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AZIRREL : Quando o Amor Se Perde

O anjo da Praça

Era uma tarde de outono, daquelas em que as folhas caem das árvores formando um tapete dourado na praça. Eu estava sentada em meu lugar de sempre, sob o carvalho mais antigo, com meu livro favorito entre as mãos. As palavras impressas naquelas páginas me transportavam para mundos tão distantes que, por vezes, eu esquecia onde estava. Foi então que o vi pela primeira vez.

Ele surgiu do outro lado da praça, com passos lentos e distraídos. Era ruivo, o tipo de ruivo que parece arder sob o sol, com a pele branca salpicada por sardas que contornavam seu rosto de maneira curiosa, quase poética. Mas o que mais me chamou atenção foram seus olhos. Eram verdes, de um tom tão profundo que, por um momento, me perdi neles, mesmo à distância.

Ele tinha um sorriso elegante, daqueles que surgem sem esforço, quase como se fosse a forma natural de seus lábios descansarem. Não era um sorriso largo ou exagerado, mas discreto, como se ele soubesse de um segredo que o mundo inteiro ignorava. E eu, pela primeira vez em muito tempo, senti algo diferente.

Não sei explicar exatamente o que foi. Talvez um frio na barriga, uma aceleração do coração ou apenas a sensação de que algo havia mudado. O mundo ao meu redor pareceu desacelerar, e cada detalhe dele ficou marcado em minha memória como uma pintura viva.

Foi quando ele se aproximou que tudo mudou. Ainda segurava meu livro, mas as palavras naquelas páginas haviam perdido o significado. Ele veio caminhando devagar, como se o tempo fosse seu aliado, não seu inimigo. Notei que seus olhos verdes estavam fixos no banco ao lado do meu, e meu coração acelerou como se já soubesse o que estava por vir.

Sem cerimônias, ele sentou-se ao meu lado. Não tão perto que invadisse meu espaço, mas próximo o suficiente para que eu sentisse sua presença. Por um momento, pensei que ele fosse apenas mais um dos muitos frequentadores da praça, alguém que se acomodaria e logo mergulharia em seus próprios pensamentos. Mas ele me surpreendeu.

— Boa tarde — disse ele, com um tom suave, quase musical.

Levantei os olhos do livro e olhei para ele. Sua pele clara refletia a luz do fim de tarde, e as sardas em seu rosto pareciam formar um mapa único, como uma constelação exclusiva. Ele me encarava com um sorriso que parecia ter sido desenhado para desconcertar.

— Boa tarde — respondi, um pouco hesitante, mas incapaz de conter um leve sorriso que escapou de mim.

Houve um breve silêncio, mas não daqueles desconfortáveis. Era como se ele estivesse aguardando, com paciência, o momento certo para continuar.

— Gosta de ler? — perguntou, gesticulando levemente para o livro em minhas mãos.

Assenti, segurando o livro um pouco mais firme, como se aquilo fosse minha âncora.

— Gosto muito. É uma forma de fugir e descobrir ao mesmo tempo — respondi, percebendo que minha voz estava mais suave do que o habitual.

Ele inclinou ligeiramente a cabeça, como se ponderasse sobre minha resposta.

— Isso é fascinante. Fugir para descobrir... Nunca pensei dessa forma, mas faz todo sentido. — Seu sorriso aumentou, e eu senti um calor subir pelo rosto.

E ali estávamos, dois estranhos em uma praça, compartilhando um momento simples, mas que parecia carregado de algo maior. Quando ele voltou a falar, me contou que costumava vir àquela praça para observar as pessoas, imaginar suas histórias, e agora parecia interessado na minha.

Aquele início de conversa poderia ser banal, mas para mim foi o início de algo que, até hoje, não consigo descrever completamente. A sensação era de que ele já fazia parte da minha história, mesmo que eu o tivesse conhecido apenas naquele instante.

Ele parecia curioso, mas sem pressa. Como se cada palavra que eu dissesse fosse uma peça de um quebra-cabeça que ele queria montar. Não era comum para mim me sentir tão à vontade com alguém que acabara de conhecer, mas havia algo nele – talvez o tom calmo da voz, ou a forma como seu sorriso parecia sempre à espreita – que me fazia baixar a guarda.

— Sou Laís — acabei dizendo, estendendo a mão para ele, como se fosse o passo natural naquela conversa.

Ele aceitou meu gesto, apertando minha mão com firmeza, mas sem exagero. Seus dedos eram quentes e ligeiramente ásperos, como quem trabalha com as mãos, talvez escrevendo, talvez pintando.

— Azirrel — respondeu ele, com uma pausa breve, como se quisesse ver minha reação ao nome.

E eu reagi. O som do nome dele era diferente, quase musical, algo que não se ouve todo dia. Minha curiosidade se acendeu instantaneamente.

— Azirrel? — repeti, saboreando o som. — É um nome lindo. Nunca ouvi nada parecido.

Ele deu um sorriso que parecia ainda mais sincero, quase tímido, como se não estivesse acostumado a receber elogios.

— Obrigado. É um nome antigo, um pouco fora do comum, mas gosto dele. E combina comigo, acho.

— Combina, sim — murmurei antes que pudesse me conter. E ele pareceu notar.

Continuamos conversando, o tema logo deslizando para livros e histórias. Descobri que ele tinha uma paixão imensa por literatura, mas não apenas por ler; ele escrevia também. Seus olhos brilhavam enquanto me contava sobre os mundos que criava, personagens que pareciam tão reais para ele quanto as pessoas ao nosso redor na praça.

— E você? — perguntou. — O que gosta de ler?

Contei-lhe sobre meu gosto por romances cheios de emoção, livros que exploravam os pequenos detalhes das relações humanas. Ele ouviu tudo com atenção genuína, intercalando comentários inteligentes, como se estivesse realmente interessado em tudo que eu dizia.

Quando o sol começou a se pôr, o céu pintado de laranja e rosa, ele hesitou por um momento antes de falar:

— Eu adoraria conversar mais com você, Laís. É raro encontrar alguém com quem eu possa compartilhar essas coisas. Posso... — Ele pareceu ponderar como formular a frase, mas depois apenas sorriu de lado. — Posso anotar seu número?

Meu coração acelerou, mas, para minha surpresa, minhas mãos estavam firmes quando peguei meu celular e troquei contatos com ele.

— Quero ouvir mais sobre seus livros, Azirrel — confessei enquanto guardava o aparelho.

Ele levantou-se do banco, pronto para partir, mas não sem antes me lançar um último sorriso.

— Prometo que vamos conversar mais. Foi um prazer te conhecer, Laís.

Enquanto ele se afastava, percebi que havia algo nele – na presença dele, no jeito dele – que parecia ter plantado uma nova história dentro de mim. E, pela primeira vez em muito tempo, fechei o livro em minhas mãos sem sentir pressa para reabri-lo. A vida, naquele momento, parecia mais interessante do que qualquer ficção.

Cadê o Amor

Cheguei em casa ainda com o sorriso bobo no rosto, revivendo cada detalhe do encontro com Azirrel. A sensação de algo novo e promissor pairava sobre mim, como se o mundo tivesse ganhado novas cores. Mas, assim que abri a porta da sala, tudo isso desmoronou.

Lá estava ele, meu pai, sentado no sofá. Ao lado dele, uma mulher. Ela era mais jovem, talvez na casa dos 30, com um sorriso forçado e roupas que pareciam escolhidas para impressionar. Eles riam juntos, de algo que ela disse, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Meu coração disparou, mas dessa vez não era por encanto, e sim por raiva.

— O que está acontecendo aqui? — minha voz saiu alta, trêmula.

Meu pai olhou para mim, surpreso, talvez chocado por eu ter chegado tão cedo. Ele tentou falar, mas nenhuma palavra saiu. A mulher ficou visivelmente desconfortável, ajeitando o cabelo nervosamente.

— Quem é ela, pai? — perguntei, sem conseguir conter o tom de acusação.

— Laís, calma... Não é o que você está pensando — começou ele, mas a desculpa soou vazia, como todas aquelas frases prontas que só pioram a situação.

Eu ri, mas foi um riso amargo, cheio de incredulidade.

— Não é o que eu estou pensando? Então por que ela está aqui? Por que você está rindo com ela, como se fosse normal?

Ele abriu a boca para responder, mas eu não esperei. Senti as lágrimas queimarem meus olhos, mas não as deixei cair. Apenas subi correndo as escadas, batendo a porta do meu quarto com força suficiente para fazer a casa tremer.

Do lado de dentro, joguei minha mochila no chão e me sentei na cama, o coração martelando no peito. Aquela cena não fazia sentido. Não era o meu pai, o homem que sempre admirei, que sempre parecia tão dedicado à minha mãe, à nossa família.

Alguns minutos depois, ouvi passos no corredor. Meu pai bateu na porta, com suavidade, como se isso pudesse apagar o que tinha acontecido.

— Laís, posso entrar? — ele perguntou, a voz baixa, quase um sussurro.

— Não! — gritei de volta.

Mas ele entrou mesmo assim, fechando a porta atrás de si. Ele parecia cansado, a culpa estampada no rosto.

— Laís, por favor, me escuta. Eu... Eu cometi um erro.

— Um erro? — eu rebati, encarando-o. — Um erro é esquecer um compromisso, pai. Isso... Isso é trair a mamãe.

Ele suspirou, passando a mão pelo rosto, e sentou-se na beirada da cama.

— Eu sei. E eu não estou tentando justificar o que fiz. Foi um momento de fraqueza, algo que nunca deveria ter acontecido.

— Então por que aconteceu? — eu perguntei, tentando manter a voz firme, mas sentindo as lágrimas ameaçarem cair.

Ele ficou em silêncio por um momento, como se procurasse as palavras certas.

— Eu não sei, Laís. Mas o que eu sei é que sua mãe não pode saber disso. Não agora. Não desse jeito.

Eu o encarei, incrédula.

— Você quer que eu minta para ela?

— Não estou pedindo para mentir — ele respondeu rapidamente. — Só... Só para me dar tempo. Para consertar as coisas.

Houve um silêncio pesado entre nós, e eu finalmente desviei o olhar.

— Eu não prometo nada, pai.

Ele assentiu, levantou-se devagar e saiu do quarto. Assim que a porta se fechou, me joguei na cama, abraçando o travesseiro como se pudesse afogar nele todo o turbilhão que sentia. Meu pai não era o herói que eu pensava. E, pela primeira vez, percebi como a vida real podia ser tão complexa e dolorosa quanto qualquer história de livro.

Ainda sentada na cama, depois que meu pai saiu, minha mente estava em caos. Respirei fundo e, quase por reflexo, peguei o celular na mochila. O aplicativo de chat estava aberto na última conversa que eu havia iniciado com Azirrel, quando trocamos nossos números. Senti uma ponta de esperança ao abrir a tela, esperando que talvez ele tivesse mandado alguma mensagem, algo simples, mas que me tirasse daquele turbilhão.

Nada. Nenhuma mensagem.

Suspirei, tentando não me sentir tola por esperar tanto de alguém que mal conhecia. Coloquei o celular ao meu lado e fiquei olhando pela janela, vendo o dia escurecer lentamente. As luzes da rua se acenderam, uma a uma, enquanto a noite tomava conta.

Pouco depois, ouvi o barulho da porta da frente se abrindo. Era minha mãe, finalmente voltando do trabalho. Ela é policial da Guarda Civil, e as horas no turno eram sempre longas. Mas, mesmo cansada, ela nunca deixava de sorrir quando entrava em casa.

— Laís? — chamou, e logo em seguida subiu as escadas. Quando abriu a porta do meu quarto, aquele sorriso que eu conhecia tão bem estava lá, iluminando seu rosto.

— Oi, mãe — respondi, me levantando da cama.

Ela me abraçou forte, como sempre fazia, mas, ao se afastar, franziu a testa.

— Você está estranha. Aconteceu alguma coisa?

Por um momento, hesitei. Não queria ser eu a responsável por trazer mais problemas para ela. Mas aquele nó na garganta estava me sufocando, e, antes que eu pudesse me conter, as palavras saíram.

— Mãe, eu... Eu vi o pai com outra mulher hoje. Aqui em casa.

Ela ficou em silêncio por alguns segundos, mas para minha surpresa, não pareceu chocada. Na verdade, ela suspirou, como se estivesse aliviada por finalmente ouvir isso de mim.

— Eu sei, Laís. Já sei disso há algum tempo.

— O quê? — perguntei, completamente atônita. — Você sabia? E não fez nada?

Ela sorriu, mas não era um sorriso alegre. Era triste, resignado. Sentou-se ao meu lado na cama e segurou minha mão.

— Laís, o amor entre mim e seu pai acabou há muito tempo. Nós tentamos, por você, pela família. Mas, no fundo, eu sabia que não havia mais nada ali. Ele é um bom homem, alguém que sempre esteve presente, mas... Não é mais meu parceiro.

Fiquei em silêncio, tentando processar aquilo. Era estranho ouvir essas palavras saindo da boca dela, porque sempre imaginei que eles eram... perfeitos juntos.

— Por que você não mandou ele embora? — perguntei finalmente, com a voz baixa.

Ela deu de ombros, os olhos cheios de algo que parecia ser um misto de cansaço e aceitação.

— Porque, de certa forma, ele ainda é parte da nossa família. E mandar alguém embora não é tão simples, Laís. Às vezes, não é por falta de coragem, mas porque você quer que as coisas continuem funcionando, mesmo que de uma forma diferente.

— Mas você não sente nada por ele? — insisti, tentando entender.

Ela balançou a cabeça, ainda sorrindo.

— Não como antes. O amor que tínhamos... acabou. O que resta agora é respeito, e talvez um pouco de comodidade. Mas eu não espero mais nada dele, nem ele de mim.

Aquilo me atingiu como um choque. Meu pai não era mais o herói, mas agora, minha mãe também não era a vítima que eu imaginei. Eles eram apenas duas pessoas comuns, tentando fazer o melhor que podiam, mesmo quando o "melhor" parecia estar desmoronando.

Naquele momento, percebi que as histórias de amor nos livros que eu tanto lia eram bem diferentes da realidade. O amor, no mundo real, era complicado, cheio de camadas e imperfeições. E, por mais doloroso que fosse, talvez fosse isso que o tornava tão humano.

Minha mãe me olhava com uma mistura de alívio e tristeza, como se finalmente estivesse liberando um peso que carregava há anos. Eu não sabia ao certo o que dizer, mas sabia o que sentia. Respirei fundo, me aproximei e a abracei com força, sentindo sua respiração vacilar por um instante antes de me abraçar de volta.

— Mãe, está tudo bem — sussurrei. — Vocês não precisam viver uma mentira por minha causa. Eu já sou maior de idade, tenho 18 anos. Sei que não é fácil, mas acho que... Acho que vai ser melhor assim.

Ela se afastou, o olhar dela procurando o meu, como se quisesse se certificar de que eu estava realmente bem.

— Você tem certeza, Laís? — perguntou, a voz carregada de preocupação. — Eu não quero que isso machuque você.

— Claro que machuca — confessei. — Mas dói mais ver vocês infelizes juntos. Eu amo vocês dois, e isso não vai mudar. Eu prometo.

Ela fechou os olhos por um instante, como se estivesse absorvendo minhas palavras. Quando abriu, o sorriso dela era genuíno, ainda que melancólico.

— Você é mais forte do que eu imaginava, Laís.

Antes que eu pudesse responder, ouvimos passos no corredor. Meu pai estava ali, parado na porta do quarto, com uma expressão incerta, como se não soubesse se devia entrar ou sair.

— Posso... posso entrar? — ele perguntou.

Minha mãe assentiu, e ele entrou, fechando a porta atrás de si. Por um momento, o silêncio entre nós era pesado, mas eu sabia que precisava quebrá-lo.

— Pai, a gente precisa conversar.

Ele suspirou e sentou-se na cadeira ao lado da escrivaninha, parecendo cansado, como se aquele dia tivesse sugado toda a energia dele.

— Eu sei que errei, Laís. E sei que vocês merecem mais do que isso.

— O que a gente merece — comecei, escolhendo as palavras com cuidado — é a verdade. Não precisa fingir mais, pai. Vocês dois não precisam. Eu amo vocês igualmente, mas não acho que seja justo viverem juntos se isso não faz mais sentido.

Minha mãe olhou para ele, e algo silencioso passou entre os dois. Era como se finalmente tivessem chegado a um entendimento que ambos temiam admitir por muito tempo.

— Ela está certa — disse minha mãe, a voz firme. — A gente tentou, mas acabou.

Meu pai abaixou a cabeça, passando as mãos pelos cabelos. Depois de um momento, ele se levantou.

— Vou pegar minhas coisas — disse, a voz rouca.

Ele saiu do quarto, e eu o ouvi abrir o guarda-roupa no quarto ao lado. Minha mãe ficou ali comigo, a mão dela descansando sobre a minha, em um gesto silencioso de apoio.

Pouco depois, ele voltou, uma mala na mão e o olhar pesado.

— Eu vou para um hotel por enquanto — disse. — E vou dar um jeito de organizar tudo depois.

Fiquei em pé, meu coração apertado, mas eu sabia que aquela era a coisa certa a ser feita.

— Pai... — chamei, a voz fraca. Ele se virou para mim.

— Eu amo você, tá? E isso não vai mudar.

Por um instante, ele pareceu prestes a chorar. Ele assentiu, aproximou-se e me deu um abraço apertado.

— Eu também te amo, filha. Sempre.

Com isso, ele saiu pela porta da frente. Eu e minha mãe ficamos na sala, em silêncio, ouvindo o som do carro dele se afastando.

Ela segurou minha mão e olhou para mim.

— A gente vai ficar bem, Laís.

E, naquele momento, apesar da dor, eu soube que ela estava certa. A vida mudaria, mas, de alguma forma, nós ficaríamos bem.

O Anjo sumido

Estava sentado no sofá, o celular na mão, encarando a tela como se ela fosse um abismo. O número dela estava ali, salvo e esperando. Laís. Seu sorriso doce, o jeito como ela falava sobre livros... Eu podia ouvir sua voz na minha cabeça, cada palavra impregnada de paixão. Mas algo dentro de mim hesitava.

"Não mande mensagem."

Era o que minha mente repetia como um mantra. Não era justo. Não era certo. Havia coisas sobre mim que ela não sabia, que ninguém sabia, e trazê-la para minha vida poderia ser um erro. Um erro que talvez ela não pudesse suportar.

Suspirei e larguei o celular na mesa.

— Não hoje.

Levantei-me, sentindo a fome me cutucar. Abri a geladeira e encontrei... nada. Apenas um pote de molho esquecido e uma garrafa de água quase vazia. Suspirei novamente.

— Supermercado, então.

Coloquei o casaco, peguei as chaves e saí. O pequeno mercado do bairro estava quase vazio, o que tornava tudo mais rápido. Peguei algumas coisas básicas: pão, leite, ovos. Não queria nada complicado. Paguei e saí, começando a caminhada de volta para casa.

Foi então que aconteceu.

O ar ao meu redor começou a mudar. Uma fumaça escura começou a subir do chão, rodopiando como se tivesse vida própria. O som de garras rasgando o concreto ecoou pela rua deserta, e eu parei, meu coração acelerando, mas não por medo.

— De novo, Abdom? — murmurei, antes mesmo de ele aparecer.

A fumaça tomou forma diante de mim, crescendo, até se solidificar em algo que apenas eu podia ver. Metade humano, metade demônio. Sua pele era cinzenta, quase negra, com marcas que brilhavam em vermelho como lava. Os olhos, dois buracos sombrios, exalavam uma energia maligna, mas familiar. Seus dentes se mostraram em um sorriso largo, inumano.

— Azirrel. — Sua voz soou como uma mistura de várias, cada uma mais grave que a outra. — Faz tempo que não nos encontramos.

Eu cruzei os braços, encarando-o.

— E por um bom motivo. O que você quer?

Ele riu, um som gutural que fez o ar parecer mais pesado ao nosso redor.

— Nada demais. Apenas uma visita amigável. Senti sua hesitação. Algo está perturbando sua mente, e você sabe que eu sempre gosto de ajudar.

— Ajudar? — ri, sem humor. — Você não sabe o significado dessa palavra, Abdom.

Ele deu de ombros, as garras brilhando enquanto caminhava ao meu redor, como um predador avaliando sua presa.

— Talvez. Mas você parece... diferente. Há alguém novo, não é? Uma garota.

Eu estreitei os olhos para ele.

— Como você sabe disso?

— Eu sinto. Você carrega isso em sua energia. Algo novo, algo puro... algo que não combina com você.

Engoli em seco, mas não respondi. Ele estava certo, é claro. Laís era tudo isso e mais. Ela era luz, e eu... Bem, eu era tudo menos isso.

— O que você quer dizer com "não combina"? — perguntei, tentando manter a calma.

Abdom sorriu novamente, dessa vez mais sombrio.

— Apenas que você deveria pensar duas vezes antes de se envolver. Você sabe como essas coisas terminam.

— Não preciso do seu conselho — retruquei, começando a andar em direção ao meu apartamento. — E você não é bem-vindo aqui.

— Ah, mas você sabe que eu sempre entro onde quiser. — Ele riu, seguindo-me sem esforço, as sombras dançando ao seu redor.

Chegamos ao meu apartamento, e ele entrou comigo, como sempre fazia. Sentou-se na poltrona como se fosse o dono do lugar, as garras tamborilando no braço da cadeira.

— Então, me conte sobre ela — disse ele, inclinando-se para a frente. — O que tem essa garota que fez você duvidar de tudo?

Olhei para ele, sentindo o peso da pergunta. Não sabia se devia responder, mas, como sempre, ele tinha esse jeito de arrancar verdades que eu não queria admitir.

— Ela é... diferente. É luz, Abdom. Algo que eu não tenho há muito tempo.

Ele riu, aquele som gutural novamente.

— Luz, hein? Interessante. Vamos ver quanto tempo ela dura antes de perceber o que você realmente é.

Aquelas palavras ficaram pairando no ar enquanto ele ria, e, por mais que eu quisesse ignorá-las, não conseguia. Afinal, parte de mim sabia que ele tinha razão.

Eu olhei para Abdom, que permanecia sentado na poltrona, suas garras batendo ritmicamente contra o braço do móvel. O silêncio entre nós era denso, carregado de algo que não era apenas o peso do que ele acabara de dizer, mas também o entendimento tácito de tudo que estava em jogo. Não eram apenas minhas dúvidas sobre Laís ou o que ela representava para mim; era algo maior, mais profundo. A pergunta que eu estava evitando por tanto tempo finalmente escapou da minha boca, com um tom de curiosidade que não pude esconder.

— E como está a vida, Abdom? Como anda o reinado das forças da revolta contra o TODO PODEROSO?

Ele ergueu os olhos para mim, aquele sorriso torto se expandindo em seu rosto demoníaco, como se a minha pergunta fosse uma piada privada entre nós. Abdom sempre foi alguém que gostava de brincar com o caos, e de certa forma, ele se alimentava disso. O mundo estava em frangalhos, mas ele parecia se divertir com isso mais do que qualquer um.

— Ah, você sabe... a vida de general nunca é fácil — respondeu ele, a voz se arrastando como se estivesse se deleitando com cada palavra. — Mas tem sido interessante. A revolta está se espalhando, mais almas se juntando à nossa causa... e claro, o TODO PODEROSO, como sempre, não tem dado a mínima para nada.

Minha mente ficou em silêncio por um segundo, tentando processar o que ele estava dizendo. O caos estava crescendo, e no entanto, o que eu sentia de mais importante estava cada vez mais longe de tudo aquilo. Eu quase não ligava para a guerra que se aproximava; tudo o que eu queria era entender minha conexão com Laís e o que ela representava para mim. Mas não podia evitar, a curiosidade me empurrava a perguntar mais.

— E como está o seu pai? — perguntei, sem pensar muito. Abdom sempre mencionava o Lorde Infernal em suas conversas, e, apesar de seu tom irreverente, havia sempre um certo respeito, ou talvez medo, que ele não conseguia esconder.

Abdom riu baixinho, a gargalhada ecoando pela sala, e sua presença parecia crescer mais e mais, como se o próprio ar estivesse se tornando mais denso.

— Ah, meu velho pai... está muito ansioso, posso te garantir isso. Não sei o que ele está esperando, talvez uma vitória definitiva, talvez um novo desastre. Mas, veja... há algo interessante acontecendo no lado dele também. O Senhor Lúcifer, você sabe, o líder da nossa revolução contra Deus, tem andado distraído...

Eu o encarei, curioso e desconfortável ao mesmo tempo.

— Distraído?

Abdom sorriu de maneira ainda mais sinistra, os olhos brilhando com um prazer doentio.

— Sim. Dizem por aí que o Senhor Lúcifer tem andado mais... envolvido com um homem humano. E não é qualquer homem, parece que é alguém que está chamando bastante sua atenção. Ele tem passado noites com esse humano, enquanto a revolta contra Deus vai acontecendo sem muito controle.

Fiquei em silêncio, absorvendo as palavras. A ideia de Lúcifer, o Senhor da Revolta, tão distraído com algo tão humano e frágil, algo tão... carnal, era de uma estranheza que eu mal podia compreender.

— E ele não está se importando com a revolta? Com o fim do mundo? — perguntei, tentando entender o tamanho da gravidade da situação.

Abdom deu de ombros, o sorriso dele desaparecendo por um momento, substituído por uma expressão que misturava frustração e indiferença.

— Não, ele não está. E isso preocupa meu pai. O Senhor Lúcifer está, de certa forma, abandonando a guerra. Ele está se deixando levar pelas... tentações dos humanos. Ele não está mais tão preocupado com a nossa revolução contra o TODO PODEROSO. Está mais preocupado em satisfazer suas próprias vontades.

Havia um tom de desdém em sua voz, como se ele próprio visse aquilo como uma falha terrível, uma distração que poderia comprometer tudo o que eles haviam trabalhado para construir.

Eu respirei fundo, tentando entender o impacto disso. O Senhor Lúcifer, que era a figura principal da revolta, agora estava mais focado em desejos pessoais do que na batalha maior que definia o destino do universo. O caos que ele havia prometido agora parecia desmoronar, não pela falta de poder, mas pela falta de foco.

— Isso pode ser... perigoso — murmurei.

Abdom olhou para mim, os olhos escuros se estreitando de uma maneira que não era normal.

— Você não faz ideia.

Eu o observei por um momento, sentindo o peso de suas palavras, e naquele instante, percebi que o que estava se desenrolando ao meu redor, o que eu havia me envolvido, não era apenas uma guerra de mundos ou de deuses. Era uma guerra interna, onde a linha entre a humanidade e a escuridão era mais tênue do que eu queria acreditar. E a cada dia que passava, a escuridão parecia se aproximar mais de mim.

Eu levantei-me, sem responder, e fui até a cozinha. Peguei um copo d'água e deixei o líquido escorrer pela minha garganta, sentindo o refresco como se fosse a única coisa real naquele momento. O barulho do copo tocando a bancada ecoou pela sala, mas não interrompeu o silêncio pesado que havia se instalado entre mim e Abdom.

Ele ainda estava ali, sua presença massiva pairando no ar, mais desconfortável do que qualquer peso físico. Seus olhos, aqueles buracos sombrios, continuavam me observando com uma curiosidade de quem já sabia a resposta, mas queria se divertir com a revelação.

— Então, Azirrel... — ele disse, a voz arrastada e cheia de um prazer sádico. — Voltou a falar com Castiel?

Eu congelei, o copo ainda na mão, e uma onda de raiva se formou dentro de mim. Como ele sabia disso? Como ele sabia de minha conexão com Castiel, o anjo que, por muito tempo, sumiu da minha vida, das suas metas responsabilidades de pai? O que Abdom queria?

A verdade se instalou lentamente, como uma agulha fina perfurando meu peito. Ele estava aqui não por acaso, mas porque queria informações, queria saber mais sobre algo celestial, algo que ele acreditava que eu ainda tinha. Algo que eu já havia deixado para trás.

Abdom continuou, sorrindo de forma maléfica, seu olhar penetrante como se tentasse arrancar as respostas diretamente de minha alma.

— Não é segredo para ninguém que seu pai quer um dos anjos mais poderosos. — Ele deu uma risada abafada. — Castiel, certo? O anjo que você tanto adorava, a luz que você seguia.

Eu virei o copo de água de uma vez, tentando manter o controle, mas dentro de mim, algo se partiu. Eu não queria mais fazer parte daquela guerra celestial. Não queria mais ser um peão nas mãos de seres que brincavam com o destino dos mundos.

E então, como se ele tivesse acertado exatamente onde me ferir, Abdom soltou uma risada, a voz dele reverberando pelo apartamento.

— Você não adora mais o TODO PODEROSO, não é? — ele provocou, a escarneira em sua voz quase palpável. — O que aconteceu, Azirrel? Onde está aquele anjo que acreditava que poderia salvar o mundo?

Eu senti um brilho se acender dentro de mim. Meus olhos brilharam, e não era mais a luz suave de um ser humano que ainda se importava com o bem e o mal. Era uma luz intensa, pura, quase cegante, um reflexo da raiva e da dor que eu carregava dentro de mim.

A energia ao meu redor se alterou, e pude sentir o peso do poder crescendo em mim, um poder que não estava mais preso a nenhum lado.

— Cala a boca, Abdom! — gritei, minha voz se tornando um rugido. Eu não podia mais ouvir suas provocações. — Não me meta na guerra de vocês, celestiais e infernais! Que se virem!

Aqueles gritos partiram da minha garganta com uma força inesperada, como se todo o peso de minha frustração e repulsa por ambos os lados fosse liberado de uma vez. O som ecoou pela sala, os vidros das janelas tremendo com a intensidade do meu grito.

Abdom recuou, sua risada diminuindo lentamente, mas seu sorriso, agora mais subtil, permaneceu. Ele sabia que eu estava quebrado, que minha lealdade já não existia mais, nem para os céus, nem para o inferno.

— Ah, Azirrel... — disse ele, sua voz agora mais calma, como se estivesse satisfeito com a reação. — Você já não é mais o que era. E eu já sabia disso.

Ele se levantou, aproximando-se de mim com a suavidade de um predador que sabe que a presa já está enfraquecida. Eu o encarei, o brilho nos meus olhos ainda visível, mas algo dentro de mim estava cansado.

— Vá embora, Abdom — murmurei, a voz mais baixa agora, mas firme. — Não quero mais saber de vocês, de suas guerras ou dos seus jogos.

Abdom não disse mais nada. Apenas riu de maneira baixa, como se estivesse se divertindo com o quão longe eu havia chegado. Ele virou-se e se afastou, seu corpo desaparecendo na fumaça que ele havia trazido, deixando para trás uma sensação de vazio e perda.

O silêncio tomou conta novamente, e eu fiquei ali, sozinho, com o peso das palavras que eu havia lançado, mas sem saber o que viria depois. O que restava para alguém como eu, que havia abandonado ambos os lados, que se via perdido entre a luz e a escuridão?

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