A tempestade parecia um aviso da própria natureza. O vento chicoteava as árvores, fazendo-as dobrar como se fossem de papel. Relâmpagos cruzavam o céu, iluminando por breves instantes a estrada sinuosa e deserta. A chuva caía com força, transformando o asfalto em uma armadilha escorregadia. Dentro do carro, a tensão era quase palpável.
Victor apertava o volante com tanta força que seus dedos doíam. Seus olhos mal piscavam, focados na estrada traiçoeira à sua frente. No banco de trás, Vitória gemia e gritava, suas mãos segurando a barriga que se contraía em ondas de dor insuportável.
— Victor, ela está vindo! — gritou Vitória, suas palavras misturando-se com o som dos trovões e o tamborilar da chuva. — Eu não consigo mais!
— Aguenta, amor! Falta pouco! — Victor olhou rapidamente para trás, seu coração apertado ao ver o sofrimento de sua esposa.
Os gemidos de Vitória ficaram mais altos, quase transformando-se em gritos. Ela se contorcia no banco traseiro, tentando encontrar uma posição que amenizasse a dor, mas era impossível. O bebê estava vindo, e Victor sabia que o tempo estava contra eles.
— Victor, eu não vou conseguir... está doendo demais! — Vitória gritou, lágrimas escorrendo pelo rosto.
— Vai conseguir, sim! — Victor respondeu, mas sua voz estava cheia de desespero. — Pela nossa Elena, você precisa aguentar!
Ele acelerou, tentando ignorar o som dos pneus derrapando na pista molhada. Cada curva parecia mais perigosa do que a anterior, e a falta de visibilidade tornava tudo ainda pior. O limpador do para-brisa mal dava conta da chuva que caía como uma cortina impenetrável.
— Victor, por favor, para o carro! Eu não consigo mais! — Vitória suplicou entre gritos.
Victor sabia que parar era arriscado. Estavam no meio do nada, sem sinal no celular, sem nenhuma residência por perto. A única opção era seguir em frente. Ele olhou para o painel do carro, percebendo que o tanque de combustível estava quase vazio. Como se isso já não fosse ruim o suficiente, os faróis começaram a piscar, ameaçando apagar a qualquer momento.
— Não agora, por favor! — murmurou Victor, como se o carro pudesse ouvir suas preces.
De repente, um relâmpago iluminou a estrada, revelando uma curva fechada logo à frente. Victor tentou reduzir a velocidade, mas os pneus não obedeceram. O carro derrapou, jogando-os perigosamente para o lado.
— Victor! — gritou Vitória, o medo em sua voz agora ainda maior.
Victor lutou para retomar o controle, mas a estrada estava escorregadia demais. O volante parecia ter vida própria, e o carro balançava de um lado para o outro, como um brinquedo nas mãos de uma força invisível.
— Vai dar tudo certo! — Victor mentiu, mais para si mesmo do que para Vitória.
Ele conseguiu estabilizar o carro por um breve momento, mas apenas para ser cegado por um clarão intenso que apareceu à sua frente. O brilho era tão forte que parecia vir do próprio céu, mas era acompanhado por um som estranho, quase metálico, que não combinava com o barulho da tempestade.
Victor instintivamente fechou os olhos, tentando proteger-se da luz ofuscante. Quando os abriu, foi tarde demais. Um objeto escuro e enorme surgiu na estrada. Ele girou o volante com força, tentando desviar, mas a manobra fez o carro derrapar violentamente.
O mundo pareceu desacelerar. Ele ouviu o grito de Vitória ecoar no carro, viu a expressão de dor e medo no rosto dela, e sentiu o impacto antes mesmo de ouvir o som. O carro saiu da estrada, rompendo a proteção de metal como se fosse feita de papel, e caiu em um barranco.
Tudo aconteceu rápido demais, mas ao mesmo tempo, parecia em câmera lenta. Victor sentiu o peso de seu corpo ser jogado contra o cinto de segurança, enquanto o carro capotava várias vezes. Vidros estilhaçaram, o metal se deformou, e os sons eram ensurdecedores.
Quando finalmente tudo parou, havia um silêncio absoluto. Apenas o som distante da chuva e dos trovões quebrava a quietude. Victor, com o rosto coberto de sangue, abriu os olhos.
— Vitória! — ele tentou gritar, mas sua voz saiu fraca, quase inaudível.
No banco de trás, Vitória estava imóvel. Ele tentou se virar, mas sua visão começou a escurecer. Antes de perder a consciência, ouviu algo que não fazia sentido: o som de um choro de bebê.
E então, a escuridão o envolveu.
15 Anos Depois
O amanhecer no pequeno sítio trazia consigo uma rotina humilde, mas cheia de significados para Josefina. Ela acordava antes do sol nascer, ouvindo o canto distante dos galos e sentindo o frio suave da manhã enquanto preparava o café. A fumaça que saía do bule enchia a cozinha de um aroma reconfortante, mesmo que a vida fosse simples e, muitas vezes, marcada pela saudade.
A velha varanda de madeira era o refúgio favorito de Josefina. Ali, com suas mãos calejadas segurando uma xícara de café, ela contemplava o horizonte tranquilo e pensava na vida que teve que reconstruir após a perda devastadora de sua filha, Vitória, e do genro, Victor. Quinze anos haviam se passado, mas a lembrança daquela noite fatídica nunca desaparecera.
No campo, Elena corria descalça pela grama molhada de orvalho. Seus risos ecoavam pelos arredores, e seus cabelos castanhos dançavam ao vento. Ela era a perfeita combinação dos pais: a determinação de Victor e a doçura de Vitória. Seus olhos, grandes e expressivos, carregavam a mesma profundidade dos de sua mãe, como se guardassem um mundo de histórias ainda não contadas.
— Não vá muito longe, Elena! — gritou Josefina, franzindo o cenho enquanto observava a neta desaparecer entre as árvores. — Lembre-se, você não pode ir sozinha até o rio!
— Eu sei, vovó! Não se preocupe! Te amo! — respondeu Elena, virando-se para lançar um sorriso antes de desaparecer na direção do bosque.
Josefina suspirou, deixando-se cair suavemente na cadeira da varanda. Elena era sua alegria, a única razão para seguir em frente após tudo o que havia perdido. Ainda assim, havia momentos em que o vazio deixado por Vitória e Victor parecia sufocá-la.
Aquela manhã em especial trazia lembranças vívidas. Era impossível esquecer a última conversa que teve com a filha. Vitória estava radiante por finalmente realizar o sonho de visitar o litoral, algo que sempre fora um desejo profundo dela. Porém, Josefina estava inquieta. Vitória estava grávida de nove meses e, para Josefina, uma viagem naquela situação parecia um risco desnecessário.
— Filha, por que não espera a Elena nascer? Vocês podem viajar depois, com mais calma e segurança. Essa estrada é traiçoeira, ainda mais com o tempo assim — dissera Josefina ao telefone, tentando convencer Vitória.
— Mãe, você sabe o quanto isso é importante para mim. A Elena vai nascer, e eu quero que ela saiba que a mãe dela viveu de verdade, que lutou para realizar cada sonho. Só falta esse, mãe. Quero sentir o mar, tocar a areia, respirar o ar salgado.
Josefina fechou os olhos, recordando-se da voz empolgada de Vitória. Sua filha sempre fora determinada, mas naquele dia havia algo diferente. Uma urgência, uma necessidade de viver algo maior antes de sua vida mudar para sempre.
— Filha, só me prometa que vocês vão tomar cuidado. Essa estrada não é segura, e o tempo está péssimo.
— Eu prometo, mãe. Vamos com calma. Te amo, até amanhã.
— Te amo também, minha filha. Que Deus proteja vocês.
Essas foram as últimas palavras que Josefina trocou com Vitória. Na madrugada seguinte, o telefone tocou, quebrando o silêncio da noite. Do outro lado da linha, uma voz fria e profissional comunicou que havia ocorrido um acidente.
A memória daquela ligação era como um punhal no coração de Josefina. A notícia de que o carro de Vitória e Victor havia derrapado em uma curva traiçoeira, caindo em um barranco, ecoava em sua mente como um pesadelo eterno.
Elena, milagrosamente, sobrevivera. O socorro chegou a tempo de salvá-la, mas para Josefina, aquilo não apagava a dor de perder sua filha e o genro. Desde então, ela dedicara sua vida à neta, criando-a com amor e protegendo-a de todas as formas possíveis.
Agora, olhando para o céu azul e ouvindo o riso de Elena à distância, Josefina sentia uma mistura de gratidão e tristeza. Apesar de tudo, Elena era a prova de que algo de bom havia resistido à tragédia. E mesmo que a dor nunca desaparecesse, a menina era sua força para continuar vivendo, um raio de luz que iluminava os dias mais escuros.
A SOMBRA DO MEDO
— Elenaaa, vem tomar banho para jantar! — a voz de Dona Josefina ecoava pelo quintal, firme e cheia de carinho.
Quando não obteve resposta, ela insistiu:
— Elenaaaaa! Cadê essa menina?
De repente, uma risada inocente veio do alto da grande mangueira.
— Estou aqui, vó!
Josefina olhou para cima e viu Elena descendo habilmente do galho mais baixo, segurando dois abacates grandes e maduros.
— Menina, quer me matar de susto? Quantas vezes já falei para não subir em árvores? — ralhou Josefina, cruzando os braços, mas o olhar denunciava o rompimento de ver a rede inteira.
— Tá bom, vozinha, desculpa! Vem cá, deixa eu te dar um beijinho. Te amo, vozinha! — Elena respondeu com um sorriso maroto, plantando um beijo estalado na bochecha da avó.
Josefina suspirou e, derrotada pelo carinho da neta, não pôde deixar de sorrir.
— Ah, Elena... Vamos para casa. Vou preparar esse abacate com açúcar para você comer.
— Ebaaaa! Vamos logo, vó!
Quando chegou à casinha simples, Josefina pegou o último restinho de açúcar que tinha. Amassou o abacate com cuidado e entregou à neta, que comeu com entusiasmo.
Enquanto Elena saboreava a fruta, Josefina aproveitou para falar:
— Helena, amanhã eu vou à cidade tentar vender os tapetes e artesanatos. Você vai ficar com o seu tio Raul, viu? E trate de se comportar! Nada de sumir ou subir em árvores, entendeu?
Elena apenas balançou a cabeça, concordando, mas por dentro sentiu um aperto.
Ficar com o tio Raul é estranho... Ele não gosta de mim. A menina lembrou enquanto terminava de comer. Vive dizendo que sou um peso, que devia ter morrido com meus pais naquele acidente. Já sofri muito com as palavras dele...
Josefina, que desconhecia a extensão das palavras cruéis de Raul, sempre dizia:
— Ele só fala essas coisas porque está bêbado. Não liga, minha menina.
Depois de terminar o abacate, Elena tomou banho, escovou o cabelo e foi deitar. Já sabia que provavelmente não teria janta naquela noite, pois toda a comida estava acabando.
De madrugada, Elena acordou sentindo os lábios da avó em sua testa.
— Volto à noite, minha menina. Irei vender os artesanatos e trazer comida pra nós.
Elena deu um beijo na avó e voltou a dormir, sem saber que o dia seria muito mais difícil do que poderia imaginar.
Quando o sol mal começou a iluminar o quarto pelas frestas da parede de madeira, Elena foi despertada por uma sensação estranha. Estavam com os olhos ainda embaçados, mas sentiam que havia alguém na porta.
Abrindo os olhos devagar, viu a silhueta de Raul encostada no batente. Ele estava sorrindo e coçando o nariz compulsivamente, com o olhar fixo nela.
— Tio, precisa de alguma coisa? — Disse, a voz ainda sonolenta e hesitante.
Ele não respondeu. Em vez disso começou, a caminhar devagar em sua direção. Cada passo parecia um aviso sombrio.
O cheiro de bebida e suor ficou mais forte conforme ele se aproximasse. Raul parecia completamente fora de si, os olhos vidrados e escuros, quase irreconhecíveis.
Elena sentiu o coração disparar. Suas mãos começaram a tremer, e o prazer tomou conta do seu estômago. Tentou gritar, mas sua voz não saiu. Era como se o medo tivesse roubado sua força.
Raul parou na ponta da cama, observando-a. O sorriso sinistro que ele abriu fez com que Elena soubesse, naquele momento, que estava em perigo.
A claridade tímida do amanhecer entrava pelas frestas da madeira, iluminando parcialmente o quarto. Ela olhou ao redor, procurando desesperadamente uma saída, algo que pudesse fazer para escapar.
— Você é igualzinha à sua mãe... — Raul murmurou, a voz arrastada e rouca, inclinando-se levemente para frente.
Elena tentou se afastar, mas suas costas já estavam encostadas na cabeceira da cama. Não havia mais para onde ir.
Raul se aproximou mais um pouco, e Elena, agora tremendo dos pés à cabeça, sentiu que precisava agir rápido. Seus olhos se fixaram na janela ao lado da cama. Era sua única chance.
Raul estendeu a mão, e naquele momento, Elena se reuniu com toda a força que conseguiu:
— Sai daqui! Deixa eu em paz!
Sua voz ecoou pelo pequeno quarto, e por um instante, Raul pareceu hesitar. Elena aproveitou a oportunidade, empurrou o cobertor na direção dele e pulou da cama, correndo em direção à janela.
Sem pensar duas vezes, abriu uma janela com dificuldade e saltou para o lado de fora, aterrissando no chão de terra com um baque surdo.
Sentiu os joelhos ralarem e uma dor insuportável
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