A névoa pairava sobre Valderis como um véu espectral, envolvendo a vila em um silêncio inquietante. As ruas estreitas e sinuosas estavam desertas, exceto pelo som suave dos passos apressados de Lyra contra o chão de paralelepípedos molhados pelo orvalho da madrugada. Seu coração batia forte no peito, um ritmo frenético que ecoava em seus ouvidos. Ela não sabia exatamente por que estava ali, apenas que algo dentro dela a guiava naquela direção.
O vento soprava com força, fazendo as tochas presas às paredes de pedra oscilarem, lançando sombras dançantes pelo caminho. O céu, iluminado pela lua cheia, estava límpido, mas um peso invisível pairava no ar. Lyra puxou a capa para mais perto do corpo, tentando afastar o frio que não vinha apenas da noite, mas de dentro de si.
Ela nunca fora de acreditar em presságios. Acreditava na força de sua própria magia, no conhecimento que vinha dos anos de aprendizado e no legado de sua mãe, uma bruxa respeitada pelos anciões. Mas naquela noite, tudo parecia diferente. O ar estava carregado, e sua pele formigava como se eletricidade fluísse sob sua pele.
O templo dos anciões surgiu diante dela no topo da colina, imponente e silencioso. Construído há séculos, suas pedras escuras carregavam a energia de gerações de bruxos que haviam passado por seus salões. As portas de madeira maciça estavam entreabertas, e uma luz trêmula escapava do interior, misturando-se com a névoa densa.
Lyra hesitou por um instante. Algo a esperava ali dentro. Algo que mudaria sua vida para sempre.
Inspirando fundo, empurrou a porta com as mãos trêmulas e entrou.
O salão era circular, iluminado apenas por tochas presas às paredes e pelo brilho prateado da lua que entrava pelas frestas no teto. O chão de pedra estava coberto por símbolos antigos, e no centro, sobre um altar de mármore negro, repousava um pergaminho selado.
Cinco figuras encapuzadas estavam dispostas em um semicírculo ao redor do altar, recitando cânticos em uma língua antiga. Os anciões.
Lyra sentiu a garganta secar. Ela não deveria estar ali.
E, no entanto, sentia que aquele era seu lugar.
O Ancião Edros ergueu a cabeça, seu olhar afiado pousando sobre ela. Seus olhos pareciam enxergar além da carne, perfurando sua alma.
— Lyra — ele disse, sua voz reverberando pelo salão. — Você sentiu o chamado, não foi?
Ela abriu a boca para negar, mas sabia que seria mentira. Não tinha explicação para o que a trouxera até ali, apenas a certeza de que deveria estar presente.
— Sim — respondeu, baixinho.
Os anciões trocaram olhares. Lyra não soube dizer se era aprovação ou preocupação.
Edros se aproximou do altar e passou a mão sobre o pergaminho, como se sentisse sua energia.
— O destino falou esta noite.
As palavras fizeram um calafrio percorrer a espinha de Lyra. Nada de bom nunca começava com essa frase.
A Anciã Nymeron, uma mulher de cabelos prateados e olhos severos, apontou para o pergaminho.
— Este é o chamado do Véu.
A respiração de Lyra falhou.
O Véu.
Lendas antigas falavam sobre um artefato capaz de vislumbrar o futuro e moldar o destino daqueles que ousavam tocá-lo. Mas ninguém o controlava sem pagar um preço. Ele escolhia seu portador, e o custo de seu poder era sempre um sacrifício.
— Deve haver um engano — murmurou, a voz trêmula. — Eu não posso...
Antes que pudesse terminar a frase, uma onda de energia percorreu o salão. O selo do pergaminho brilhou em um tom dourado intenso antes de se romper sozinho, como se uma força invisível estivesse aguardando aquele momento.
O ar se tornou pesado. As tochas vacilaram, sombras se contorcendo nas paredes como se estivessem vivas. Um vento gelado soprou pelo templo, e a sensação de algo muito antigo despertando fez todos os anciões darem um passo para trás.
O pergaminho se abriu lentamente, desdobrando-se sem que ninguém o tocasse.
Lyra não conseguia desviar o olhar.
Palavras começaram a se formar no pergaminho, escritas com uma tinta negra que parecia escorrer como sangue. Uma profecia se desenhava diante dela, e então seus olhos se arregalaram ao ver algo que fez seu coração parar.
Seu nome.
Estava escrito ali, no centro do texto sagrado.
O salão pareceu desaparecer ao seu redor. Sua visão escureceu por um momento, e então flashes começaram a surgir em sua mente. Imagens de fogo e destruição, de rostos que ela não conhecia, mas que pareciam gritar seu nome. O som de lâminas se chocando, trovões rompendo os céus, e uma voz sussurrando ao seu ouvido:
"Você será a ruína ou a salvação."
Lyra caiu de joelhos, o pergaminho pulsando diante dela.
Seu destino havia sido selado.
Ela havia sido marcada pelo Véu.
O templo dos anciões estava mergulhado em um silêncio denso, como se até o tempo tivesse parado. O pergaminho ainda flutuava sobre o altar, irradiando uma energia antiga e pulsante. Lyra sentia a vibração do poder atravessar sua pele, arrepiando cada centímetro de seu corpo. Seu nome gravado na profecia queimava em sua mente como uma marca impossível de apagar.
Ela tentou processar o que aquilo significava, mas tudo parecia um turbilhão confuso e assustador. O Véu a escolhera. Mas para quê? E a que custo?
Os anciões trocavam olhares graves entre si, seus semblantes ocultos sob os capuzes pesados. O Ancião Edros finalmente deu um passo à frente, sua voz ecoando pelo salão sagrado.
— O Véu escolheu.
Havia uma solenidade em seu tom, algo quase ritualístico. Mas Lyra só conseguia sentir o peso daquelas palavras.
Ela engoliu em seco e se forçou a levantar. As pernas ainda estavam trêmulas, como se uma energia estranha as percorresse, mas ela não queria parecer fraca diante deles.
— O que isso significa exatamente? — sua voz saiu firme, apesar da confusão em sua mente.
A Anciã Nymeron avançou alguns passos, seu olhar severo pousando sobre ela. Os cabelos prateados brilhavam sob a luz bruxuleante das tochas, e havia algo em sua postura que fazia Lyra sentir que estava sendo avaliada.
— Significa que seu destino agora está entrelaçado ao Véu — respondeu Nymeron, sem rodeios. — Ele a escolheu como sua portadora.
Lyra sentiu o estômago revirar.
— Mas por quê? — Sua voz elevou-se, carregada de incredulidade. — O que há de tão especial em mim?
A resposta veio de Edros, e não era nada reconfortante.
— O Véu não escolhe ao acaso. Há algo em você, Lyra. Algo que nem mesmo nós compreendemos ainda.
Ela sentiu um calafrio. Essa não era a resposta que queria ouvir.
O templo parecia menor de repente, como se as paredes estivessem se fechando ao seu redor. O ar carregado de incenso e magia a sufocava.
— E se eu não quiser isso? — perguntou, a voz ligeiramente vacilante.
Nymeron arqueou uma sobrancelha.
— O Véu não aceita recusas.
Aquelas palavras caíram sobre Lyra como uma sentença. Seu destino já estava selado.
Ela respirou fundo, tentando manter o controle.
— E qual é o preço? — perguntou, cruzando os braços em uma tentativa de esconder o tremor nas mãos.
Edros hesitou antes de responder.
— Ainda não sabemos.
Essa incerteza era pior do que qualquer resposta concreta. O desconhecido sempre fora um de seus maiores temores, e agora ela estava mergulhada nele.
As tochas nas paredes vacilaram, lançando sombras dançantes pelo salão. Lyra observou os anciões se afastarem, murmurando entre si sobre o que deveria ser feito a seguir.
Mas uma coisa era certa: sua vida nunca mais seria a mesma.
O caminho de volta para casa foi longo e silencioso.
A vila de Valderis estava envolta em um manto de neblina, tornando cada rua um labIrinto fantasmagórico. As casas de pedra e madeira dormiam sob a luz fraca da lua, e o único som além de seus passos era o sopro do vento frio que cortava a noite.
Lyra sentia-se estranha, como se uma energia invisível ainda pulsasse dentro dela desde o momento em que viu seu nome na profecia.
Quando finalmente alcançou a casa onde morava com sua avó, hesitou antes de entrar.
O pequeno chalé de pedra era acolhedor, com sua porta de madeira entalhada e a trepadeira que se espalhava pelas paredes. A luz bruxuleante de uma lamparina acesa filtrava-se pela janela, indicando que sua avó ainda estava acordada.
Ela respirou fundo antes de empurrar a porta.
O cheiro familiar de ervas secas e chá recém-preparado a envolveu de imediato. O fogo na lareira lançava um brilho alaranjado pelo cômodo, tornando o ambiente aquecido e confortável.
Sua avó, uma mulher de feições fortes e olhos sábios, estava sentada à mesa, misturando ingredientes em um almofariz de pedra. Quando ergueu o olhar para Lyra, não precisou perguntar nada.
— O Véu te encontrou.
Lyra sentiu um arrepio.
— Você sabia que isso ia acontecer?
A velha bruxa soltou um suspiro, deixando o pilão de lado.
— Sabia que era uma possibilidade — admitiu. — Mas esperava que o destino te desse mais tempo.
Lyra puxou uma cadeira e sentou-se, sentindo o cansaço pesar sobre seus ombros.
— Eles disseram que há um preço. Mas não sabem qual é.
A avó a observou por um longo momento antes de dizer:
— O Véu nunca escolhe alguém sem cobrar algo em troca. E nunca escolhe por acaso.
Lyra fechou os olhos por um instante.
— Eu não queria isso.
A avó pousou uma mão sobre a dela.
— Nenhum escolhido quer, no início. Mas agora você precisa decidir: vai lutar contra o destino ou aceitá-lo?
A pergunta ecoou em sua mente.
Ela não tinha resposta.
Lyra passou a noite inquieta, virando-se na cama enquanto a profecia continuava a ecoar em sua mente.
"Você será a ruína ou a salvação."
As palavras sussurravam em seus pensamentos, como se o próprio Véu falasse com ela.
Quando finalmente adormeceu, seus sonhos foram tomados por visões de fogo e sombras, de vozes distantes chamando seu nome.
E então, viu algo que a fez despertar com um sobressalto.
Uma silhueta encapuzada segurando o pergaminho.
E um sorriso cruel iluminado pela luz do fogo.
Seu destino havia sido selado.
Mas não era a única que sabia disso.
O sol mal havia nascido quando Lyra saiu de casa. O céu ainda estava tingido de um azul pálido, com os últimos resquícios de estrelas desvanecendo-se lentamente. O frio da manhã a envolveu, mas o peso do que carregava dentro de si era ainda mais avassalador.
Ela não conseguira dormir. As palavras da profecia ecoavam em sua mente como um feitiço inquebrável. A silhueta encapuzada em seu sonho, o fogo, o sorriso cruel... tudo parecia um aviso.
A vila de Valderis ainda dormia, mas ela sabia que os anciões não. Eles certamente já estavam reunidos no templo, decidindo qual seria seu próximo passo. O Véu a escolhera, e agora todos esperavam que ela assumisse um papel que não compreendia completamente.
Suas botas pisavam no chão de terra úmida conforme caminhava pela trilha que levava ao centro da vila. Ao longe, os primeiros sinais de vida começavam a surgir: um ferreiro acendendo sua forja, uma mulher pendurando ervas para secar, algumas crianças correndo entre as casas, seus risos ainda envoltos na inocência da manhã.
Ela parou diante do templo dos anciões. A estrutura de pedra escura erguia-se imponente diante dela, as portas entalhadas com símbolos antigos que pareciam pulsar com energia própria. Inspirou fundo antes de empurrá-las, sentindo o ar carregado de incenso e magia envolver seu corpo.
Os anciões já estavam reunidos. O Ancião Edros, como sempre, ocupava o centro da sala, sua expressão grave. Nymeron estava ao seu lado, o olhar afiado como lâminas de obsidiana. Outros três anciões completavam o círculo, murmurando entre si antes de silenciarem quando Lyra entrou.
— Vejo que não perdeu tempo — comentou Nymeron, avaliando-a de cima a baixo.
— Não há tempo a perder, não é? — Lyra retrucou, cruzando os braços.
Edros assentiu.
— O Véu a escolheu. Agora é hora de entender por quê.
Ele fez um gesto e um dos anciões aproximou-se, trazendo um livro envelhecido com capas de couro desgastadas. Lyra observou enquanto ele o depositava no altar. Os símbolos dourados na capa pareciam brilhar levemente sob a luz das tochas.
— O Livro do Véu — explicou Edros. — Nele, estão registradas todas as profecias passadas. E todas as consequências que se seguiram.
Lyra franziu o cenho.
— Consequências?
— O Véu nunca escolheu ninguém sem um propósito — disse Nymeron, folheando as páginas com cuidado. — Mas aqueles que foram escolhidos... pagaram preços altos.
A bruxa mais velha virou o livro para que Lyra pudesse ver. Gravuras detalhadas mostravam figuras envoltas em sombras, algumas caídas de joelhos, outras cobertas de chamas. Em uma das páginas, um homem segurava o Véu com ambas as mãos, o rosto contorcido em desespero.
— O que aconteceu com eles? — Lyra perguntou, sentindo um nó se formar em sua garganta.
Nymeron fechou o livro.
— Alguns foram consumidos pelo Véu. Outros tentaram usá-lo para mudar seus destinos e acabaram destruindo tudo o que amavam.
Lyra sentiu um arrepio.
— Então... é uma maldição?
Edros a observou por um momento antes de responder:
— Não. Mas também não é um presente. É uma responsabilidade.
Ela desviou o olhar para o altar, onde o pergaminho com a profecia ainda repousava. Sentia sua presença como se fosse uma entidade viva.
— Como posso evitar isso? — perguntou, mais para si mesma do que para eles.
— Aprendendo — disse Nymeron. — Dominando o Véu antes que ele a domine.
O silêncio caiu entre eles. O peso daquelas palavras era quase sufocante.
Lyra sabia que não tinha escolha.
Ela precisava aprender a controlar aquele poder. Ou seria consumida por ele.
***
O treinamento começou naquela mesma tarde.
Nymeron a levou para as catacumbas sob o templo, um labirinto subterrâneo onde a magia antiga ainda permeava as paredes de pedra. O ar era denso, carregado com o cheiro de velas queimadas e pó ancestral.
— O Véu é uma ponte entre o presente e o futuro — explicou Nymeron, acendendo tochas ao longo do corredor. — Mas o futuro não é fixo. Ele muda conforme as escolhas são feitas.
Lyra seguiu a anciã até uma câmara circular no final do corredor. No centro, um pedestal de pedra segurava um espelho negro, sua superfície ondulante como água parada.
— O que é isso? — perguntou Lyra, aproximando-se com cautela.
— Um espelho de vislumbre — respondeu Nymeron. — Ele permite ver fragmentos do que está por vir.
Lyra olhou para seu próprio reflexo distorcido no vidro.
— E o que eu devo fazer?
Nymeron ergueu uma das mãos e murmurou uma palavra em uma língua antiga. O espelho brilhou intensamente, e a imagem de Lyra desapareceu, substituída por algo que fez seu sangue gelar.
Chamas.
Valderis estava em chamas.
Pessoas corriam, gritos ecoavam. Soldados marchavam pelas ruas, suas lâminas brilhando à luz do fogo. No centro do caos, uma figura encapuzada segurava o Véu.
Lyra.
Ela viu a si mesma, olhos brilhando com uma energia que não reconhecia, os lábios curvados em um sorriso que não era seu.
— O que... o que é isso? — perguntou, recuando.
Nymeron observava atentamente.
— Um possível futuro.
Lyra negou com a cabeça.
— Não. Eu nunca faria isso.
— Você pode nunca querer — disse Nymeron. — Mas o Véu não apenas mostra o futuro. Ele pode moldá-lo.
O desespero cresceu dentro de Lyra.
— Então o que devo fazer?
A anciã a encarou, a expressão séria.
— Descobrir se esse é um destino inevitável... ou se você pode mudá-lo.
Lyra olhou novamente para o espelho.
As chamas ainda dançavam diante de seus olhos.
E, no fundo de sua mente, uma pergunta ecoava:
*"O Véu escolheu você... mas será que você pode escolher seu próprio destino?"*
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