltada para cima, era como se Kallan ganhasse mais anos de vida. Mechas brancas tingiam seus cabelos antes castanhos, crescendo descontroladamente. Seus olhos, que eram castanhos, agora brilhavam num tom alaranjado e doentio, como uma laranja podre, e a pele se enrugava tanto que a cicatriz no canto da boca parecia ainda mais grotesca.

Ele se virou para Elly, que já preparava outra flecha, um olho fechado e uma expressão séria para manter a mira. Mas, antes que eu pudesse reagir, Kallan me arremessou contra ele. O impacto fez Elly disparar por acidente, e a flecha acertou o lado inferior esquerdo das minhas costas, perto dos rins. Gritei de dor enquanto colidia com meu namorado e, em seguida, com a parede atrás dele. Elly sofreu o impacto de ambos os lados, mas conseguiu se manter consciente e firme o bastante para ficar de joelhos ao meu lado.

— Gregory, por favor! — dizia ele, me sacudindo de um lado para o outro, uma lágrima verde escorrendo pelo rosto. — Me perdoa, eu não queria-

Quando ele olhou à frente, lá estava Kallan, se aproximando. Mais insetos subiam pelos pés dele, quase formando um vestido de baile ao redor do corpo. O monstro segurou a mesa de reuniões e, com uma só mão, a arremessou contra as prateleiras cheias de uísques e bebidas caras, que se estilhaçaram em mil pedaços junto à madeira e qualquer outro material que as compunha.

Não havia tempo para reagir; qualquer movimento parecia inútil. Mas Elly olhou para a flecha fincada nas minhas costas e pensou rápido. Era agora ou nunca.

— Espero que me perdoe por isso — murmurou, puxando a flecha para cima.

A dor agonizante me acordou na hora. Aos poucos, me ergui, mas não rápido o suficiente. Kallan estava bem diante de nós, parecia até maior, talvez com mais de dois metros.

— Vocês não podem fazer nada contra mim — disse ele, o rosto quase completamente coberto de insetos, assim como o chão. — Apenas aceitem o seu nobre destino de virar nosso jantar. Garanto que ajudarão muitas bocas a se alimentar...

Uma lacraia rastejava por cima da minha mão no chão; eu mal tinha força para sustentar meu próprio peso.

— Nem... fudendo — respondi, a voz ofegante.

Minhas mãos estavam pressionadas com tanta força no chão que Elly nem percebeu o que estava acontecendo por baixo da terra. No mesmo instante, uma grossa camada de raízes explodiu o vidro da janela acima de nós, lançando-a – bordas de metal enferrujado e tudo – na direção de Kallan, que se desviou um pouco para o lado e recuou alguns centímetros. Eu sabia que, se ele se aproximasse mais, as raízes se dissolveriam na aura dele. Meu plano era outro: comandei os grossos cabos terrosos para se entrelaçarem em mim e Elly, puxando-nos para trás através da abertura na parede.

Deu certo, bem a tempo de escaparmos dos insetos carnívoros. As raízes nos arremessaram para o campo, uns quatro ou cinco metros longe do edifício, que tremeu com a fúria de Kallan. Elas tentaram resistir o máximo que podiam, amontoando-se na abertura para nos dar tempo de fugir, mas era inútil contra o poder dele.

Elly se levantou, provavelmente com algumas costelas quebradas, e me ajudou a ficar de pé, olhando impressionado para o que eu tinha feito com as raízes. Nem ele conseguiria algo assim.

— Ainda consegue andar? — perguntou ele.

Assenti, quase sem forças para mexer a cabeça.

— Precisamos sair daqui antes que—

Antes que Elly terminasse, um ruído alto ecoou por toda a área das estufas, e as luzes brancas se tornaram vermelhas em alguns pontos. Guardas – monstros disfarçados e mortais –, harpias e cães infernais (ah, como eu pude esquecer deles, que idiota) se agitaram ao longe, subindo a colina em direção ao edifício. Não que já não fossem vir depois do rugido feroz de Kallan e do barulho da janela explodindo, mas aquele som confirmava que algo estava errado ali.

Começamos a correr, mesmo que na velocidade de uma tartaruga. Juntei forças para enfiar a mão na pochete e pegar um pedaço de ambrosia, o néctar dos deuses, que mais parecia uma torta fofinha de frango. Dei pequenas beliscadas, sentindo minha energia se revitalizar aos poucos. A dor nas costas, que agora diminuíra graças ao néctar, agora não me impedia de andar mais rápido. Seguíamos na direção oposta aos monstros, mas a cerca de alambrado que delimitava a área ainda parecia distante.

A maioria dos monstros já havia chegado ao topo da colina, alguns entrando apressados pelas portas da frente e outros rodeando o perímetro do local. Um trio de harpias nos avistou de longe, soltando guinchos ensurdecedores enquanto cortavam o ar em alta velocidade. Ao lado delas, cães infernais, com pelos da cor da noite e do tamanho de carros blindados, avançavam com olhos vermelhos brilhando na escuridão. Era o tipo de visão que faria qualquer um morrer literalmente de medo, e aqueles olhos faiscantes só pioravam o quadro.

Eles estavam praticamente no nosso encalço quando uma série de explosões incandescentes iluminou a vasta base da colina. Até os monstros pararam, observando com temor o fogo que se alastrava pelas fileiras de estufas, consumindo tudo em seu caminho, até mesmo o edifício dos dormitórios. 

Aquelas chamas... Não, não tínhamos tempo para isso, agora não, pensei tentando conter o meu pânico. 

Meu ferimento já estava bom o suficiente para eu aguentar a dor e andar sozinho, e Elly já não tinha voz para continuar cantando a canção de cura que aprendera com os filhos de Apolo na Base 0. 

O que era essa tal Base 0? Você logo vai descobrir.

Correr não era uma opção; a dor ainda nos limitava a apenas apressar o passo. Aproveitamos a distração das harpias e dos cães, que ficaram desorientados e choramingando na grama – a audição deles, duas ou três vezes melhor que a nossa, tornava as explosões um tormento –, para fugir dali o mais rápido possível. Depois que o susto inicial passou, estávamos mais longe, a poucos metros da cerca que separava a área de cultivo da floresta. Eles se apressaram para nos alcançar, e nós nos esforçamos ao máximo para chegar à barreira.

Quando alcançamos a cerca, os monstros estavam a menos de dez metros de distância. Raciocinar naquela situação era impossível, então segui meus instintos e comecei a escalar o alambrado, com Elly logo atrás de mim. Eu estava prestes a atravessar para o outro lado quando uma das harpias tentou agarrar Elly pela aljava, rasgando-a com as garras e fazendo as flechas caírem do outro lado da cerca. Os cães infernais também chegaram, mas apenas latiam na nossa direção, deixando as harpias cuidarem do ataque inicial, já que tinham chegado primeiro. Eles garantiam que não passaríamos dali.

Eu não precisava dizer em voz alta que não planejava enfrentar aqueles tanques de guerra de quatro patas – seria o mesmo que pedir para morrer –, mas precisávamos fazer algo além de ficar parados enquanto virávamos jantar de mulheres-galinha voadoras. Quando vi que Elly ameaçava se soltar da parte alta do alambrado e cair na direção daquelas bocas caninas e babentas, saquei minha adaga da bainha o mais rápido que consegui. Equilibrei-me com uma mão e um pé na cerca, fincando a lâmina na lateral da cabeça depenada da harpia mais próxima. Ela se desfez em pó num piscar de olhos.

As outras duas não gostaram nem um pouco de ver a irmã virar farelo de milho e ameaçaram investir contra nós. Brandi a adaga para mantê-las afastadas, gritando para Elly:

— Continua subindo, rápido! 

— Para trás! — gritava eu toda vez que elas se aproximavam demais.

Elly conseguiu saltar para o outro lado, rolando pela grama. Terminei de alcançar a borda da cerca e me joguei do alto num movimento rápido, desviando das garras das harpias e das bocas gigantescas dos cães infernais, que se debruçavam sobre a cerca, quase a ponto de arrebentá-la com seu peso, indignados.

Não esperamos para ver quanto tempo a cerca resistiria àquela pressão quase que em toneladas. Corremos em direção à floresta, e eu deixei um presentinho bem cheiroso nascendo próximo ao alambrado – outra Flor Cadáver, germinando rápido com um fedor nauseante que os afugentou, pelo menos por enquanto. Enquanto nos embrenhávamos entre as árvores, o som dos monstros enfurecidos ecoava atrás de nós, mas a floresta nos oferecia uma chance de respirar, mesmo que por pouco tempo.

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