O som dos gritos de seus pais era uma constante em sua vida, como um eco que não a deixava em paz. Júlia sentia que não havia mais espaço para silêncio na casa. As brigas, antes pequenas, se tornaram um furacão que varria qualquer resquício de harmonia. O divórcio de Carlos e Renata não parecia trazer alívio, apenas mais um campo de batalha, e ela estava cansada de ser a espectadora. Cada vez que uma discussão explodia, sentia o peso da culpa, como se pudesse ter feito algo para evitar que aquilo acontecesse, mas não sabia o que. Os gritos de sua mãe, que soavam como um pedido de socorro, e as respostas frias de seu pai, que mal a olhava, davam a sensação de que tudo havia sido perdido.
Júlia se trancava em seu quarto, os fones de ouvido tentando bloquear o som, mas o ruído das palavras ainda lhe atingia, era impossível ignorá-las. As palavras de Renata, dizendo que ela deveria escolher um lado, que tudo estava desmoronando ao seu redor, e Carlos, falando com uma voz entediada, como se não se importasse mais. E Júlia se sentia levada pelas correntes dessas emoções, sem saber como se manter à tona. Ela queria gritar, queria questionar, mas o medo de ser arrastada ainda mais para aquela tempestade a paralisava.
Mas, ao contrário do que se passava com Júlia, Tyler sentia que a falta de gritos em sua casa era ainda mais ensurdecedora. O silêncio entre ele e seu pai, Ricardo, era um peso que ele carregava diariamente. Sophia, com seus treze anos, era a princesa de Ricardo, sua menina pequena que ele tratava como se fosse a coisa mais preciosa do mundo. A forma como Ricardo olhava para ela, como se o mundo se resumisse àquele sorriso inocente, fazia com que Tyler se sentisse como um espectador da própria vida. Ele tentava chamar a atenção de seu pai, falar sobre seus próprios problemas, mas a resposta era sempre a mesma: olhares ausentes, palavras secas, como se ele estivesse distante, como se não fosse mais importante.
Ele sentia que cada gesto de carinho com Sophia era uma lâmina afiada, cortando-o aos poucos. Mas o pior não era a falta de atenção. Era o sentimento de que ele nunca seria capaz de alcançar aquela afeição, de que ele jamais poderia ocupar o lugar de destaque que Sophia tinha no coração de Ricardo. E isso o destruía, lentamente. As conversas com seu pai, quando aconteciam, eram breves e vazias, sempre terminando com Tyler se afastando para o canto da casa, sentindo o peso da solidão que o envolvia.
Foi nesse abismo de silêncio e vazio que Tyler encontrou a ponte. Às vezes, ele simplesmente fugia. Fugir para um lugar que ninguém mais entendia. Atravessava os campos e as estradas, sentindo o vento gelado na pele, como se o caminho até lá fosse o único momento em que ele sentia que estava se libertando. Quando finalmente chegava à ponte central, o mundo parecia mudar. A beleza da estrutura, com suas lâmpadas que iluminavam a noite, transformava o local em algo que ele não sabia definir. A luz refletia nas águas abaixo, criando um contraste fascinante entre a beleza luminosa e as sombras escuras ao redor. A paisagem ao redor da ponte, com árvores altas e o som distante do rio, fazia com que Tyler se sentisse pequeno diante da grandiosidade daquele cenário, mas também protegido. Ali, ele sentia que o mundo exterior desaparecia.
No começo, a ponte era um refúgio perfeito. Era onde ele podia sentar, olhar as estrelas e simplesmente respirar. A sensação de que, em algum lugar, havia algo bonito e intacto o acalmava. Mas, à medida que o tempo passava, ele começou a perceber que algo mudava nas noites em que visitava o local. As lâmpadas da ponte começavam a se apagar, uma a uma, até que o lugar se tornava mais sombrio, mais isolado. Ele podia sentir o peso da escuridão envolvendo-o, mas, de alguma forma, não se importava. Aquela falta de luz, aquela sensação de abandono, parecia mais honesta para ele do que qualquer sorriso forçado de seu pai.
A escuridão da ponte parecia refletir sua própria alma: solitária, sem respostas, mas de alguma forma, familiar. Ele descobriu que quanto mais descia para o fim da ponte, mais ele sentia o calor da solidão tomando conta. No início, isso o assustava, mas logo percebeu que a escuridão era o único lugar onde ele se sentia em casa. Ali, no vazio, ele não precisava de palavras ou gestos. Ele podia ser apenas Tyler, sem a pressão de ser algo que não era.
E, então, a ponte se tornou seu lugar favorito. Um local onde a dor se tornava palpável, mas onde ele podia se perder, afastado do peso da família, da distância de seu pai, da incompreensão de seu próprio coração. O lugar onde ele poderia, finalmente, encontrar um pouco de paz, ainda que fosse em meio ao perigo das sombras.
Tyler estava na ponte desde a manhã. O sol alto no céu não fazia diferença para ele. Ele olhava as águas tranquilas abaixo, mas sua mente estava longe, distante de tudo que o cercava. O tempo parecia ter parado ali. Ele não queria voltar para casa, não agora, não quando tudo parecia um peso sobre seus ombros. A cada passo que dava para longe de sua casa, sentia-se mais leve, mais livre. A ponte se tornou seu único refúgio. O lugar onde as luzes ainda brilhavam suavemente no começo do dia, mas a medida que o sol ia se pondo, a escuridão tomava conta, transformando o lugar em um mistério. Mas, para Tyler, a escuridão era reconfortante, ela envolvia sua alma de uma maneira que nenhum lugar mais poderia fazer.
Ele não queria pensar nas brigas dos pais, na solidão que sentia ao chegar em casa, sem ninguém para perguntar como ele estava. O pai, Ricardo, parecia ter sempre mais tempo para Sophia do que para ele. Mesmo com o calor do dia, ele se sentia mais confortável aqui, com os pés balançando sobre o parapeito da ponte, olhando para o horizonte e apenas existindo.
Enquanto isso, em casa, Sophia estava perdida em uma luta interna. Sabia que algo estava errado, sabia que seu irmão não voltaria tão cedo, mas não conseguia sair em busca dele. Ela sentia uma necessidade imensa de ir atrás de Tyler, de garantir que ele estava bem, mas seu pai, Ricardo, jamais permitiria isso. Para ele, Sophia era a prioridade, a menina pequena que ainda precisava de cuidados. Ele sempre a tratava como se fosse a coisa mais preciosa do mundo, e qualquer gesto de cuidado para com Tyler parecia ser desconsiderado.
Sophia se aproximou do pai, que estava no sofá, assistindo TV. Seus olhos estavam cansados, como se o esforço de lidar com tudo ao seu redor já tivesse consumido suas forças. Ela engoliu a angústia e se aproximou.
— Pai, eu... preciso sair. Tyler está lá fora, e não sei onde ele está. Ele não voltou para casa.
Ricardo a olhou, e seus olhos se estreitaram com um olhar que ela conhecia bem. Era um olhar de quem não queria ser incomodado. A voz dele, calma mas firme, a fez hesitar.
— Sophia, você não vai sair. Você sabe que não é seguro. E Tyler sabe se virar. Ele é mais velho, ele sabe o que está fazendo. Não podemos sempre correr atrás dele.
Sophia sentiu uma pontada no peito. Ela queria argumentar, insistir, mas sabia que não adiantaria. O pai nunca a deixaria sair sem uma razão muito forte, e a razão de Tyler não ser tratado da mesma forma era clara: para Ricardo, Sophia era a prioridade. Ela era o centro do seu mundo, e ele não se importava se isso significava deixar Tyler para trás.
Ela olhou para o lado, sentindo o peso da frustração e da impotência. Cada vez mais, ela sentia que, apesar de tudo, era ela quem se importava mais com o irmão. Não importava que ele fosse mais velho, ou que ele não pedisse ajuda. Sophia sabia que, no fundo, ele ainda precisava de alguém que o visse, que o escutasse. Ela não podia mudar a forma como o pai a tratava, mas, naquele momento, queria poder mudar o mundo ao redor deles.
Júlia, por sua vez, estava em casa mais cedo que o habitual. Ela sentia um alívio momentâneo ao chegar, mas logo foi tomada pela tensão do ambiente. O cheiro da casa, a sensação de prisão que se formava a cada dia, fazia com que ela quisesse sair novamente, se afastar. Mas, naquele momento, não tinha para onde ir.
Renata estava na cozinha, lavando os pratos, quando ouviu os passos de Júlia. Seu olhar foi frio, como sempre. Ela não parecia entender a angústia da filha. Tudo parecia uma afronta para ela. Júlia não gostava de discutir, mas não conseguia se conter.
— Mãe, eu disse que ia sair e voltei. Não precisava me receber assim — falou Júlia, já sentindo a frustração se acumular.
Renata virou-se, com os olhos endurecidos.
— Não era pra você sair sem avisar, Júlia. Fiquei aqui preocupada. Você não pensa em como isso me afeta? Tudo na sua vida parece ser sobre você, não é? Eu estou tentando manter essa casa funcionando, e você se acha no direito de sair assim, sem dar explicações!
Júlia sentiu uma raiva se formar dentro dela, mas sabia que não podia deixar isso tomar conta. Ela não podia se perder naquele mar de discussões intermináveis.
— Eu só precisava de um tempo, mãe — sua voz estava mais baixa, mas ainda assim carregada de uma dor que ela não sabia como expressar. — Não soube como lidar com tudo aqui. Mas não foi por mal.
Renata bufou, voltando-se novamente para os pratos, como se a filha já não fosse mais parte da conversa.
— Você nunca entende, não é, Júlia? Nunca pensa em como as coisas afetam a gente. Eu não posso ficar aqui, preocupada com você, se você não me avisa o que está fazendo.
Júlia respirou fundo, sentindo o peso de suas palavras, mas sabia que aquela conversa não a levaria a lugar nenhum. Virou-se e caminhou para o quarto, onde o silêncio a acolheu novamente, mas dessa vez, era o silêncio pesado da solidão. Ela desejou que, pelo menos por um momento, alguém olhasse para ela de verdade, sem cobranças, sem críticas.
Enquanto isso, Sophia olhava pela janela, impotente, tentando encontrar Tyler nas ruas, sabendo que ele estava por aí, em algum lugar, perdido na escuridão da noite que ele fazia questão de abraçar.
Tyler continuava sentado na beira da ponte, os olhos fixos no horizonte. A noite já havia caído completamente, mas ele não se movia. O frio começava a morder sua pele, mas ele não se importava. O peso do vazio que carregava era maior que qualquer desconforto físico.
As luzes da cidade brilhavam ao longe, mas ele sentia que elas estavam distantes demais, como se pertencessem a outro mundo, um mundo onde ele não tinha lugar. Ele olhou para as águas escuras abaixo de si. O som do rio continuava constante, como um sussurro, mas não trazia conforto. Tudo parecia uma lembrança distante de um tempo em que ele acreditava que as coisas poderiam ser diferentes.
Naquela mesma noite, Sophia ainda estava na janela de seu quarto. Seus olhos corriam pelas ruas escuras, procurando por qualquer sinal de Tyler. Seu coração estava apertado, como se algo dentro dela gritasse que ele estava por perto, mas ela não sabia onde. A impotência era uma sensação que ela odiava, mas com a ausência do irmão, parecia que essa emoção dominava tudo ao seu redor.
Ela respirou fundo e se afastou da janela, cruzando os braços enquanto tentava afastar as lágrimas. O silêncio da casa era sufocante, e o olhar indiferente de seu pai, sentado no sofá, só aumentava sua frustração. Ele não parecia preocupado. Para Ricardo, Tyler era um problema que ele não precisava resolver.
— Não faz diferença para ele... — murmurou Sophia, sentindo a raiva se misturar com a tristeza.
Enquanto isso, Júlia caminhava pelas ruas, sem rumo definido. A tensão em sua casa parecia seguir cada um de seus passos, como uma sombra que ela não conseguia escapar. Ela segurava um caderno contra o peito, como se fosse sua única proteção contra o mundo.
Ao passar por um parque vazio, Júlia decidiu sentar-se em um banco. A lua brilhava fracamente no céu, mas nem mesmo a beleza da noite parecia aliviar o peso que ela carregava. Ela abriu o caderno, mas as palavras não vinham. Tudo o que sentia era uma confusão de emoções que não conseguia traduzir em frases.
Frustrada, ela fechou o caderno com força e o colocou ao lado. O vazio dentro de si parecia tão profundo quanto o céu escuro acima dela. Júlia olhou para as mãos, sentindo a necessidade de liberar a dor de alguma forma, mas sabia que o alívio seria passageiro e a culpa logo voltaria para assombrá-la. Ainda assim, era tudo o que ela conhecia para lidar com o que sentia.
Na ponte, Tyler finalmente se levantou. Seus olhos estavam cansados, mas ele sabia que não poderia ficar ali para sempre. A escuridão, que antes parecia um refúgio, agora começava a parecer sufocante. Ele colocou as mãos nos bolsos e começou a andar, sem saber se estava indo para casa ou apenas fugindo novamente.
Sophia ainda estava acordada, sentada na cama, olhando para o teto. O silêncio da casa parecia mais pesado agora. Ela queria acreditar que Tyler voltaria, que ele estava bem, mas cada minuto que passava sem notícias fazia com que seu coração se encolhesse ainda mais.
Júlia, por outro lado, começou a caminhar de volta para casa, sentindo-se mais perdida do que quando havia saído. O vazio dentro dela parecia crescer a cada passo, e, mesmo cercada pelas luzes da cidade, ela se sentia completamente invisível.
Naquela noite, nenhum deles encontrou as respostas que procurava. Mas, em meio à solidão que os conectava, havia uma pequena faísca de esperança, mesmo que fosse difícil enxergá-la.
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