O céu estava pálido e cinza. Nuvens enegrecidas cobriam o sol que não tinha domínio naquela manhã aparentemente chuvosa. Vento gelado e salgado uivava, invadindo as paredes do palácio real, um frio intenso que gelava até os ossos.
— Pare de tremer Elise, precisamos deixá-la apresentável — sua mãe ralhou ao observar seus tremores constantes que atrapalhavam o trabalho das aias. Elise se comprimiu silenciosamente. Gostaria de retrucar, dizer o quão gelado estava o seu quarto e que ainda não havia desenvolvido domínio sobre os sentidos de seu corpo, mas a única coisa que fez foi anuir silenciosamente.
A lareira ainda não tinha sido acesa, de maneira que a única coisa que poderia aquecê-la naquele momento eram as peles de doninha que seriam postas em seus ombros quando estivesse pronta para descer e saudar o novo rei.
Completava um mês redondo desde a morte de seu pai. O palácio estava tomado pelo luto, silencioso e escuro como nunca esteve antes. Aquilo a sufocava mais do que tudo. Ter a perda de alguém que amava profundamente era terrível, mas a todo o momento se deparar com os rastros de tal morte, relembrando-lhe o terrível momento, era pior ainda.
Quando o último enfeite foi colocado em seus cabelos, sua mãe postou-se à sua frente, observando-a lentamente. Era uma mulher exigente, traços angulosos e elegantes demonstravam a aspereza de seu coração e a seriedade de seus modos, mas naquele momento, em que os seus olhos negros como a noite se despontaram sobre Elise, ela sentiu um calor emanar de suas iris. Por mais que não gostasse de demonstrar, sabia que estava preocupada.
— Deve se lembrar de toda a etiqueta que lhe ensinei. Não o encare diretamente nos olhos, nem faça comentários quando não solicitada — Elise respondeu com um aceno. Naquele momento, um sorriso consternado surgiu nos lábios de sua mãe que pousou suas mãos delicadas no rosto da filha — tudo está para mudar, qualquer exigência, qualquer ordem que ele fizer, devemos acatar sem retrucar, entende?
— Sim, mãe — respondeu lacónicamente, engolindo em seco.
— Devemos descer e tomar nossos lugares, Georgina e George já devem estar a postos — após os dizeres de sua mãe, as duas mulheres se dirigiram ao seu destino silenciosamente.
A caminho, Elise observou com os olhos entristecidos as paredes imponentes do palácio, os corredores escuros pelas cortinas de camurça cobrindo qualquer entrada de luz natural. Apesar de seus sentimentos conflitantes, havia uma pequena chama que lhe aquecia do frio agourento e do aspecto sombrio que a rondava.
Quando era apenas uma menina, visitava regularmente as terras do norte, onde passava uma temporada ao lado dos primos distantes. Muitos pensavam que sua proximidade com a tia Perla poderia ser uma boa influência quando crescesse, era reverenciada como um exemplo a ser seguido de feminilidade e tradição.
Era insuportável esses momentos onde qualquer movimento seu era alvo de críticas e palmatórias, havia tudo para deixar-lhe memórias terríveis e aversão ao lugar, isso se não fosse… Godfrey.
Um simples cavalariço que lhe fazia companhia nos pequenos momentos livres que tinha. Era maravilhoso se refugiar nos estábulos, era como adentrar num mundo novo ao lado de seu mais novo companheiro e amigo.
Aqueles encontros duraram poucas temporadas, pois logo ele partiu ao lado de seu primo mais velho, contudo ela jamais poderia esquecê-lo. Secretamente, nutria sentimentos amorosos por ele e naquele dia, quando seu primo iria reivindicar o trono, ela tinha certeza de que Godfrey estaria ali. O seu coração se inundou de uma felicidade plena ao pensar que após tantos anos finalmente se reencontrariam.
Assim que adentraram no cômodo luminoso e elegantemente decorado, Elise avistou a rainha Georgina e seu irmão.
— Minha filha, que bom que chegou — a rainha a recebeu com um largo sorriso, fazendo um aceno para se aproximar. Elise depositou um beijo em sua bochecha — está muito linda, Rosélia fez um bom trabalho — a rainha sorriu para a sua outra mãe.
— Nosso marido ficaria satisfeito, não acha, Georgina?
— Em partes, tenho certeza de que gostaria de vê-la radiante na coroação de seu irmão e não no de seu primo — Georgina lançou um breve olhar ao filho que sentava não muito distante dali. Ele não pareceu se importar e ela apenas soltou um longo suspiro. Suas mãos ainda permaneciam sobre as de Elise que sentiu um aperto repentino.
— Georgina, querida, não adianta dizer mais nada, ele teve tempo o suficiente para reconsiderar, não é mesmo George? — Rosélia indagou ao rapaz que apenas acenou brevemente.
— Apenas quero que isso acabe rapidamente — disse em suspiro profundo — Edgar está atrasado — criticou.
— Apenas alguns minutos, majestade, ou devo dizer, Georgina? Não é mais a rainha… — Edgar adentrou no cômodo tal qual uma aparição pegando a todos de surpresa, Elise teve de conter um grito ao avistá-lo e ele pareceu notar seu espanto, pois a observava com um sorriso de satisfação. Edgar estava mais alto do que se lembrava e muito bonito. O excesso de peles e camadas de roupa que o envolviam camuflava o seu porte, mas era notável que era um homem constituído de músculos muito bem rearranjados. Seus olhos azuis e glaciais observavam com grande interesse a pequena recepção preparada para ele.
— Você foi avistado há trinta minutos nos portões, a capital é grande, mas não o suficiente para não chegar ao palácio dentre dez minutos — ela contra-argumentou fazendo uma careta de desgosto — o que estava fazendo, Edgar?
— É majestade, e não lhe devo justificativas.
— Parece animado, Edgar, fico feliz em ver que está se acostumando com a ideia de ser rei… — George se levantou de seu assento, caminhando em direção ao primo, mas antes que pudesse dar mais algum passo, uma mão em punho o acertou, fazendo-o cair no chão. As três mulheres correram para acudir George, que se recuperava do golpe repentino.
— Está louco, Edgar? Por que fez isso? — Elise disse em um misto de surpresa e incredulidade.
— É melhor não se intrometer nisso — disse em um tom de aviso. Elise engoliu em seco e voltou seus cuidados ao irmão que recobrava a consciência. Com o seu lenço, limpou o sangue que escorria de seu nariz.
Edgar não pareceu comovido com a cena e sentou-se em uma poltrona.
— Então, aqui estou eu. Tirado de meu território abruptamente, obrigado a vir para a capital porque um jovenzinho diz não estar pronto para reinar — comentou num tom áspero observando George se levantar com a ajuda das mulheres que o amparavam — gostaria que me explicasse o que se passa nessa cabecinha de melão? — Elise teria rido da lembrança de tal apelido se ainda não estivesse em choque pela ação brutal do homem para com o irmão.
— Sabe muito bem o motivo, serei um verdadeiro desastre Edgar! — replicou, ainda tentando estancar o sangue com o lenço de Elise.
— Bobagem!
— Estou falando sério, não estou apto para reinar, quero que Lindore fique em boas mãos e sei que você é o mais indicado para isso….
— Georgina, por que não dá um tapa na orelha de seu filho? Por acaso não ouve o que ele diz?
— Você já bateu nele o suficiente — retrucou secamente.
— Apenas fiz o que você e o falecido rei deveriam ter feito. George é um fracote, isso sim. Deveria tê-lo deixado participar da empreitada contra os piratas, teria se tornado muito mais forte — Edgar resmungou, uma carranca se formando. Na época, George era apenas um rapazote desengonçado e Georgiana temeu que fosse morto no primeiro enfrentamento com os inimigos, de maneira que conseguiu convencer o rei a liberá-lo da tarefa. Edgar participou na época, Elise se lembrava bem do quão ficou preocupada ao receber a notícia de que Godfrey ao lado de Edgar estava prestes a enfrentar um exército no mar. Felizmente, saiu vitorioso e recebeu uma condecoração pelo ato. Foi a última vez que o viu, no baile em sua homenagem devido suas grandes contribuições para a batalha. Tanto tempo se passou desde então.
— Por favor, Edgar, sei que concorda que não sou o melhor para o cargo…
— E devido a esse seu achar eu devo ser penalizado? Pensa que não tenho mais o que fazer? Está relutante demais para alguém criado justamente para reinar.
— Edgar… — George tentou dizer alguma coisa, mas desistiu, ficando em silêncio. Quando percebeu que o primo não diria mais nada, Edgar levantou-se de súbito e caminhou para o centro da sala.
— Se deseja agir como um jovenzinho assustado que ainda bebe das tetas da mãe, que assim seja, mas esteja disposto a enfrentar as consequências!
— Consequências? — todos repetiram em uníssono.
— Exatamente. Até que decida retomar suas obrigações, sua família está expulsa do palácio com todas as regalias destinadas à família real cortadas até segunda ordem…
— Não pode fazer isso! Eu tenho o sangue real! — George se levantou abruptamente, esbravejando contra Edgar que sorria languidamente.
— Pensei que tivesse aberto mão de seus direitos como herdeiro de Lindore… mas espere, primo, ainda não terminei de dizer minha sentença.
— Tem mais? — Georgina indagou, surpresa pela atitude de Edgar.
— Claro que sim. Elise se tornará minha empregada pessoal.
— Elise não! Deixe-a fora disso Edgar — dessa vez, foi sua mãe que protestou em um tom de voz fervoroso. Elise ficou em silêncio, encarando a face risonha de Edgar que a observava analiticamente.
— Tudo isso pode ser resolvido de maneira rápida. Só depende de uma pessoa — ele lançou um olhar sugestivo para George, que tinha o rosto virado para o chão. Ele estava envergonhado o suficiente para não encarar o peso dos olhares que pousavam sobre si.
— George… — a mãe de Elise pediu, num tom suplicante. Ele não atendeu ao seu chamado, saindo do recinto, deixando a todos em estado de estupor.
— Que pena — Edgar murmurou em descontentamento.
— O que você está fazendo…
— Eu estou no meu direito, Georgina. Eu darei ao seu filho o prazo de um ano para reconsiderar. Uma pena que não posso retirar todos os títulos e terras a que têm direito.
— Está sendo irracional — a rainha esbravejou.
— Pelo contrário, fosse qualquer um e você e sua família estariam em ruínas — Edgar se virou para a princesa que assistia o desenrolar dos acontecimentos em espanto e disse num tom de voz muito natural como se todas as ações recentes não tivessem significado algum — Elise, me prepare um banho, toda essa agitação me deixou exausto.
— O quê? — a moça exclamou, atônita.
— Não escutou o que disse? Prepare um banho para mim e seja rápida — Elise olhou para as duas mulheres, pedindo ajuda sobre o que deveria fazer.
— Vá, Elise — Georgina pediu. Elise obedeceu deixando o recinto. Ela sabia que suas mães tentariam convencer aquele homem de temperamento difícil, o fariam reconsiderar toda a situação. Estava certa disso.
A caminho dos aposentos reais, seu coração tremeu por alguns instantes. Estava com medo do que a esperava, seria mesmo uma criada ou era apenas brincadeira de Edgar? Ela esperava que sim, era injusto o que fazia, ela nada tinha a ver com toda a situação, era apenas irmã do príncipe herdeiro, somente isso. O que ele planejava com tudo aquilo?
Sem muita dificuldade, Elise chegou ao mais novo quarto de Edgar. Ela suspirou profundamente antes de abrir a porta e se deparar com um cenário completamente diferente ao que estava acostumada.
As cortinas cor sangue e com bordados das iniciais do nome de seu pai haviam sido trocadas. Não estavam mais decoradas com o PJ de seu pai e sim com o EH. Edgar Hundemberg, O novo rei de Lindore. Ela acariciou o tecido pesado, sentindo a aspereza dos bordados. Elise observou o restante da decoração, os móveis foram trocados, as cadeiras estofadas de vermelho se tornaram azuis, sofás, mesas, cadeiras, até mesmo a cama. Parecia estar em outro quarto, completamente diferente do que frequentava quando menina.
Ela fechou os olhos momentaneamente, tentando conter as dolorosas lembranças que a inundaram naquele momento. Uma sensação terrível invadiu o seu peito, como se repentinamente, o ar que sugava não lhe fosse suficiente. Ela precisava sair dali, era cedo demais para estar naquele lugar, para ficar imersa em tantas lembranças.
Elise se virou repentinamente, seu corpo se trombou com o de outro. Sem erguer o olhar, já sabia de quem se tratava.
— Meu banho já está pronto?
— É claro que não. Agora que estamos só nós dois, Edgar, diga sinceramente, isso é uma brincadeira, não é? Não está falando sério em me tornar sua criada? — suas palavras eram ásperas e proferidas de maneira rápida denotando o seu desespero.
— E isso é um problema para você? — retornou calmamente, procurando pela jarra de vinho na mesa redonda de alabastro e goleando da taça.
— É claro que é! Imagine o que todos devem estar dizendo? Uma mulher da nobreza, solteira, servindo ao mais novo rei, o que lhe parece?
— Muito melhor do que imaginei — comentou pensativamente.
— O quê? — Elise o indagou, estupefata.
— Sei que isso afetará George. Nenhum irmão mais velho que se preze aguentaria ver a irmã mais nova envolta de tais rumores, servindo um homem que poderia ser potencialmente seu marido. Sei que tão logo ele reconsiderará a ideia e retrocederá.
— Então é isso? Pouco importa para você o que acontecerá comigo, portanto que consiga atingir seus objetivos? — Edgar deixou a taça de lado e se aproximou lentamente de Elise e então segurou o seu queixo delicadamente, erguendo o seu olhar.
— Você é muito bonita, tem uma boa linhagem, riqueza… Assim que tudo se resolver, arranjar um pretendente para você não será um problema — Elise sentiu que os dedos do novo rei deslizavam por sua pele em uma carícia suave. Os olhos azuis de Edgar a fitavam intensamente. Elise sentiu seu coração se acelerar. Repentinamente, ele soltou o seu queixo, tomando certa distância — mas, eu não sou tão mal quanto pensa. A minha intenção é que de fato pensem que estou sendo um tirano com você, contudo, não terá de fazer papel de criada, ao menos não em meus aposentos.
— Está dizendo que faremos um teatro?
— Precisamente — respondeu de imediato.
— E se não quiser fazer parte? — novamente os olhos de Edgar estavam pousados nela. Por alguma razão, sentiu calafrios.
— Como rei, tenho a liberdade de exilar quem quiser e quando quiser, suponho eu que não queira ver sua mãe exilada para terras distantes, ou quer? — Elise engoliu em seco e negou com a cabeça. Edgar encheu a segunda taça de vinho e ofereceu a Elise.
— Então você será a minha parceira de negócios. Um brinde a nós — disse erguendo as taça e depois a levando aos seus lábios — Essa noite haverá um banquete, você me servirá como uma boa empregada e eu serei um homem de temperamento terrível, espero que consiga deixar algumas lágrimas cair durante o evento — acrescentou. Elise arqueou uma de suas sobrancelhas.
— Imagino que tenha me passado todas as instruções possíveis, sendo assim estarei me retirando — Elise deixou a taça de vinho intocada sobre a mesa. Ela virou-se em direção à porta, mas antes que pudesse concluir seus objetivos e deixar o cômodo, Edgar a segurou.
— Não tão rápido. Devo lembrá-la de que uma empregada não tem acesso aos aposentos de uma princesa, somente quando para servi-la — as sobrancelhas de Elise se uniram ao compreender suas palavras.
— Não está dizendo que…
— Sim. Como sou um bom parceiro de negócios, disponibilizei para você um dos aposentos de acesso ao rei. Somente eu e você saberemos disso.
— Espere, terei que usar os aposentos da rainha!? Isso é um escândalo — exclamou horrorizada. A última coisa que queria naquele momento era dormir tão perto de Edgar.
— Prefere dormir como as outras empregadas? Em um cômodo minúsculo com camas atrás de camas? Não diga nada, apenas aceite o que estou te oferecendo, sim? Se não, poderei reconsiderar minha gentileza — Elise fechou seus lábios. Sabia que qualquer intenção em fazê-lo mudar de ideia havia sido anulada a partir daquele momento. Era impossível convencer Edgar naquela altura — por ali — ele indicou o caminho em que dava para a porta de acesso ao seu mais novo aposento. Era terrível pensar que teria de compartilhar um quarto tão próximo daquele homem estupido.
Elise fechou a porta atrás de si e então deixou-se cair sobre uma cadeira qualquer.
Ela nunca foi próxima de seu primo, não tinha razão para ser. Quando frequentava a sua residência, era raro vê-lo alguma vez, o que para ela não era um problema, estava sempre ocupada por Pearl ou então brincando com seu amigo Godfrey…
Oh Godfrey, quando será que iria vê-lo? Estava tão ansiosa para encontrá-lo, imaginou que estaria ao lado de Edgar… E se ele não tivesse vindo? Não, seria terrível! Tanto tempo esperando para revê-lo….
Ela levantou-se e espiou pela janela. Não encontrou nada de interessante, no fundo, pensou que o avistaria na sua armadura reluzente atravessando os jardins graciosos do palácio, mas não foi esse o caso. Talvez devesse esperar pelo momento em que o encontraria no banquete daquela noite.
Elise se olhou no espelho. O vestido que usava era diferente de tudo o que já havia experimentado até então.
O tecido de algodão grosseiro era uma novidade para sua pele acostumada com sedas luxuosas.Era leve e lhe permitia uma mobilidade da qual não podia desfrutar ao utilizar os trajes pesados e rigorosos. Seus lábios se comprimiram. Não podia ser diferente, era usado pelas empregadas do palácio que percorriam longas distâncias, sempre atarefadas para atender um nobre, como ela.
— Já está pronta, Elise? — Edgar bateu em sua porta. Ela não o respondeu, abrindo a porta para revelar a sua figura. Seus olhos perscrutaram a figura de Edgar que a aguardava pacientemente. Suas vestes de seda azul royal e brocado dourado eram de finíssima qualidade e lhe envolviam os músculos bem torneados e desenvolvidos, contudo o que mais havia lhe chamado a atenção era o artefato que carregava na cabeça que parecia roubar toda a atenção para si.
— A coroa lhe caiu bem — comentou mecanicamente ao avistar a joia depositada nos cabelos negros de Edgar, o dourado com o preto fazia um belo contraste. Ele se remexeu, desconfortável com a observação. É claro que estaria, detestava mais do que qualquer outra coisa tudo aquilo, sentia como se estivesse usando uma fantasia, bem como Elise, uma princesa vestida de empregada. A piada estava pronta.
— É melhor nos colocarmos a caminho — ele ofereceu o braço a Elise que negou de imediato.
— Sou sua criada pessoal, não sua acompanhante, lembra-se?
— Bem lembrado.
Edgar e Elise colocaram-se a caminho do salão de banquetes.
— Acha que os assustará apenas sendo um tirano comigo? — indagou genuinamente curiosa.
— Tenho algumas cartas na manga.
— Estou curiosa para saber o que é.
— No momento certo saberá — retrucou com um sorriso sombrio que a fez ter calafrios. Após o curto diálogo, não se falaram mais.
Elise estava logo atrás de Edgar quando adentraram no salão. O aroma da comida emanava pelo cômodo, provocando em seu estômago uma banda de percussão completa. Havia uma quantidade considerável de nobres que aguardavam a chegada do novo rei, ansiosos para ter um vislumbre da posição que Edgar iria tomar. Mal podiam esperar que seria a pior possível.
O salão que antes estava alegre e cheio de vida silenciou-se por completo. A chegada de Edgar não causou um grande alvoroço de convivas e palmas como o esperado, muito pelo contrário, era visível como todos estavam acuados e isso se devia a expressão aterrorizante que se formou na face de Edgar.
O rei ignorou os convidados presentes, marchando em direção ao seu assento. A carranca áspera era a única coisa que se dignava a mostrar aos novos súditos. A própria Elise se sentia incomodada.
Quando Edgar tomou o seu lugar e Elise postou-se em pé atrás dele, os sons das taças e talheres raspando o prato aumentaram gradualmente, mas as conversas já não existiam mais.
— Sirva-me — ele bateu a mão sobre a mesa. Elise obedeceu e dispôs o prato à frente do rei que pôs-se a comer silenciosamente, um olhar penetrante varrendo o salão. A comida que antes parecia tão saborosa havia se tornado cinzas na boca dos nobres que comiam a contra gosto.
Quando descobriram que o rei não faria uma coroação de pompa como o esperado, houve um sentimento de desapontamento e receio. Para Edgar aquilo era um inconveniente temporário e não fazia sentido gastar com um evento para ser substituído rapidamente pelo verdadeiro rei.
Subitamente, ele ergueu a taça, Elise se movimentou com agilidade para servi-lo, despejando o vinho sobre ela. Quando ele olhou o conteúdo, jogou a taça contra a parede do outro extremo do salão. Vinho esparramou-se sobre o chão e caiu em alguns convidados. O estalido metálico ecoou pelo cômodo.
— Quem disse para colocar vinho? — perguntou num grunhido. Se Elise não soubesse ser atuação, teria se assustado com a brutalidade. A jovem apenas abaixou a cabeça, praguejando Edgar com os nomes mais hediondos possíveis — responda-me! — ela mordeu os lábios com força.
— Vossa majestade ergue a taça, pensei que…
— Sua tola! Não deve pensar em nada, somente faça o que ordeno — gritou feroz, os olhos injetados de sangue.
— Sim, vossa majestade — respondeu com a voz embargada. Precisava chorar naquele instante, mas era terrível nisso, embora internamente estivesse aterrorizada, não conseguia se forçar a chorar.
— Limpe a sujeira que você fez — ordenou, recostando-se em seu assento.
— Sim, majestade — respondeu num murmúrio. Os criados já tinham um balde com água à disposição. Era comum que o vinho derramasse ou pedaços de comida caíssem no chão, é claro que nunca ocorriam de maneira deliberada como aquela.
Elise se ajoelhou e começou a limpar os rastros de onde a taça tinha voado. Era impressionante o quão longe aquele pedaço de metal havia percorrido. Enquanto torcia o pano, notou a aproximação de alguém. Fechou os olhos esperando pelo pior.
— Deixe-me ajudá-la — ela conseguiria reconhecer aquela voz em qualquer distância. Era Godfrey! Elise o encarou, um largo sorriso se estampando em seus lábios. Seu coração batia, exultante. Após tantos anos, finalmente o encontrava.
— Godfrey — disse num sussurro, aproveitando-se para saborear o nome que há muito martelava em sua mente. O cavaleiro a encarou com ternura.
— Godfrey, venha cumprimentar o seu rei — Edgar ordenou.
— Edgar, ou devo dizer majestade? — Godfrey se levantou, havia um olhar desapontado dirigido ao novo rei — não pensei que tivesse mudado tanto após sentir uma coroa em sua cabeça.
— Dê o poder ao homem…
— E descobrirá quem ele é, sim, se aplica perfeitamente a você.
— Está criticando o seu rei? — indagou ameaçadoramente.
— Estou criticando um tirano — todos prenderam a respiração ao ouvir a acusação de Godfrey. Edgar apenas riu.
— Não se completaram nem vinte e quatro horas e já me tem como tirano? Isso é só o início — Elise observou a figura de Edgar e por um momento, esqueceu-se de que era apenas atuação. Avistá-lo daquela maneira era assustador, parecia um homem completamente louco e sádico.
— O início do quê?
— Do meu reinado — respondeu lentamente como se com suas poucas palavras conseguisse mostrar a todos o futuro que os esperada — mas ainda existe um resquício de sanidade em mim, todos sabem que o ex-príncipe George tem a oportunidade de mudar a sina do reino e de todos os cidadãos, basta apenas uma palavra e eu entrego a coroa — uma multidão de olhares caiu sobre George, que permanecia sentado no extremo salão, o lugar mais desafortunado. Somente a baixa nobreza era relegada em um lugar tão longe do rei — nada? Mas que lástima…
— Eu não participarei disso, Edgar — Godfrey anunciou. O rei estreitou os olhos.
— Está quebrando o seu juramento de cavaleiro?
— Sigo apenas o meu coração — Godfrey desembainhou a espada. Os demais soldados estavam se aproximando para contê-lo, Edgar o observava serenamente, erguendo a mão para dispersar a sua guarda. O cavaleiro deixou a espada nos degraus no pé direito alto onde a mesa do rei estava posta e então deixou o salão para trás. Edgar goleou da taça e encarou o portal por onde Godfrey havia saído. Elise queria se levantar e correr atrás dele, mas sua atual posição desfavorável a impedia.
— Vossa majestade, se me permite dizer, se não está interessado no trono, muito menos Gerge, porque não o deixa para mim e… — um homem de meia-idade se pôs a falar, mas foi rapidamente silenciado por Edgar.
— Quando for chamado para a conversa, Joffrey, se pronuncie, caso contrário, permaneça em silêncio — o homem sentou-se, um silêncio aterrador preenchendo o salão.
— Elise, está demorando demais com essa limpeza, será que é tão inútil a ponto de não conseguir limpar uma simples poça de vinho?
— Perdão, vossa majestade, irei me apressar — respondeu o mais modesta que poderia. No fundo, seu coração fervilhava de ódio, mas como a boa menina que era, sabia controlar suas emoções perfeitamente. Foi constrangedor estar agachada ao chão sendo alvo de tantos olhares, naquele momento só queria desaparecer, mas o seu maldito combinado com Edgar a impedia de concluir tal ato.
Elise enxugou a última poça de vinho e então voltou para o seu posto, tendo o cuidado de limpar as mãos diligentemente. É claro que se tivesse escolha, serviria Edgar com suas mãos imundas para que tivesse uma dor de barriga terrível ou que ao menos ficasse de cama por algumas horas, quem sabe, dias.
— Está muito entediante, por que a banda não nos agracia com uma música divertida? — após a sugestão, os músicos se agrupam e iniciaram uma agradável melodia — está faltando mais alguma coisa… Ah! Já sei! George, se aproxime — o rapaz relutou por alguns instantes, até que então se levantou e se dirigiu ao rei.
— Majestade.
— Dance para nós.
— O quê?
— Disse para dançar, com essa cesta de frutas na cabeça — um sorriso maldoso estampava os lábios de Edgar. Quando notou que George não acataria sua ordem, ele esbravejou — Dance! Ou eu farei sua irmã dançar… Nua — completou arrancando exclamações de todos os convidados. Elise o encarou, estupefata. Sua boca se formou em um perfeito “O”. Ela não conseguia expressar o quão perplexa estava naquele momento.
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