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Entre Sombras e Silêncio

Capítulo 1 O Retorno de Dante

A chuva parecia eterna em Carmelita. O vento frio e úmido cortava o rosto de Dante enquanto ele caminhava pela praça central, arrastando a mochila surrada como se fosse um peso de anos de distância e mágoas mal resolvidas. A praça estava quase deserta, mas o silêncio da cidade era quebrado pelos sussurros que se moviam como fantasmas ao redor dele.

Os moradores o olhavam de relance pelas janelas embaçadas ou dos pequenos bares que ainda estavam abertos.

— O filho do Rodolfo voltou... Quem diria que ele teria coragem? — ouviu alguém murmurar, seguido por uma risada abafada.

Ele fingiu não ouvir, mas cada palavra era como uma pedra jogada em um lago que há muito estava calmo demais.

Ao avistar o único táxi no ponto da praça, Dante respirou fundo e entrou no carro. O motorista, um senhor de cabelos ralos e mãos manchadas pelo tempo, não precisou perguntar para onde ele ia.

— Montenegro, não é? — disse o homem, girando a chave do carro e ajustando o retrovisor. O tom carregava mais curiosidade do que respeito. — Achei que você tinha ido embora para sempre.

— Eu também. — Dante olhou pela janela, evitando prolongar a conversa.

O caminho até a mansão foi lento, as rodas do táxi lutando contra o lamaçal que a chuva criava nas estradas de terra. Enquanto o carro

balançava, o motorista continuava falando:

— Seu pai... uma figura e tanto, hein? A cidade nunca soube o que pensar dele. Um homem reservado, mas com uma sombra maior do que ele mesmo. — Ele fez uma pausa, esperando alguma reação de Dante, mas não obteve nenhuma.

— Pouca gente apareceu no funeral. É assim quando a gente se isola demais.

Dante fechou os olhos por um momento, tentando ignorar a sensação de que ele era o próximo a carregar aquela sombra.

Quando chegaram à mansão, ele teve que respirar fundo antes de sair do carro. A casa parecia maior do que ele se lembrava, mas não pela grandiosidade

– pelo peso. As paredes brancas estavam manchadas de cinza e musgo, e as janelas escuras pareciam olhos vazios que o observavam enquanto ele subia os degraus da varanda. Ele quase podia ouvir os risos de sua infância ecoando entre os corredores, mas tudo o que restava era o som da chuva batendo no telhado.

Na porta, a figura de Cecília, a governanta, o aguardava. Ela usava um casaco pesado e tinha as mãos cruzadas na frente do corpo, como se fosse parte da estrutura da casa.

— Senhor Dante, bem-vindo de volta. — Sua voz era neutra, mas seus olhos analisavam cada detalhe do rosto dele, como se procurassem por algo que não estava ali.

— Não sei se "bem-vindo" é a palavra certa — respondeu ele, com um meio sorriso cansado.

— Prometi ao seu pai que cuidaria da casa. Promessas devem ser cumpridas, mesmo quando outros quebram as suas.

Dante percebeu o tom nas palavras dela, mas estava cansado demais para confrontá-la. Ao entrar, o cheiro de mofo e madeira velha o envolveu como um abraço indesejado. Ele subiu para o antigo quarto e largou a mochila no chão. As paredes estavam intactas, mas o vazio do espaço parecia ter um peso próprio.

No dia seguinte, o funeral foi tão sombrio quanto a chuva que insistia em cair. Poucas pessoas estavam presentes, e os murmúrios eram mais altos do que as orações. Dante sentia os olhares cravados nele como se fosse uma peça rara em exposição. Ele evitava interagir, mas a presença de Rafael foi inevitável.

— Não acredito que estou vendo você aqui — disse Rafael, com um sorriso hesitante. Ele parecia mais velho do que Dante lembrava, como se o tempo tivesse sido mais cruel com ele.

— Acredite, eu também não. — Dante estreitou os olhos, tentando decifrar o desconforto no amigo de infância. — Continua em Carmelita, hein? Não pensei que você fosse do tipo que ficaria por aqui.

— Alguém tem que lidar com a sujeira da cidade — respondeu Rafael, olhando de relance para Evelyn, que estava encostada em uma árvore próxima, com um caderno nas mãos.

Evelyn era jornalista e conhecida por ser insistente em suas investigações. Seu olhar era afiado, e Dante sabia que ela estava ali mais por curiosidade do que por respeito. Quando percebeu que ele a observava, ela deu um sorriso discreto e anotou algo em seu caderno.

Foi então que ele a viu: Lívia. Ela estava ao lado de Augusto Brandão, o prefeito da cidade, um homem cuja presença parecia encher o espaço. Augusto falava alto, cumprimentando os poucos presentes, mas Lívia permanecia em silêncio, com os olhos fixos no chão. Quando ela finalmente olhou para Dante, ele sentiu o ar escapar de seus pulmões.

— Meus pêsames — disse ela, com a voz baixa, mas firme.

— Obrigado. — Dante respondeu, tentando não demonstrar o turbilhão de emoções que o olhar dela despertava.

Mais tarde, de volta à mansão, Dante decidiu explorar a biblioteca, buscando algo que o conectasse ao pai. Foi lá que encontrou o diário. A capa de couro desgastada, com o nome "Aurora" em letras douradas, chamou sua atenção imediatamente. Ele abriu e começou a ler, sentindo um frio na espinha a cada página virada.

"Eles acham que podem controlar tudo, mas o poder deles não é absoluto. Eu vi o que eles fazem nas sombras. Sei de coisas que poderiam destruir vidas. Se algo acontecer comigo, este diário é a prova."

Antes que pudesse ler mais, um som vindo do lado de fora o fez congelar. Ele se aproximou da janela e viu uma figura parada sob a chuva, imóvel. Um relâmpago iluminou o rosto por um instante – mas era impossível reconhecer. Quando piscou, a figura havia sumido, deixando apenas o eco do trovão e a sensação de que algo estava prestes a acontecer.

Capítulo 2 – Ecos do Passado

O trovão ecoava distante, mas o silêncio dentro da mansão era quase ensurdecedor. Dante estava sentado na escrivaninha, encarando o diário que acabara de encontrar. A capa de couro tinha um cheiro levemente adocicado, misturado ao mofo da estante onde havia passado anos escondido. As palavras escritas ali pareciam um veneno que ele não conseguia ignorar. Se algo me acontecer, este diário será a única prova de que a verdade existiu.

O peso daquelas palavras ainda pressionava seu peito quando ele ouviu um rangido. Ele congelou, com a mão ainda sobre o diário. O som vinha do corredor.

Dante hesitou antes de se levantar. A velha mansão sempre fora conhecida por seus ruídos, mas havia algo diferente naquela noite. O ar parecia mais frio, e o cheiro de terra molhada invadia os corredores como um aviso. Ele abriu a porta do quarto devagar, tentando não fazer barulho, e olhou para o corredor vazio.

— Tem alguém aí? — perguntou, sabendo que provavelmente não obteria resposta.

O silêncio foi sua única resposta.

Ainda assim, ele desceu as escadas, cada degrau rangendo sob seu peso. Ao chegar à sala principal, encontrou Cecília arrumando as cortinas, com o rosto cansado e uma expressão fechada.

— Está tudo bem, senhor Dante? — perguntou ela, sem desviar os olhos do trabalho.

Ele demorou a responder.

— Você ouviu algum barulho? Algo no corredor?

Ela parou por um instante, apertando o pano em suas mãos, mas logo voltou ao trabalho.

— Essa casa sempre fez barulhos, senhor. O vento, o peso dos anos... nada com que se preocupar.

Apesar da resposta calma, Dante notou como suas mãos tremiam levemente. Algo na forma como ela evitava olhar diretamente para ele o deixou inquieto.

Mais tarde naquela noite, ele tentou se distrair explorando os velhos cômodos da casa. Havia anos que ele não entrava em alguns deles, e o cheiro de madeira apodrecendo parecia mais forte do que nunca. Em um dos quartos, encontrou um quadro antigo de sua mãe, Aurora. Ela o encarava com um sorriso leve, mas seus olhos pareciam esconder algo – algo que ele nunca percebeu quando criança.

Ao tocar a moldura, ele sentiu uma onda de nostalgia e dor. O que você sabia, mãe? Por que não contou nada para mim?

Enquanto olhava o quadro, ouviu novamente o som de passos. Dessa vez, mais claros, como se alguém estivesse andando pelo segundo andar. Ele correu para o corredor, mas novamente encontrou apenas o vazio.

---

Na manhã seguinte, a chuva havia cessado, mas o céu continuava cinzento, como se o sol não tivesse coragem de aparecer. Dante decidiu sair para caminhar pela propriedade, mas não esperava encontrar Rafael no portão principal, encostado em seu velho carro.

— Você por aqui de novo? — perguntou Dante, franzindo o cenho.

Rafael ergueu uma das xícaras de café que segurava.

— Achei que você pudesse usar isso. Parece que não dormiu bem.

Dante aceitou a xícara, mas manteve a expressão desconfiada.

— Desde quando você tem o hábito de aparecer sem avisar?

— Desde que você voltou. — Rafael deu um gole no café e suspirou. — Escuta, Dante... eu preciso te falar uma coisa sobre o seu pai.

Dante estreitou os olhos, cruzando os braços.

— Estou ouvindo.

Rafael hesitou, olhando para a casa como se ela pudesse ouvir.

— Seu pai... ele não era só um recluso excêntrico. Rodolfo sabia demais sobre as pessoas dessa cidade. Pessoas importantes. Isso o tornou perigoso.

Dante arqueou uma sobrancelha, mais irritado do que curioso.

— Se isso for mais uma das fofocas da cidade, eu não tenho tempo para...

— Não é fofoca! — interrompeu Rafael, seu tom mais firme. — Há uma razão para ele ter se isolado. Ele guardava segredos que poderiam destruir muita gente, Dante. E agora que ele se foi, essas pessoas podem vir atrás de você.

Antes que Dante pudesse responder, um grito cortou o ar. Ele e Rafael se entreolharam, e Dante foi o primeiro a correr na direção do som.

O grito os levou ao antigo celeiro, um lugar que Dante não visitava desde a infância. O portão estava entreaberto, rangendo levemente com o vento. Lá dentro, eles encontraram Evelyn, ajoelhada no chão, com as mãos sujas de terra e uma expressão de puro choque.

— O que diabos você está fazendo aqui? — perguntou Dante, tentando recuperar o fôlego.

Evelyn levantou a cabeça devagar, o rosto pálido.

— Eu... eu estava investigando. Algo aqui não está certo.

Ela apontou para uma pequena caixa de madeira que estava parcialmente enterrada no chão. Dante se aproximou e abriu a caixa com cuidado, revelando uma foto antiga de um grupo de pessoas. No centro da imagem, estava seu pai, cercado por figuras que ele não reconhecia.

— Isso é alguma brincadeira? — perguntou ele, com o coração acelerado.

Evelyn balançou a cabeça.

— Eu não sei o que é isso... mas há algo escrito no verso.

Dante virou a foto, revelando a mensagem: "Eles sabem. Sempre souberam."

Rafael olhou por cima do ombro de Dante, seu rosto agora tão pálido quanto o de Evelyn.

— Isso... isso só pode ser um aviso.

Dante engoliu em seco, mas antes que pudesse dizer algo, ouviu passos vindos do lado de fora do celeiro. Eles se viraram ao mesmo tempo, mas não havia ninguém lá. Apenas o som do vento e o eco do grito que ainda parecia pairar no ar..

Capítulo 3 – Entre Fantasmas e Promessas

A noite caiu sobre Carmelita como um manto pesado, envolvendo a mansão Montenegro em um silêncio quase palpável. Dante estava no escritório, analisando a foto que encontraram no celeiro. As pessoas ao redor de seu pai pareciam familiares de uma forma que ele não conseguia explicar, como se fizessem parte de um sonho antigo e esquecido.

Eles sabem. Sempre souberam.

As palavras ecoavam em sua mente enquanto ele traçava os rostos da fotografia com o dedo. O que diabos Rodolfo sabia que precisava ser mantido tão escondido?

Uma batida suave na porta tirou Dante de seus pensamentos. Ele se virou e viu Lívia parada na entrada, segurando uma xícara de chá. Seu rosto parecia cansado, mas havia algo em sua presença que iluminava o ambiente.

— Achei que você pudesse precisar disso — disse ela, entrando no cômodo.

— Lívia... não precisava se incomodar. — Ele tentou soar casual, mas o tom grave de sua voz o traiu.

Ela colocou a xícara sobre a mesa, mas seus olhos logo caíram na foto.

— Essa foto... onde você a encontrou?

Dante hesitou antes de responder.

— No celeiro. Evelyn estava... investigando algo e acabou encontrando isso. Parece que meu pai andava em círculos que eu nem imaginava.

Lívia pegou a foto com cuidado, examinando-a sob a luz fraca da lâmpada.

— Eu conheço essa mulher — disse ela, apontando para uma figura no canto da imagem.

Dante ergueu as sobrancelhas.

— Como assim? Quem é ela?

— Laura, uma amiga da minha mãe. Ela desapareceu há muitos anos, sem deixar rastro. Minha mãe falava dela com pesar, mas ninguém nunca soube o que aconteceu. — Lívia colocou a foto de volta na mesa, mordendo o lábio. — Por que seu pai estaria com ela?

Dante abriu a boca para responder, mas parou ao notar o tremor na voz dela. Ele não sabia dizer se era medo, surpresa ou algo mais profundo. Por instinto, ele se levantou e colocou a mão em seu ombro.

— Lívia, está tudo bem?

Ela deu um passo para trás, como se não soubesse como reagir.

— É que... essa cidade tem um jeito de nos prender, de nos sugar. E agora, com tudo isso... — Sua voz falhou, e ela desviou o olhar.

Por um momento, o silêncio tomou conta do ambiente. Dante queria dizer algo, mas não sabia como confortá-la. Ele mesmo estava afogado em dúvidas e arrependimentos.

— Eu também me sinto assim — disse ele finalmente. — Como se a cada dia aqui eu estivesse sendo puxado para algo que não consigo entender.

Lívia o encarou, e pela primeira vez naquela noite, um sorriso tímido cruzou seu rosto.

— Pelo menos você não está sozinho nisso.

Eles ficaram assim por um instante, até que o som de um vidro quebrando os tirou do momento. Dante reagiu imediatamente, puxando Lívia para trás enquanto olhava ao redor.

— Fique aqui — disse ele, pegando uma lanterna antes de sair para investigar.

Ele seguiu o som até o corredor principal, onde encontrou um dos vasos antigos despedaçado no chão. Não havia ninguém por perto, mas a janela estava aberta, deixando entrar o vento frio da noite.

— Tem alguém aí? — chamou Dante, sua voz ecoando pelo corredor.

Sem resposta, ele fechou a janela e voltou ao escritório. Lívia ainda estava lá, agora segurando a fotografia com mais força.

— O que aconteceu? — perguntou ela, preocupada.

— Um dos vasos caiu. Deve ter sido o vento. — Ele tentou parecer despreocupado, mas o peso da noite estava claramente presente em seus olhos.

Lívia colocou a foto sobre a mesa e cruzou os braços.

— Dante... não sei se você percebeu, mas coisas estranhas estão acontecendo desde que você voltou. Talvez seja só coincidência, mas...

— Não acredito em coincidências — interrompeu ele, olhando fixamente para ela.

Lívia desviou o olhar, mas antes de sair, colocou a mão sobre a dele por um breve instante.

— Só... tome cuidado, está bem? — Sua voz era baixa, quase um sussurro.

Quando ela saiu, Dante ficou parado por alguns minutos, com a sensação de que aquele breve toque havia deixado uma marca.

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