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Vicent Thunder

Cap 1

Sinopse:

Vicent Thunder, um demônio poderoso, passou 10 mil anos preso em uma casa de vidro, condenado por se rebelar. Durante seu longo cativeiro, sua diversão era atormentar os sonhos de crianças, até que um dia algo inesperado acontece: ele consegue trazer uma menina chamada Olívia para sua prisão através de um pesadelo. Percebendo a oportunidade única, Vicent a engana, prometendo protegê-la em troca de sua liberdade. Olívia, inocente, confia na promessa, mas, como sempre, demônios mentem. Agora livre, Vicent está pronto para retomar seu reinado de caos, deixando Olívia com um futuro incerto.

Dedico este livro a todas as vadias da mente conturbada. Bem vindo ao mundo pitch black, peguem água e vibradores.

                                  

Capítulo 1

Meu nome é Olívia. A mamãe sempre disse que meu nome significa algo bonito, algo puro. Eu nunca entendi muito bem o que isso queria dizer, mas gosto de acreditar que tem algo a ver com a maneira como ela me olha.

Nasci e fui criada em uma vila chamada Scorn, Scorn significa algo bonito, puro confiável.

A Scorn parece um lugar que ficou esquecido pelo tempo. Temos aquelas ruas que nunca ficam completamente limpas, mesmo quando a chuva lava tudo. As árvores parecem se curvar sobre as casas, e o céu, em alguns dias, fica tão pesado que eu penso que ele vai nos engolir. Eu sei, eu tenho só dez anos, mas sinto que Scorn guarda segredos. Segredos que não são contados a crianças como eu.

Às vezes, eu saio à noite e olho as estrelas tentando entender o que há de tão especial aqui. Tem um sussurro no ar que ninguém mais parece ouvir, uma sensação de que algo maior e mais assustador nos observa. A mamãe sempre me manda voltar para dentro e rezar, dizendo que a vila protege seus filhos bons. Mas por que, então, sinto como se tivesse algo ali, nas sombras?

Entre Scorn e o resto do mundo, existe uma floresta antiga, e ela guarda um segredo sombrio. Ninguém que tentou atravessá-la voltou para contar o que viu. Papai me falou sobre um monstro terrível que vive entre as árvores, esperando por qualquer um que seja tolo o suficiente para entrar. Ele tem uma voz grave quando fala sobre isso, como se pudesse ouvir os passos do monstro, mesmo daqui.

Então, por mais que eu sonhe em explorar, fico segura aqui, entre as sombras conhecidas da vila, com a sensação de que a floresta nos protege - ou nos prende.

Aqui em Scorn, temos tudo o que precisamos. Nossa vila é pequena, mas temos escola, onde aprendo a ler e escrever, um mercado com cheiro de especiarias e frutas, e um templo que todos na vila devem frequentar aos domingos. As pessoas dizem que lá é onde nos mantemos "puros" e protegidos, embora eu ainda não saiba ao certo o que isso significa.

Hoje, apesar de já estar tarde, eu não estava com sono. Não tinha brincado muito com meus colegas e ainda me sentia cheia de energia, mas a mamãe fez sua verificação habitual para ver se eu já havia menstruado. Ela me explicou que, quando isso acontecer, estarei pronta para o casamento. Eu não entendo bem o que isso envolve, mas sei que é algo muito importante para ela.

A mamãe é bem mais nova que o papai. Ela tem só vinte e um anos, enquanto ele tem trinta e dois. Sempre achei que isso era normal, já que a maioria das mães na vila parece ser mais jovem que os pais.

Essa noite eu estava deitada com eles. A cama sempre se agitava durante a noite, e, de vez em quando, a mamãe perguntava se eu estava dormindo. Isso me deixa nervosa, pois logo depois o papai bate nela. Eu não entendo por que ele faz isso, mas a maneira como a mamãe olha para mim quando isso acontece... Sempre finjo estar dormindo, mas sempre fico assustada... Eu quero dormir logo.

À noite, quando estamos deitados na cama, papai sempre se coloca em cima da mamãe e fala com ela usando palavras que eu sei que são feias, como "vadia". Mamãe, de alguma forma, responde dizendo que gosta disso, mas eu não entendo. Não sei por que alguém iria gostar de ser tratada assim ou de apanhar, mas vejo nos olhos dela algo que me deixa confusa.

Hoje está sendo difícil dormir, a mamãe está grávida, só saberemos se é menino ou menina, quando nascer... Mas... Mesmo assim o papai ainda agride a mamãe.

- Vadia de merda, eu sei que você gosta de ser fodida...

- Isso amor... Mais fundo, isso... -Mamãe murmurou.

Lágrimas escorriam por minhas bochechas, eu tenho que dormir... Céus porfavor...

Papai e mamãe ficaram em silêncio depois de alguns minutos, e eu pude me acalmar, papai sempre me puxa para mais perto para dormirmos juntinhos.

Acabei adormecendo, e o sonho veio como sempre, sombrio e imutável. Parecia me esperar, como se fosse parte de uma rotina, um ritual. Na escuridão do meu sono, eu me via em pé, sozinha, cercada pela floresta densa que rodeia Scorn. O silêncio era absoluto; nem o vento ousava sussurrar entre as folhas. Era um silêncio que pesava no ar, pressionando meu peito e me deixando imóvel por alguns instantes. Mas, no fundo do bosque, algo se movia - algo que eu sabia estar ali, esperando, procurando.

Eu começava a correr. Minhas pernas se moviam com todo o meu esforço, mas cada passo parecia pesado, como se o chão estivesse me puxando de volta. Senti o cheiro de folhas molhadas e de musgo, mas logo ele foi encoberto por um odor estranho, que misturava o cheiro da terra com algo metálico, quase como o sangue. Meus pés pequenos batiam contra o solo coberto de galhos e raízes, cada passada mais desesperada que a anterior. Eu não sabia exatamente para onde estava indo, mas qualquer direção parecia melhor do que ficar ali e deixar que ele me alcançasse.

Era nesse ponto do sonho que sempre o ouvia - o som de suas patas grandes esmagando folhas e gravetos enquanto ele me perseguia. Um tigre, negro como a própria noite, com olhos que pareciam brilhar em um amarelo doentio, surgia por entre as árvores. Ele não fazia barulho ao se mover, exceto pelo leve roçar de sua cauda contra as plantas e o estalar ocasional de galhos sob seu peso. Não havia pressa nos movimentos dele; era como se soubesse que, cedo ou tarde, me pegaria.

O tigre era diferente de qualquer animal que eu já tinha visto. Ele não tinha pressa, e seus passos eram quase preguiçosos, mas havia algo neles que me deixava aterrorizada. Suas garras afiadas afundavam na terra úmida, deixando marcas profundas, e a cada segundo que passava, eu o sentia mais próximo.

Eu tentava correr mais rápido, forçando minhas pernas pequenas e curtas a me levar adiante. O medo pulsava dentro de mim, e eu já podia sentir o peso do olhar do tigre sobre minhas costas. Os galhos das árvores me arranhavam os braços, e raízes se erguiam como se quisessem me fazer tropeçar. Em meio à corrida desesperada, perdi a noção de direção, girando para todos os lados, sem saber mais para onde ia. As sombras ao meu redor pareciam se fechar, e meu corpo já começava a fraquejar.

Foi então que meus pés acertaram um galho grosso, escondido sob folhas mortas, e eu tropecei. O chão frio e úmido me recebeu com um impacto que tirou o ar dos meus pulmões, e o mundo ficou em silêncio por um segundo que pareceu uma eternidade. Levantei o rosto e, antes mesmo de tentar me pôr de pé, o vi - o tigre, a poucos metros de mim, com os olhos fixos e penetrantes. Ele estava ali, pronto, paciente, como se tivesse me esperado cair.

Ele avançou com uma velocidade assustadora, suas garras estendidas, prontas para me alcançar. O tempo pareceu desacelerar enquanto eu observava aquelas garras enormes se aproximando, afiadas e ameaçadoras. Com um rugido que fez meu sangue gelar, ele pulou, e suas garras se cravaram em mim, perfurando minha pele com uma dor que eu só conhecia em meus pesadelos.

A dor era intensa, ardente, quase como se estivesse sendo queimada de dentro para fora. Eu sentia o calor do sangue escorrendo, a pele rasgada, o peso esmagador de suas patas em minhas costas. A cada segundo, eu esperava acordar, esperava que aquilo fosse apenas um sonho, mas a dor parecia tão real que me fazia duvidar.

Foi então que, com um último suspiro trêmulo, eu acordei. Meus olhos se abriram de repente, e eu me vi deitada na cama, ofegante, com o corpo tremendo e o coração batendo acelerado. Olhei ao redor, mas estava sozinha. O quarto estava iluminado pela luz do sol, mas o medo ainda pulsava em minhas veias. Eu estava segura na cama, e, ainda assim, a imagem do tigre e a sensação de suas garras ainda estavam ali, gravadas em mim, como uma sombra que não iria embora.

cap 2

Durante a noite, enquanto meus pais estavam ocupados fazendo coisas que eu não entendia, a cama balançava e os sussurros deles preenchiam o quarto. Eu tentava me encolher no canto do colchão, fechando os olhos com força, desejando ser pequena o suficiente para desaparecer. Mas, quando o silêncio finalmente chegava e o cansaço tomava conta de mim, eu sempre acabava dormindo. E era aí que tudo começava.

No meu sonho,se é que aquilo era um sonho, eu acordava sozinha no meio da floresta. Estava escuro, mas eu conseguia enxergar as árvores altas, suas copas se fechando como se estivessem me prendendo ali. O ar era pesado, e o cheiro de terra molhada se misturava a algo doce, quase enjoativo. Cada som parecia amplificado, o estalar de um galho, o farfalhar das folhas, como se o próprio lugar estivesse vivo.

E então eu o ouvia. O som das patas enormes se movendo sobre o solo, esmagando folhas e gravetos, o ronco baixo que fazia meu coração acelerar. O tigre estava lá, me observando, mesmo que eu não o visse ainda. Assim que eu percebia sua presença, começava a correr. Era como se meu corpo soubesse que não havia outro caminho a seguir.

Eu corria o mais rápido que podia, mas minhas pernas curtas nunca eram rápidas o suficiente. O tigre estava sempre atrás de mim, cada vez mais perto. Até que, no meio da floresta, eu via uma construção estranha, uma casa feita inteiramente de espelhos. As paredes refletiam minha imagem por todos os lados, deformando meu corpo e me deixando ainda mais assustada. Era a única saída, então eu entrava.

Quando entrei naquela casa de espelhos, fiquei sem fôlego. Por fora, parecia uma construção simples e um tanto estranha, com vidros refletindo minha imagem distorcida. Mas, ao atravessar a porta, tudo mudou. Era como se eu tivesse entrado em outro mundo, um lugar luxuoso, antigo, e cheio de mistérios.

O chão era de mármore brilhante, com desenhos interligados de flores e espirais douradas que pareciam se mover sob meus pés. As paredes eram cobertas de espelhos, mas não eram como os espelhos de casa, que mostravam apenas o reflexo. Esses eram enormes, emoldurados com ouro detalhado, como se fossem janelas para outros tempos. Cada espelho parecia contar uma história, com cenas que surgiam e desapareciam quando eu os olhava de relance - festas antigas, pessoas dançando com roupas elegantes, e até mesmo cenas de tristeza que me faziam desviar o olhar.

No teto, havia lustres gigantescos de cristal, cheios de pequenas velas que iluminavam o ambiente com uma luz quente e tremeluzente. Eu nunca tinha visto algo tão bonito e tão assustador ao mesmo tempo. Cada lustre balançava levemente, como se um vento invisível estivesse sempre presente, sussurrando segredos que eu não conseguia ouvir.

Móveis antigos estavam espalhados pela sala, com poltronas de veludo vermelho e mesas de madeira escura, todas decoradas com detalhes minuciosos. Havia um sofá longo, com almofadas que pareciam feitas de seda, mas eu tinha medo de me sentar. O cheiro do lugar era uma mistura de poeira antiga e algo doce, como rosas murchas. Era o tipo de cheiro que me fazia pensar em coisas guardadas por muito tempo, esperando para serem descobertas.

Havia escadas que subiam para andares superiores, com corrimãos de ferro trabalhado e degraus que pareciam não ter fim. Mas o que mais me chamou a atenção foi uma grande lareira, apagada, com um espelho enorme acima dela. Esse espelho não mostrava reflexos. Era opaco, como se escondesse algo por trás. Fiquei olhando para ele por um tempo, tentando entender, mas senti um arrepio percorrer minha espinha e me virei para outro lado.

As luzes dos lustres projetavam sombras estranhas nas paredes. Às vezes, eu via o que parecia ser minha sombra se movendo, mas percebia que ela não era minha. Ela fazia gestos que eu não fazia, olhava para lugares que eu não olhava. Foi quando ouvi um barulho leve, como passos, vindo de um corredor à frente.

O corredor era longo e parecia interminável, com mais espelhos de ambos os lados. As molduras desses espelhos eram diferentes - mais grossas, mais escuras, e algumas estavam rachadas, como se algo tivesse tentado sair delas. Caminhei devagar, cada passo ecoando naquele silêncio estranho, até chegar a uma porta dupla, feita de madeira tão escura que parecia preta.

Eu não sabia o que encontraria do outro lado, mas a curiosidade me venceu. Ao empurrar a porta, o som de dobradiças rangendo me fez estremecer. Atrás dela, estava Vicent, com aquele sorriso que nunca parecia verdadeiro. O ambiente ao redor dele era ainda mais extravagante: um salão gigantesco, com mais espelhos, tapeçarias vermelhas nas paredes e uma mesa longa no centro, cheia de velas acesas e pratos antigos. Parecia o salão de um castelo de contos de fadas, mas havia algo nele que me deixava desconfortável, como se o brilho e a beleza escondessem algo terrível.

— Bem-vinda, Olívia.

A voz era grossa e estridente, tão forte que ecoou pelo corredor como se as próprias paredes estivessem sussurrando meu nome. Meus olhos arregalados tentaram enxergar algo na escuridão à minha frente, mas o corredor parecia não ter fim, engolido por sombras pesadas. Senti um arrepio percorrer minha espinha, e meus pés congelaram no lugar.

Apavorada, dei um passo para trás, o chão frio sob meus pés parecendo ainda mais distante. Mas antes que eu pudesse recuar mais, uma força invisível me puxou para frente. Foi como se mãos gigantes e invisíveis agarrassem meu corpo, arrastando-me contra minha vontade. Minha respiração ficou presa na garganta enquanto eu lutava inutilmente contra aquela força sobrenatural.

Quando o corredor parou de girar à minha volta, me vi diante de um homem. Ele era assustadoramente pálido, a pele tão branca que parecia refletir a pouca luz que vinha de algum lugar distante. Seus cabelos loiros caíam em fios desgrenhados ao redor do rosto fino, e seus olhos eram a coisa mais marcante sobre ele - profundos, hipnotizantes, com um brilho intenso que parecia enxergar direto dentro de mim.

Eu tentei gritar, e um som escapou da minha garganta:

—Ah!

Ele sorriu, um sorriso largo e estranho, que revelou dentes que pareciam afiados demais para serem normais. Sua expressão era faminta, mas o que mais me apavorou foi a língua gigantesca que ele passou lentamente pelos lábios, como se saboreasse algo que ainda não havia tocado.

— Senti o seu delicioso cheiro de longe, garotinha... — murmurou ele, a voz quase um ronco baixo, como o som do tigre que sempre me perseguia nos sonhos.

Eu queria correr, mas meus pés não obedeciam. Estavam colados ao chão, como se a força que me trouxe até ali também me impedisse de fugir. A cada passo que ele dava na minha direção, meu coração parecia bater mais forte, como se quisesse sair do meu peito. Ele estava tão perto agora que eu podia sentir o cheiro estranho que vinha dele - doce e enjoativo, como flores que apodreceram há muito tempo.

— Por que está tão assustada? - perguntou ele, inclinando a cabeça, o sorriso nunca desaparecendo de seu rosto. —Eu só quero conversar, Olívia.

O som do meu nome saindo da boca dele me fez estremecer. Como ele sabia meu nome? Eu não conseguia responder, minhas palavras estavam presas junto com o medo que apertava minha garganta. Ele se aproximou mais, a respiração dele quente contra meu rosto, e seus olhos brilhavam com algo que parecia... diversão?

— Não tenha medo — sussurrou, erguendo uma mão longa e fina. Ele tocou meu rosto com os dedos frios como gelo, e eu finalmente consegui gritar de verdade, mas meu grito ecoou sem resposta naquele lugar estranho.

Eu queria acordar, queria estar de volta à minha cama, mas a sensação de estar presa ali era tão real que comecei a duvidar se aquilo era mesmo um sonho.

Ele era um homem alto, magro, com cabelos desgrenhados e olhos que pareciam brilhar na escuridão. Ele trajava um sobretudo, idêntico ao do meu livro de gravuras, suas mãos tinham tatuagens e correntes e cada uma delas parecia trancada por algo invisível, como se guardassem segredos que ele nunca revelaria. Com um só movimento ele me colocou em seu colo e se jogou para trás, não consegui ver o que havia acontecido, mas surgiu uma cadeira enorme dourada, com pedras brilhantes atrás dele, como a de um rei.

Eu não entendia como aquele tigre havia conseguido e entrar, mas ele entrou, e correu até nós, assustada escondi meu rosto no peito do homem, que logo começou a rir. Chorei e senti algo úmido passar por meu pescoço e rosto, era a língua dele.

— Não tenha medo querida Olívia... —Disse o homem.

Eu só conseguia chorar.

Após longos minutos consegui me acalmar, o tigre estava deitado aos pés do homem que me ninava em seu colo.

[...]

— Olívia?... — Permaneci quieta.

— Como.... Como você sabe o meu nome ? — Gaguejei.

O homem não diz nada, mas move sua mão direita até o meu rosto tocando o meu nariz, em seguida ele fecha as mãos e quando abre, em sua mão tem uma pequena presilha de cabelo.

— Acho que não está em posição de fazer perguntas mocinha... — Disse o homem. — Invadiu a minha casa...

— Me desculpe senhor, mas... Seu tigre estava tendo me matar... — Tentei me levantar mas ele me segurou firmemente em seu colo. Espere... Eu estou sonhando ? Sim, então posso fazer o que eu quiser.

— Não, você não pode. —Ele sorriu.— Olívia, está na hora de acordar... —Comecei a sentir um sono avassalador.

— Qual é o seu nome? — Murmurei caindo no sono, mas consegui ouvir o seu nome.

"Vicent..."

cap 3

Minha vila, Scorn, é um lugar estranho. Papai diz que sempre foi assim, mas para mim, é difícil entender por que as coisas aqui são como são. Às vezes, parece que a vila foi esquecida pelo mundo lá fora, presa em um tempo que nunca avança.

As ruas são de pedra, mas muitas estão rachadas e cobertas de lama. As casas são pequenas e feitas de madeira escura, com telhados inclinados e chaminés que soltam fumaça o dia inteiro. Algumas são tão velhas que parecem estar prestes a cair. Outras, no entanto, brilham como se fossem recém-construídas. É estranho ver coisas tão diferentes coexistindo aqui.

As pessoas da vila também são assim: algumas parecem normais, como eu, papai e mamãe. Mas outras... bom, outras não são. Há o senhor Garret, que mora perto da escola e não tem olhos, só buracos onde deveriam estar. Mesmo assim, ele sabe exatamente onde está tudo e sempre nos cumprimenta como se pudesse nos ver. Tem a dona Marga, que é enorme – mais alta que qualquer homem da vila – e anda com as costas tortas, carregando um carrinho de mão cheio de galinhas mortas. Ela diz que as galinhas falam com ela, mas eu nunca ouvi nada.

Às vezes, vejo pessoas que não sei se são da vila ou não. Elas ficam nas sombras, suas silhuetas deformadas, como se seus corpos tivessem sido puxados ou esticados de maneiras impossíveis. Eu tento não olhar muito para elas. Mamãe diz que é falta de respeito. Papai diz que elas "merecem o que têm." Eu não sei o que isso significa.

A vila tem cheiros diferentes, também. Alguns são bons, como o pão fresco da padaria. Mas outros... outros são horríveis. No mercado, por exemplo, há um açougue onde as carnes penduradas não parecem de animais normais. Às vezes, as peças ainda se mexem, como se estivessem vivas. A dona Clara, que cuida do mercado, diz que são "especiais." Eu prefiro não perguntar o que isso significa.

No centro da vila, há um poço. Mamãe sempre diz para eu nunca me aproximar dele. "É perigoso," ela diz. "Muitos já caíram lá." Mas as histórias que ouvi na escola são diferentes. Dizem que o poço não tem fundo e que ele sussurra coisas à noite. Eu nunca ouvi nada, mas, às vezes, vejo crianças jogando pedras lá dentro e ouvindo atentamente, como se esperassem uma resposta.

Todo domingo, temos que ir ao templo. É um lugar grande, de pedra, com um teto tão alto que parece tocar o céu. Lá dentro, tudo é escuro, e o único som é o eco dos nossos passos. As pessoas se ajoelham e rezam, mas eu nunca entendi para quem ou para o quê. Tem uma estátua enorme no altar – uma figura com várias cabeças e braços – que me dá calafrios. Papai diz que é o protetor da vila, mas eu não sei. Sempre que olho para a estátua, sinto que ela está olhando de volta, mesmo que seus olhos estejam fechados.

Os adultos da vila também fazem coisas estranhas. Às vezes, à noite, ouço cânticos vindo do templo. Eles dizem que são orações, mas soam mais como gritos. Mamãe diz para eu não me preocupar, que é só tradição. "É assim que protegemos a vila," ela diz. Mas eu fico me perguntando: protegemos de quê?

Mesmo com todas essas coisas, Scorn é o único lugar que conheço. É a minha casa. Papai sempre diz que a vila tem tudo o que precisamos, e acho que ele está certo. Temos escola, mercado e até uma floresta que ninguém ousa atravessar. Mas, às vezes, eu me pergunto como seria viver em outro lugar – um lugar onde as pessoas não tivessem buracos no rosto ou falassem com galinhas mortas.

À noite, quando estou na cama e ouço os sons da vila – os passos estranhos, os murmúrios, e os gritos abafados do templo – fecho os olhos e me imagino em um lugar diferente. Mas, quando durmo, estou de volta à floresta. E, de algum jeito, acho que a floresta tem mais a ver com Scorn do que eu gostaria de admitir.

[...]

Estava voltando para casa depois da escola, com os ombros cansados de carregar minha mochila pesada e as pernas doendo de tanto correr no parquinho. O sol já estava se escondendo atrás das árvores que cercavam Scorn, tingindo o céu com um laranja desbotado que anunciava o fim do dia.

Eu havia brincado tanto no intervalo que mal conseguia me manter em pé, mas mesmo assim, sentia uma satisfação dentro de mim. Hoje foi divertido. Na aula, aprendi um pouco de matemática, mesmo que fosse difícil, e o lanche que mamãe preparou, aquele pão de batata fofinho com suco de maçã, tinha sido a melhor parte.

As ruas de Scorn estavam mais vazias do que de costume. Algumas pessoas ainda estavam nas portas de suas casas, mas muitas já tinham entrado, talvez por causa do céu que parecia ameaçar chuva. Passei pela dona Marga, que empurrava seu carrinho cheio de galinhas mortas. Ela me olhou com seus olhos pequenos e brilhantes, mas não disse nada. Apenas murmurou algo para o carrinho, como sempre fazia.

Cheguei em casa com o cheiro familiar de comida sendo preparada. A porta rangeu ao se abrir, e eu vi mamãe na cozinha, mexendo em uma panela no fogão. Ela parecia cansada, com o cabelo preso em um coque desalinhado e o avental sujo de farinha.

— Oi, mamãe — murmurei, jogando minha mochila em um canto.

— Oi, querida. Como foi a escola? — perguntou ela, sem tirar os olhos da panela.

— Foi legal. Tivemos matemática, e eu consegui resolver uma conta! E o intervalo foi divertido. Brinquei no parquinho e joguei bola.

Ela sorriu levemente, como se quisesse mostrar que estava feliz por mim, mas não tinha muita energia para conversar. Mamãe sempre parecia ocupada, como se tivesse o peso do mundo nos ombros.

— O jantar já está quase pronto. Vá lavar as mãos, está bem?

Fiz o que ela pediu, indo até o balde com água que ficava perto da pia. A água estava fria, mas refrescou meus dedos sujos de poeira do parquinho. Enquanto esfregava as mãos, ouvia o som do caldo borbulhando na panela e o estalo da lenha queimando no fogão. Aquele som sempre me fazia sentir em casa, mesmo nos dias em que papai estava de mau humor.

Voltei para a cozinha e sentei na cadeira, observando mamãe colocar pedaços de carne no caldo. A fumaça subia lentamente, e o cheiro era reconfortante.

— Está fazendo sopa? — perguntei.

— Sim, sua preferida — disse ela, mas sua voz estava distante, quase como se estivesse pensando em outra coisa.

Eu sabia que mamãe sempre se preocupava com tudo: com a casa, com papai, comigo. Às vezes, queria perguntar se ela estava bem, mas nunca tinha coragem. Ela sempre parecia tão forte, como se nada pudesse derrubá-la, mas eu sabia que não era bem assim.

Enquanto esperava o jantar ficar pronto, me recostei na cadeira e olhei pela janela. O céu estava ficando mais escuro, e as árvores pareciam sombras altas e assustadoras. Em Scorn, a noite chegava rápido, como se o mundo inteiro estivesse correndo para se esconder de alguma coisa.

Naquele momento, ouvi o portão da frente ranger. Era papai chegando do trabalho. Senti um nó no estômago, como sempre acontecia quando ele chegava. Ajustei minha postura na cadeira, tentando parecer tranquila, e esperei que ele entrasse.

Enquanto olhava pela janela, meus olhos começaram a se perder nas sombras das árvores que cercavam a vila. A luz do fim de tarde já estava quase desaparecendo, e a escuridão começava a tomar conta do lugar. As árvores sempre pareciam maiores à noite, como se tivessem crescido em silêncio quando ninguém estava olhando.

Foi então que percebi algo. Entre as sombras, uma silhueta surgiu. Fiquei congelada por um instante, meus olhos tentando focar naquela figura que parecia familiar. Cabelos longos e loiros brilhavam sob os últimos raios de luz. Meu coração começou a bater mais rápido. Eu não podia acreditar no que estava vendo.

"Não pode ser..." pensei, mas sabia que era.

Era ele. Vicent. O homem dos meus sonhos.

Eu pisquei, tentando ter certeza de que não estava imaginando coisas. Mas quando voltei a olhar, a figura não estava mais lá. Ele havia sumido, como fumaça que desaparece no vento.

Meus dedos apertaram o parapeito da janela, e meu coração batia tão rápido que parecia querer sair do peito. Como ele podia estar aqui? Ele só existia nos meus sonhos. Era impossível, não era? Mas, ao mesmo tempo, eu tinha certeza de que o vi. Não era imaginação. Não podia ser.

O cheiro de sopa que preenchia a cozinha agora parecia distante. Mamãe continuava mexendo a panela, distraída, enquanto o som de passos pesados anunciava que papai estava entrando em casa. Tudo ao meu redor parecia normal, como sempre, mas dentro de mim, nada estava normal.

"Será que ele sabe onde eu moro?", pensei, olhando novamente para a floresta. "Ou será que eu estou enlouquecendo?"

— Olívia, você está bem? — a voz de mamãe me tirou do transe.

— Estou — respondi rapidamente, desviando o olhar da janela e tentando parecer calma.

Mas eu não estava. Eu sabia o que tinha visto. E, no fundo, sentia que isso era só o começo.

O jantar foi silencioso naquela noite. Mamãe colocou a sopa quente em nossas tigelas, o aroma reconfortante preenchendo a pequena sala. Eu segurei minha colher, mas não sentia muita fome. Minha mente ainda estava presa àquela silhueta que vi entre as árvores. Vicent. O nome dele parecia ecoar na minha cabeça, como um segredo que não devia ser dito em voz alta.

Papai estava sentado à mesa, como sempre, comendo rápido e sem olhar para ninguém. Mamãe tentava conversar com ele, perguntando sobre o trabalho, mas ele só resmungava respostas curtas. O clima na sala era pesado, como se um vento frio tivesse passado por ali e ficado preso.

Eu mexia na sopa com a colher, o líquido formando redemoinhos que me distraíam. Não queria falar, nem olhá-los muito. Apenas queria que o jantar acabasse logo. Papai me lançou um olhar rápido, seus olhos estreitos, como se tentasse descobrir o que eu estava pensando.

— Por que tá tão calada, Olívia? — ele perguntou, sua voz baixa e ríspida.

— Só estou cansada, papai — menti, sem levantar o olhar.

Ele resmungou algo que não entendi e voltou a comer. Mamãe olhou para mim, mas não disse nada. Talvez ela também soubesse que era melhor não prolongar a conversa.

Depois que terminamos, ajudei mamãe a levar as tigelas para a pia. Enquanto ela lavava a louça, fui até o quarto, esperando que ninguém me chamasse de volta.

Deitei-me e puxei o cobertor até o queixo, fechando os olhos com força. Queria dormir rápido, antes que as vozes começassem. Antes que os gritos e os sons de tapas invadissem a escuridão do quarto.

“Durma, Olívia. Só durma”, eu dizia para mim mesma, tentando ignorar os passos de papai pelo quarto e o som do colchão quando ele se sentava.

Mas mesmo com os olhos fechados, eu sentia o peso do que vinha. As noites sempre eram assim. Eu sabia que mamãe dizia gostar, mas isso não fazia sentido para mim. Como alguém podia gostar de gritos e tapas?

Enquanto esperava o sono me levar, pensei em Vicent. No brilho frio de seus olhos e na forma como ele desapareceu entre as árvores. Talvez, nos sonhos, ele estivesse me esperando de novo. O pensamento me deu um arrepio, mas, de alguma forma, também me deixou curiosa.

Minha respiração foi ficando mais lenta. A realidade foi desaparecendo aos poucos, e a escuridão do sono finalmente chegou, me carregando para outro lugar.

E lá estava eu novamente, na floresta, envolta pela escuridão úmida e pelo som das árvores sussurrando ao vento. O chão estava frio sob meus pés descalços, e tudo parecia mais real do que nunca. De repente, ouvi um rugido. O tigre. Meu coração disparou, mas, desta vez, havia algo diferente. Ele saiu das sombras, sua pelagem negra brilhando à luz prateada da lua. Seus olhos dourados me encaravam com uma intensidade que me paralisou.

Ele rugiu outra vez, mas não se moveu. Fiquei imóvel, segurando a respiração, esperando que ele saltasse e me dilacerasse como nas outras vezes. Mas ele não atacou. Em vez disso, deu um passo à frente, depois outro, devagar, quase como se não quisesse me assustar.

Quando passou por mim, olhou para trás, seus olhos fixos nos meus, como se esperasse algo. Ele queria que eu o seguisse. Meu corpo hesitou, mas meus pés se moveram por conta própria, seguindo aquele enorme animal pelas sombras da floresta. Cada passo parecia me levar para mais longe de Scorn, para um lugar que só existia nos meus sonhos.

Logo, a grande porta espelhada apareceu entre as árvores, brilhando como uma joia perdida no meio do nada. O tigre parou ao lado dela e me olhou novamente, antes de desaparecer na escuridão. Engoli em seco, minha mão tremendo enquanto tocava a superfície fria do espelho. A porta se abriu com um leve rangido, e entrei na casa.

— Senhor Vicent? — minha voz saiu trêmula, quase inaudível.

Os corredores estavam exatamente como da última vez. As paredes eram altas e cobertas por papéis de seda ornamentados, as luminárias douradas lançavam uma luz suave e quente, e o chão brilhava como mármore polido. O ar era pesado, mas não desconfortável, carregado com aquele cheiro doce e enjoativo que parecia sempre acompanhá-lo.

Caminhei lentamente, cada passo ecoando pelo corredor vazio. Lá estava ela: a porta aberta de onde o vapor quente escapava, carregando aquele perfume forte de flores e algo que eu não conseguia identificar. Meu coração batia mais rápido a cada passo, mas a curiosidade me empurrava para frente.

Entrei na sala sem avisar. E lá estava ele.

Senhor Vicent estava sentado em uma grande banheira de madeira. A água estava calma ao redor de seu corpo, e seus olhos marcantes estavam fixos em mim, um sorriso quase imperceptível curvando seus lábios. Seus pulsos estavam amarrados com correntes prateadas, mas elas não estavam conectadas a nada. Apenas flutuavam no ar, como se fossem vivas.

Meu rosto ficou vermelho instantaneamente, e eu tampei os olhos com as mãos.

— Desculpe! Eu não sabia que você... — gaguejei, sem saber como continuar.

Vicent soltou uma risada baixa, rouca, que reverberou pelo ambiente.

— Ora, ora, Olívia... Você finalmente voltou. — Sua voz era suave, mas carregada de algo que me fez arrepiar até a espinha. — Não precisa se esconder.

— Eu... eu não sabia que era você aqui dentro — murmurei, mantendo as mãos nos olhos.

— E quem mais seria? — Ele riu novamente. — Você sabe que esta casa é minha.

Abaixei as mãos lentamente, ainda hesitante, mas não consegui evitar olhar para ele.

— Por que você está preso? — perguntei, minha voz quase um sussurro.

— Ah, pequena Olívia... — respondeu ele, seu sorriso crescendo. — São correntes da minha própria escolha. Mas tudo tem seu propósito, não é?

Eu não entendia o que ele queria dizer, mas algo dentro de mim dizia que eu devia ficar ali. Que eu precisava saber mais.

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