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Meu nome é Isadora Medeiros, e, por muito tempo, eu me perguntei se havia algo de errado comigo. Não que alguém precisasse me dizer diretamente – a vida já fazia questão de gritar isso a cada esquina que eu dobrava. Mas, pensando bem, as pessoas nunca economizaram palavras para me lembrar disso.
Eu cresci em uma casa pequena, de paredes gastas e silêncio pesado. Não era só a pobreza que nos cercava, mas a falta de amor. Minha mãe sempre dizia que eu deveria ser grata pelo que tinha, mas como posso ser grata quando tudo que ouço é que sou "um peso" ou que "ninguém nunca vai querer uma filha como eu"? Meu pai, por outro lado, era um fantasma. Ele estava ali, mas não estava. Nunca me olhava nos olhos, nunca perguntava como eu estava. Às vezes, eu achava que ele preferia que eu não existisse.
Na escola, as coisas eram ainda piores. Desde pequena, eu era maior do que as outras crianças – "gorda" foi a palavra que me acompanharam desde os sete anos. Os apelidos começaram cedo: "Baleia", "gelatina ambulante", "saco de areia". Às vezes, eu chorava no banheiro, tentando me convencer de que aquilo não importava. Mas importava. Cada palavra entrava em mim como uma faca, e eu carregava essas cicatrizes invisíveis todos os dias.
Conforme fui crescendo, a solidão se tornou minha melhor amiga. Enquanto outras garotas recebiam bilhetes de amor e andavam de mãos dadas pelos corredores, eu era a garota que ninguém olhava duas vezes. Nunca fui escolhida para dançar nas festas da escola, nunca fui chamada para um encontro. Era como se eu fosse invisível – ou, pior, como se eu fosse algo a ser evitado.
Eu nunca beijei ninguém. Não porque eu não quisesse, mas porque ninguém nunca quis me beijar. A sociedade parecia ter decidido que alguém como eu não era digna de amor. E sabe de uma coisa? Eu acreditei nisso.
Mas, no meio desse mar de rejeição, havia uma única pessoa que parecia me enxergar: Davi Cavalcanti, meu melhor amigo. Ele era tudo que eu não era: confiante, carismático, de uma beleza que fazia as meninas suspirarem. Ele vinha de uma família rica, e a diferença entre nossas vidas era gritante.
Lembro da primeira vez que entrei na casa de Davi. Era como entrar em outro mundo. Móveis de madeira polida, lustres brilhantes e uma mesa de jantar que parecia saída de um filme. Eu me sentia pequena naquele ambiente, como se não devesse estar ali. Mas Davi nunca me fez sentir isso. Ele me tratava como igual, como amiga, como alguém que importava.
Foi na casa dele que conheci o pai dele, Enrico Cavalcanti. Enrico era tudo que eu imaginava em um homem adulto: alto, bonito, com uma postura que exalava autoridade. Ele era viúvo, e Davi sempre dizia que o pai trabalhava demais, mas fazia o possível para estar presente. Para mim, ele era apenas o pai do meu amigo. Uma figura paternal, educada, mas distante.
Nunca pensei em Enrico como outra coisa, e tenho certeza de que ele nunca pensou em mim como algo além da amiga jovem e tímida de seu filho. E por que pensaria? Eu era só a Isa – a garota gorda, feia e sem graça que o filho dele chamava de amiga.
Mas, mesmo sem perceber, cada visita àquela casa foi plantando pequenas sementes de mudança dentro de mim. Naquele lugar, eu comecei a sonhar que, talvez, só talvez, eu pudesse ser mais do que aquilo que o mundo me dizia que eu era.
Eu só não sabia que a vida tinha planos que iam muito além dos meus sonhos.
-fim do capítulo 01
enrico Cavalcanti (31)
Meu nome é Enrico Cavalcanti, e, se eu tivesse que me descrever em uma palavra, seria: prático. Não há espaço para sentimentalismo no meu mundo. Quando a vida te dá responsabilidades muito cedo, você aprende a deixar de lado as emoções e foca no que é necessário.
Eu perdi minha esposa quando tinha 25 anos, e Davi, meu filho, tinha apenas quatro. Ela foi meu primeiro e único amor, e sua morte foi um golpe que mudou tudo. Desde então, minha prioridade foi criar meu filho e garantir que ele tivesse tudo o que eu não tive na infância. Cresci em uma família rica, mas a fortuna nunca veio com carinho ou apoio. Meus pais sempre exigiram perfeição, e, talvez por isso, eu tenha me tornado o homem que sou hoje: frio, calculista e direto.
Não sou um homem ruim. Apenas aprendi a não me apegar. Pessoas vão embora, seja pela morte ou por escolha própria, e, quanto menos você se permite sentir, menos dói quando isso acontece.
Eu me tornei um homem que os outros admiram, tanto pelos negócios quanto pela aparência. Alto, com cabelos escuros e sempre bem vestido, aprendi a manter uma imagem impecável. Meu trabalho exige isso, e, para ser sincero, nunca faltaram mulheres dispostas a preencher o vazio que minha esposa deixou. Mas nenhuma delas significou algo. Para mim, elas eram distrações, nada mais. Eu não sou do tipo que acredita em segundos amores.
Foi por isso que, durante anos, eu nunca olhei duas vezes para Isadora Medeiros. Ela era a melhor amiga de Davi, uma garota tímida, sempre com o olhar baixo e as mãos inquietas. Quando ela vinha à nossa casa, era educada, quase silenciosa, como se tivesse medo de incomodar. Eu a via como uma menina comum, alguém que fazia parte da vida do meu filho, mas não da minha.
Olhando para trás, percebo que, mesmo naquela época, eu era gentil com ela de uma forma que não era com os outros. Não por algo especial, mas porque havia algo nela que despertava minha paciência. Isadora não parecia acostumada a gentilezas, e isso me intrigava. Ela nunca me olhava diretamente nos olhos, como se achasse que não era digna de ser notada.
Eu não pensava muito nela, para ser honesto. Ela era só... Isa. A garota que Davi trazia para jantar de vez em quando. Durante esse tempo, minha vida seguia como sempre: trabalho, reuniões, relacionamentos casuais com mulheres que sabiam que eu nunca ofereceria mais do que algumas noites.
Para mim, o amor era um conceito superestimado. Já tinha amado uma vez, e isso quase me destruiu. Não havia espaço para isso de novo, nem na minha vida nem no meu coração.
Mas algo mudou com o tempo. Sem perceber, comecei a prestar mais atenção em Isadora. Ela continuava a mesma garota tímida e insegura, mas havia algo nos olhos dela que me deixava curioso – uma tristeza que eu não conseguia ignorar. Às vezes, ela se esforçava para esconder, mas, por algum motivo, eu conseguia enxergar.
Eu não sabia exatamente quando comecei a perceber pequenos detalhes: o jeito que ela mordia o lábio quando estava nervosa, ou como as bochechas ficavam coradas quando Davi dizia algo bobo para fazê-la rir. Ela não era bonita no sentido convencional, mas havia algo nela que começava a chamar minha atenção.
Claro, eu ignorei esses pensamentos. Era ridículo. Ela era muito mais jovem, e, além disso, era amiga do meu filho. Pensar nela de qualquer outra forma seria errado. Pelo menos, era o que eu dizia a mim mesmo.
Mas, com o passar do tempo, algo mudou. Não de forma súbita ou dramática, mas como um rio que lentamente encontra um novo curso.
-fim do capítulo 02
Eu sempre odiei as manhãs de segunda-feira. Não só porque elas anunciavam mais uma semana de aulas, mas porque significavam começar o dia com o estômago vazio. Minha mãe tinha uma regra simples: "Se não quiser ser chamada de baleia na rua, então não coma como uma." Era o tipo de comentário que ela fazia como se fosse para o meu bem, mas que me feria profundamente.
Naquela manhã, saí de casa com uma maçã na mão – que eu nem tive coragem de comer, já que minha mãe ficava me observando com o olhar de reprovação. O dia parecia mais longo do que o normal, e tudo que eu conseguia pensar era no cheiro do almoço da cantina da escola, mesmo sabendo que eu nunca teria coragem de gastar o dinheiro que mal tinha para comprar comida ali.
Quando Davi me chamou para ir à casa dele depois da aula, eu hesitei. Nós tínhamos que fazer um trabalho de literatura juntos, e eu sabia que ele insistiria até eu aceitar. Era sempre assim. Davi sabia que minha casa não era o melhor lugar para estudar, e, para ser sincera, a ideia de fugir daquele ambiente por algumas horas era quase tentadora.
— Vamos, Isa! Você sabe que meu pai vai estar ocupado e nem vai notar que você está lá. Além disso, você ama aquele sofá gigante da sala, não é? – ele disse, com aquele sorriso que sempre me fazia ceder.
Concordei, mesmo sabendo que minha mãe não gostaria de me ver entrando em outra casa para "incomodar os outros", como ela dizia.
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Quando chegamos à casa de Davi, a diferença entre nossas vidas parecia gritar na minha cara, como sempre. O cheiro da comida vinha da cozinha, e, por um momento, meu estômago roncou tão alto que tive medo que Davi ouvisse. Mas, claro, ele ouviu.
— Isa, você comeu hoje? – ele perguntou, com o olhar preocupado que sempre me deixava desconfortável.
— Comi, sim. Só estou com fome de novo – menti, enfiando o rosto nos cadernos para não ter que encará-lo.
— Não minta para mim – ele rebateu, cruzando os braços.
Antes que eu pudesse responder, ouvi passos no corredor. Era Enrico. Ele estava de terno, provavelmente chegando de alguma reunião, e parecia tão impecável como sempre. Seu olhar cruzou com o meu, e, por um momento, eu quis desaparecer.
— Pai, a Isa não comeu nada hoje – Davi soltou, sem nem hesitar.
Quis gritar com ele, mas não consegui. Meu rosto queimava de vergonha enquanto Enrico me olhava com a testa levemente franzida.
— Não comeu? – ele perguntou, com a voz firme, mas sem soar rude.
— Eu comi, sim – menti de novo, agora para ele.
Ele não respondeu. Em vez disso, deu um suspiro curto, olhou para Davi e depois para mim.
— Davi, vá pegar alguma coisa para vocês comerem na cozinha. A comida está fresca.
Davi saiu sem questionar, deixando-me sozinha com Enrico. Meu coração estava batendo tão forte que eu achei que ele poderia ouvir. Ele se sentou na poltrona perto de mim, ajustando a gravata como se quisesse quebrar o silêncio.
— Você precisa comer, Isadora – ele disse, finalmente.
— Eu como quando tenho fome – respondi rápido, ainda olhando para os cadernos na minha frente.
— Então por que seu estômago estava roncando como se você não tivesse comido o dia inteiro?
Eu não sabia o que responder. Ninguém nunca me questionava assim, e, por um momento, me senti como uma criança que tinha sido pega em uma mentira. Mas ele não parecia bravo, só... sério.
Davi voltou antes que eu pudesse pensar em algo para dizer, trazendo um prato com pão, queijo e um copo de suco. Eu agradeci, ainda com vergonha, mas Enrico não tirou os olhos de mim até eu começar a comer.
— Não é vergonha precisar de ajuda, Isadora – ele disse, antes de sair do cômodo.
Essas palavras ficaram comigo pelo resto do dia, mesmo quando tentei ignorá-las.
-fim do capítulo 03
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