DEDICATÓRIA
Para você, leitor que ama o tipo de amor que arde mais do que salva.
Esta história é sua — porque você entende o que é se perder na névoa de um toque perigoso, desejar demais, mesmo sabendo que isso pode te consumir.
Você, que nunca se assusta com personagens quebrados, com sentimentos possessivos, com promessas feitas entre beijos e ameaças.
Você que lê sobre um coração que diria “eu deixaria o mundo queimar por você” — e sorri, porque entende.
Aqui, o amor não é leve. Ele sufoca, queima, marca.
Mas é exatamente por isso que ele é inesquecível.
Bem-vindo ao incêndio.
Se for amar aqui, que seja até as cinzas.
A madrugada vestia-se de véus espessos de névoa, como se o próprio céu tivesse decidido esconder o que a terra prestes estava a testemunhar. As árvores rangiam sob ventos errantes, e cada folha parecia carregar um segredo milenar sussurrando nas dobras do tempo. Era uma noite em que o mundo parecia conter a respiração, temeroso do que se desenrolava sob seu próprio véu.
Na estrada de cascalhos úmidos que serpenteava pelas colinas de Waldstein, uma silhueta encapuzada cavalgava com urgência. O cavalo, exausto e arfante, cambaleava com as últimas forças, enquanto a figura mantinha os olhos fixos adiante, guiada mais pela intuição do que pela visibilidade. Os portões de ferro forjado da propriedade Eckart surgiram diante dela como sentinelas do destino.
A mulher desmontou. Suas botas mal faziam som ao tocar o chão encharcado. Nos braços, envolto em mantos de lã escura e rendas antigas, repousava um bebê. A criança dormia com a tranquilidade inquebrantável dos que ainda não conheceram a dor do mundo. Aproximando-se da escadaria da entrada principal, ajoelhou-se sem hesitar, como alguém diante de um altar. Com delicadeza quase ritualística, depositou o cesto no patamar de pedra, e junto dele, uma carta selada com cera pálida e fria, marcada com um símbolo ancestral — um brasão desbotado pelo tempo, mas ainda reconhecível para os que conheciam seu peso.
O menino não chorou. Apenas suspirou, como se já entendesse que aquele instante não lhe pertencia.
A mulher inclinou-se sobre ele. Seus cabelos escuros escapavam do capuz, encharcados pela umidade. Beijou-lhe a testa com um tremor contido, sussurrou palavras que apenas a noite escutaria, e então ergueu-se com esforço. Em poucos passos, desapareceu entre os ciprestes altos que ladeavam o caminho, tragada pela escuridão.
A mansão permaneceu em silêncio. Nenhuma vela se acendeu, nenhum guarda apareceu. Era como se os próprios muros estivessem acostumados a visitas silenciosas e pecados sem testemunhas.
(....)
O Duque Alrin Eckart despertou antes do galo cantar. Não foi o vento que o incomodou, nem o estalo de um galho no pátio. Era outra coisa — uma inquietação primitiva, como se o sangue em suas veias lhe chamasse para algo além da razão.
Sem convocar criados, vestiu-se com a pressa de quem não confia nos próprios sonhos e desceu os degraus frios de pedra. Ao abrir a porta, deparou-se com o cesto. O vapor de sua respiração encontrou o ar gélido, embaçando a visão por um instante. Ajoelhou-se. O selo da carta provocou-lhe um arrepio que subiu pela espinha. Ao quebrá-lo, reconheceu de imediato a caligrafia delicada, firme e melancólica.
Era de Angel.
> "Este é o fruto do que fomos. E do que nunca poderemos ser. Proteja-o como seu, como prometeu.
Seu nome é Isaac."
Alrin permaneceu imóvel por minutos que pareciam eras. Um peso invisível se assentava sobre seus ombros, não como algo novo, mas como algo que sempre esteve ali, apenas esperando ser reivindicado.
Envolveu o cesto nos braços e entrou. Seus passos eram lentos, cuidadosos, como se temesse que a casa percebesse a mudança irrevogável que ali se iniciava.
(....)
O quarto principal dormia em silêncio. A duquesa Emily repousava entre lençóis de linho, o rosto suavemente iluminado pela lareira prestes a se apagar. Ao lado, em dois pequenos leitos, dormiam Ryan e Maria — o primogênito de seis anos e a menina sonhadora de quatro. Ambos respiravam em paz, as faces relaxadas num retrato de inocência rara.
Até a porta se abrir.
Emily despertou de um sono leve, os olhos arregalando-se ao vislumbrarem o vulto do marido com algo nos braços. Sentou-se de súbito, puxando o lençol para o peito como uma armadura improvisada.
— Alrin...? — murmurou, confusa. — O que está carregando?
Ele não respondeu de imediato. Apenas caminhou até a lareira, onde a luz revelava, enfim, a verdade: um bebê, adormecido em um cesto coberto por tecidos finos e um brasão apagado pelo tempo.
— Uma criança. — disse o duque, com a voz de quem não pede permissão nem oferece desculpas.
Emily empalideceu. Seu corpo ficou tenso como vidro prestes a estilhaçar. O silêncio entre eles não era vazio — era uma avalanche prestes a desabar.
— De quem?
— De Angel. — A resposta caiu como uma sentença. — Uma mulher a quem fiz uma promessa. Uma que precisei cumprir.
Emily fitou o marido com olhos duros. Sua respiração acelerou, e quando tentou falar, sua voz vacilou — entre o grito e o sussurro.
— E pretende criá-lo aqui? Nesta casa? Com nossos filhos?
— Pretendo honrar minha palavra — respondeu ele, firme. — O menino é sangue meu. Será um Eckart.
A criança soltou um leve murmúrio, como se confirmasse a própria aceitação.
Emily virou o rosto. Havia algo no olhar dela que não era apenas ciúme ou indignação. Era um orgulho ferido num lugar onde nem mesmo o amor conjugal alcançava. Ela não chorou. Não gritou. Mas a muralha que começou a se erguer entre ela e aquele menino foi mais sólida que qualquer pedra daquela casa.
Nesse instante, Maria acordou. Os olhos grandes e castanhos claros buscaram sentido na cena incomum. Deslizou da cama sem som, os pés descalços, encontrando o frio do chão. Aproximou-se do pai e olhou para o bebê com uma curiosidade quieta.
— Ele vai dormir aqui com a gente, papai?
Alrin hesitou. A pergunta da menina o surpreendera. Sorriu, por fim, de modo contido.
— Não hoje, minha flor. Mas um dia, talvez.
Maria assentiu. Depois, estendeu o dedinho e tocou de leve a mão do bebê, como se quisesse reconhecê-lo com o tato da alma.
Ryan, por outro lado, fingiu dormir. Mas seus olhos semiabertos revelavam um turbilhão silencioso. Observava o intruso com uma expressão contida — não de medo, mas de posse ameaçada. Era como se algo dentro dele já pressentisse que a chegada daquele irmão não seria apenas uma divisão de afeto, mas o início de uma disputa longa e invisível.
(....)
Assim entrou Isaac na casa dos Eckart — não como herdeiro, nem como hóspede, mas como uma presença silenciosa que mexeria com os alicerces de toda aquela família.
Receberia todos os privilégios que um sobrenome poderia garantir: educação nobre, cuidados minuciosos, herança moral e títulos. Mas jamais conquistaria, sem luta, o mais instável dos tesouros: o afeto incondicional.
Ryan jamais esqueceria aquela noite. O som do vento, o murmúrio da mãe contida, o cesto à meia-luz. Gravaria tudo no coração como o início do fim da exclusividade.
Maria, em sua candura, seria a primeira a amar o estranho, mas também a primeira a perceber que, às vezes, o amor caminha lado a lado com a dor.
E Isaac... Isaac jamais se lembraria daquela noite. Mas carregaria o peso dela para sempre — um fardo silencioso moldado por promessas sussurradas ao vento, por silêncios que falavam mais que palavras, e por um nome que seria tanto um presente quanto uma maldição.
(....)
Anos mais tarde...
O grande salão da família Agrece estava tomado por luzes suaves e vozes abafadas, música elegante preenchendo os espaços entre os risos e os brindes. Era uma noite de celebração — a festa de maioridade de Vanessa Agrece — e cada detalhe transbordava opulência. Candelabros de cristal derramavam reflexos dourados sobre as paredes espelhadas, onde vultos dançantes se multiplicavam.
Isaac Eckart, porém, não parecia interessado em nenhuma das sutilezas do evento. Encostado contra uma coluna de mármore, uma taça intocada de vinho entre os dedos, seus olhos vagavam distraidamente pelo salão… até que pararam.
Ela estava do outro lado da sala, girando em torno de si mesma ao som da valsa, o vestido escarlate dançando ao redor de seus tornozelos. Vanessa. O sorriso que ela lançava aos convidados era leve, encantador, quase despreocupado, mas havia algo por trás daquilo — uma chama silenciosa, um brilho que capturou Isaac no instante em que o viu.
Ele piscou, uma vez. Depois desviou os olhos, como se tivesse cometido um erro. Mas não resistiu — olhou de novo. Discretamente. Observou a curva suave do pescoço dela, a forma como ela inclinava a cabeça ao escutar alguém, o modo como seus lábios se curvavam ao sorrir.
— Então, você está se escondendo das danças também? — disse uma voz leve, próxima demais. Ana Agrece apareceu ao seu lado, belíssima em verde esmeralda, os cabelos em cachos perfeitamente moldados. Ela se apoiou na mesma coluna, tentando puxar conversa com um sorriso gentil.
Isaac desviou o olhar de Vanessa rapidamente. Forçou um leve sorriso a Ana, mas seus olhos — aqueles olhos azul-avermelhados, intensos e sempre atentos — logo voltaram a buscar a figura do outro lado da sala, como se guiados por instinto.
— Só observando, — murmurou ele, evasivo.
Ana seguiu seu olhar, tentando descobrir o que o atraía tanto. Seu rosto se fechou sutilmente quando entendeu. Mas antes que pudesse dizer algo, Ryan Eckart surgiu ao lado dela, com seu charme ensaiado e sorriso pronto.
— Ana, está maravilhosa esta noite, como sempre — disse ele, pegando a mão dela com um exagero dramático. — Espero que tenha guardado uma dança para mim.
Ana sorriu, distraída, mas não respondeu. Seus olhos ainda estavam em Isaac.
Isaac olhou mais pra ela. Ele só via Vanessa.
Mesmo cercada de pessoas, ela parecia distante, como se vivesse em outro tempo, em outro mundo. Um mundo que ele, de repente, desejou profundamente fazer parte.
E quando, por acaso — ou destino — ela lançou um olhar em sua direção e seus olhos se encontraram por um breve instante, ele sentiu.
Uma pontada.
Um puxão invisível.
Ela sorriu, gentil, talvez sem notar que alguém a observava.
Mas ele sentiu o coração bater mais forte, como se tivesse ouvido um segredo.
E naquele instante, Isaac soube.
Nada naquele salão importava mais do que ela.
Um ano depois...
A chuva caía fina sobre os jardins da mansão Agrece, como se o céu também compartilhasse do desespero silencioso que pairava na escuridão. A madrugada engolia os corredores com sombras, e apenas os passos apressados de Ana quebravam o silêncio sufocante.
Ela tremia — não de frio, mas de medo. De culpa. De amor.
O vestido claro arrastava-se no chão de pedra. As botas estavam sujas de barro. O capuz ocultava seus cabelos dourados, mas não escondia as lágrimas que insistiam em escapar.
“Me perdoe, Vanessa”, ela pensava, o coração descompassado como tambores de guerra. “Eu não posso me casar com ele. Não posso viver essa mentira, sou uma covarde.”
Ela tropeçou ao atravessar o pátio lateral, as mãos arranhadas pelas roseiras que conhecia tão bem desde menina. O portão dos fundos estava destrancado — como combinado. Os olhos marejados buscaram entre a névoa a carruagem discreta, parada à distância. Dois cavalos. Um cocheiro pago com joias da família.
Ela não olhou para trás.
Porque se olhasse, voltaria.
Se visse o quarto de Vanessa iluminado, talvez se arrependesse. Se visse os guardas de seu pai fazendo a ronda, talvez congelasse. Mas ela apenas seguiu, um passo de cada vez, até desaparecer na noite, como se nunca tivesse pertencido àquele mundo.
Ana não fugia apenas de um casamento. Ela fugia de um destino que lhe negava o direito de amar.
Porque o amor dela… não era por Ryan.
Era por Isaac.
Isaac, com seus olhos que pareciam decifrá-la sem esforço. Isaac, que nunca dizia o que sentia, mas cujos silêncios gritavam quando ela se aproximava. Isaac, que agora estava longe, tão longe, e talvez jamais soubesse que ela partira por ele.
Na manhã seguinte, o caos.
—O que você quer dizer com ela fugiu?—A voz do imperador Eze cortou o ar como uma lâmina, ressoando pelas colunas do salão do trono. O tom era tão gélido que todos ao redor recuaram, instintivamente. Todos... menos o duque Eckart, ao lado do trono, e os cavaleiros postados em uma linha imponente atrás do estrado.
À frente de Vanessa, seus pais se encolheram, tremendo. Ela não entendia por que ainda tentavam apelar para piedade. Mostrar fraqueza diante de Eze não era apenas inútil — era perigoso.
—Eu...—O pai dela engoliu em seco, a voz falhando.— Peço perdão, Majestade. Mas... Ana é só uma criança! Tem apenas 17 anos. Não sei por que el—
—Cale-se.—O imperador não gritou. Ele nem precisou. Sua voz, baixa e controlada, fez o ar da sala parecer mais denso. —Poupe-me das suas súplicas patéticas. Suas filhas carregam o que é necessário para se tornarem duquesas. Por lei, você é obrigado a oferecer uma delas ao herdeiro do ducado.
Ele se inclinou levemente para a frente.
—Recusar uma ordem imperial não é só desobediência... é traição.
Vanessa sentiu o sangue gelar. O chão pareceu mais distante por um instante.
E então ela deu um passo à frente.
—Leve-me.
A voz dela cortou o silêncio que se formava, firme apesar do tremor escondido. Antes que os pais pudessem reagir, Vanessa ajoelhou-se diante do trono. Suas mãos cerradas tocaram o chão, os nós dos dedos já se avermelhando, e ela abaixou a cabeça.
—O meu sangue é o mesmo.—Sua voz saiu mais suave, mas determinada. —Leve-me no lugar dela, Majestade.
O silêncio que seguiu pareceu durar uma eternidade.
Vanessa sentia os olhares da corte queimando sua pele. A vergonha apertava seu estômago, mas ela não recuou. Conseguia imaginar os sorrisos disfarçados, os cochichos maldosos, o escárnio escondido sob os véus dourados das damas e os olhos semicerrados dos nobres. Seu noivo arranjado provavelmente suspirava em algum canto, desapontado.
Ela encolheu os ombros, esperando a rejeição.
Mas falou de novo, mais baixo, mais íntimo:
—Eu sei que não sou Ana. Sei disso melhor do que ninguém. Mas já tenho idade para casar. E... eu não vou fugir.
Levantou o rosto e encontrou os olhos do imperador. Queria que ele entendesse o que ela não podia dizer em voz alta: "Se isso salvar minha família, eu aceito morrer."
Porque Vanessa não era Ana.
Ana era fofa. Brilhante. Gentil. Linda, com a pele clara como porcelana, cabelos loiros que reluziam ao sol, e um sorriso que encantava a todos. As pessoas viviam dizendo o quanto ela era perfeita, quase como uma boneca feita para ser admirada.
Vanessa, por outro lado, herdará os traços da tia esquecida — a ovelha negra da família. Era mediana em tudo: altura, aparência, talentos. Pele negra como o céu antes da tempestade, cabelos cacheados castanhos que ela mal sabia domar, e olhos verdes que falavam pouco. Era calma, discreta, boa apenas com números. E, em breve, se casaria com um comerciante rico, num casamento sem amor, mas cheio de estabilidade.
Ser escolhida para entrar na casa do duque? Era... impensável.
Ela não disse nada quando as risadas ecoaram. Nem quando as piadas começaram. Nem quando o silêncio dos cavaleiros do imperador a sufocou.
Finalmente, Eze ergueu a mão, exigindo silêncio. Seus olhos repousaram sobre Vanessa por longos segundos, como se estivesse pesando uma moeda antiga.
Ele não via uma jovem ajoelhada.
Via uma solução conveniente.
Se Vanessa aceitasse o casamento — e morresse tentando, o acordo ainda seria cumprido. A honra restaurada. Os pais poupados. O império seguiria. E ninguém, absolutamente ninguém, perderia.
Exceto ela.
Mas... esse era seu papel, certo? Carregar os fardos que a irmã mimada não podia.
O futuro duque se aproximou a pedido do imperador. Curvou-se para conversar com o pai e com Eze. Vanessa lutou contra o impulso de encará-lo. Queria ver com quem iria se casar, mas não podia parecer ansiosa. Isso a tornaria vulnerável. E ela já estava exposta demais.
O peito dela doía. O ar parecia preso dentro dos pulmões. Quando o imperador finalmente os dispensou e voltou o olhar para ela, Vanessa sabia que já estava condenada.
—Assim seja.— A sentença caiu como chumbo.—Estão dispensados por esta noite. O casamento acontecerá ao amanhecer, conforme o planejado.
Oito horas.
Era isso que restava.
O estômago de Vanessa se revirou. Ela não sabia como se preparar para o que a esperava. Mal conseguia pensar. Três meses de viagem até o castelo imperial... um mês vivendo ali como uma sombra... e agora, isso.
Ela passou os dias explorando cada canto do castelo. Memorizando corredores, janelas, jardins. Coisas belas que poderia guardar para sempre, porque... bem, ela sempre soube que sua vida não teria muitas alegrias. Pensava que teria tempo. Pensava que teria um casamento simples, com um marido distante e uma casa grande demais.
Agora, o que deveria ser uma vida longa havia sido reduzida a oito horas.
O peito dela apertou.
Algo deveria ser dito. Algo grandioso, marcante.
Mas ninguém disse nada.
Então, Vanessa apenas baixou a cabeça mais uma vez. Murmurou um agradecimento quase inaudível. E seguiu seus pais, em silêncio, para fora da sala do trono e de volta à suíte que, até aquela noite, ainda chamava de lar.
O silêncio era o primeiro som que Isaac reconheceu.
Não o silêncio habitual das longas noites em Myrravahn, quando as tochas crepitavam pelos corredores e os sussurros do vento se misturavam ao farfalhar das cortinas. Não. Era um silêncio denso, como o da superfície de um lago antes de romper-se em tempestade — carregado, sufocante, prenhe de algo que ainda não havia se revelado.
Isaac estava parado no limite da sala do trono, como um convidado indesejado. O brasão imperial pairava sobre todos os presentes com o mesmo peso da expectativa que pairava sobre os ombros dele. O irmão, Ryan, estava mais à frente, ombros retos como se a dureza da postura pudesse compensar a desordem do momento.
Mas foi o nome que ouviu que o fez arquear levemente as sobrancelhas.
Vanessa.
Não Ana.
A cabeça de Isaac se inclinou quase imperceptivelmente. O nome se arrastou em sua mente como uma lembrança antiga, como se tivesse sido esculpido em pedra e estivesse sendo lentamente redescoberto sob a poeira do tempo. Vanessa Agrece. A irmã que não era a noiva. A sombra discreta da família. Aquela que ele viu — anos atrás — do outro lado do salão, durante o baile de maioridade. Aquela cujo sorriso suave nunca o deixou em paz, mesmo depois de tanto tempo.
Ele engoliu em seco. A memória retornava com uma força quase cruel.
Vanessa, encolhida ao lado do piano, rindo baixinho de algo que ninguém mais parecia notar. Os olhos dela encontrando os dele por acidente. Ou talvez... não tão por acaso assim.
Foi só um segundo.
Mas foi o suficiente para que o sangue — quente e vivo, antes de sua verdadeira natureza sequer se manifestar — respondesse com algo que ele não compreendia à época. Agora, anos depois, ele entendia perfeitamente. E era isso que tornava a situação diante dele tão absurda, tão desconcertante.
Ela estava ajoelhada agora.
Não Ana.
Vanessa.
E ele sabia — pelo modo como ela abaixava os olhos, pelo jeito que o maxilar dela tremia para não desmoronar — que ela não estava ali por escolha. Vanessa não era ambiciosa. Não era vaidosa. Não era como as damas que se lançavam nos braços de nobres por poder. Ela estava ali por sacrifício. E isso o incomodou mais do que ele gostaria de admitir.
Ryan não parecia notar. Ou, se notava, não se importava.
Isaac observou o irmão com olhos semicerrados, o sangue dentro do peito se agitando. Ryan parecia satisfeito. Curvado diante do trono, trocando palavras com o imperador, como se nada tivesse mudado. Como se Ana e Vanessa fossem peças do mesmo tabuleiro. Substituíveis. Permutáveis.
Um calor estranho começou a subir pelo corpo de Isaac, se acumulando no fundo do estômago como brasas abafadas.
O que você vai fazer com ela, Ryan?
A pergunta ecoou dentro dele, mas não encontrou voz.
Ele não podia falar. Ainda não.
A ordem já havia sido dada.
Vanessa seria a noiva.
E havia algo terrivelmente errado com isso.
A noite havia caído sobre o castelo como um manto de chumbo. Pesada. Densa. Silenciosa demais.
Isaac permaneceu de pé junto à janela do quarto, observando as sombras deslizando pelos telhados das torres. O reflexo pálido da lua tingia as pedras com um azul cortante, e o frio parecia emanar de dentro dele, e não do ar noturno. Ele não conseguia parar de pensar na expressão de Vanessa — firme, mas quase transparente de tão tensa — ao ajoelhar-se diante do trono. A imagem queimava em sua mente com insistência, como se tivesse sido gravada a ferro.
Ela não olhou para mim.
O pensamento doía.
Mas por que olharia? Ele era só o irmão mais novo do noivo dela.
—Você não parece muito contente com o arranjo. —A voz de Ryan rompeu o silêncio como uma lâmina embainhada lentamente. Ele entrou no quarto de Isaac sem bater, como fazia desde crianças.
Isaac virou-se devagar, à sombra da janela cortando metade do seu rosto. Ryan estava com a postura relaxada, mas os olhos... os olhos estavam alertas. Quase irritados.
—Você também não parecia — respondeu Isaac, seco. —Ou estou enganado?
Ryan o encarou por um momento. Depois deu um meio sorriso, irônico.
—Eu só achei... curioso. Primeiro nos dão uma boneca de porcelana, toda sorrisos e encantos, e agora, uma estátua de ferro. —Ele bufou. —O que será que passou pela cabeça da filha mais velha?
Isaac fechou a mandíbula com força. Não respondeu. O nome de Vanessa queimava em sua língua como se fosse sagrado demais para ser dito ali.
—Ou será que você sabe o que se passou? —Ryan continuou, com um tom que arranhava a paciência. —Afinal... você e Ana sempre foram tão próximos, não? E você e Vanessa... —ele riu, mas o som foi vazio. —Bom, vocês mal se falam. Quase parece que...
Ele não terminou a frase. Mas Isaac entendeu.
Quase parece que você desejava que ela viesse.
A acusação pairava no ar, não dita.
Isaac deu um passo à frente, o maxilar tenso.
—Eu não controlo o que ela escolhe — disse em voz baixa, mas firme. —E você deveria pensar menos em quem te foi dado... e mais no porquê.
Ryan riu outra vez. Dessa vez, mais alto, mas com um tom amargo.
—Você anda falando como o velho Matthis. —Ele virou-se, abrindo a porta novamente. —Deve ser o tempo que passaram juntos com aquelas espadas malditas. Só tome cuidado para não acabar tão quebrado quanto ele.
E então foi embora, deixando um silêncio espesso para trás.
Isaac ficou ali, imóvel. Os dedos fechados em punhos. O peito arfando com raiva contida, com algo mais. Algo que ele não nomeava. Algo... que pulsava.
Quando se jogou na cama, o corpo não descansou. Os olhos permaneceram abertos, presos ao teto. Cada vez que piscava, via o rosto de Vanessa naquela sala. Seus olhos sérios. A forma como ela disse “leve-me” com a coragem de um mártir e a resignação de alguém que já havia desistido de sonhar.
Ela não fugiu.
Ela se entregou.
E isso o atormentava.
O tempo passou devagar. A insônia arranhava as bordas da sua mente. Mas havia outra coisa... um calor estranho correndo por suas veias. Um desconforto sob a pele, como se algo lá dentro estivesse acordando. Seu coração batia alto demais. Os ouvidos captavam sons do castelo que antes ele jamais perceberia — passos leves no corredor, o bater de asas de um corvo do lado de fora, o tilintar sutil de correntes nas janelas mais altas.
E... algo mais.
O perfume dela.
Como era possível? Ela estava a dezenas de corredores dali. E, ainda assim, ele sentia.
Levou a mão ao rosto, os dedos trêmulos. Sua respiração estava irregular. A garganta... seca. Ardente. Um desejo estranho e profundo o envolvia. Não desejo carnal. Era mais primitivo, mais instintivo. Era sede.
Sede de quê?
Ele não sabia. Mas temia a resposta.
Levantou-se da cama, incapaz de permanecer preso naquele quarto. Vestiu-se com rapidez, jogou a capa sobre os ombros e saiu, sem rumo definido. Os corredores do castelo estavam quietos. Guardas em vigília o cumprimentaram com um aceno respeitoso, mas não tentaram abordá-lo. Havia algo nos olhos de Isaac — naquela noite — que mandava todos ficarem longe.
Foi parar no jardim.
A noite estava fria. As folhas murmuravam sob o vento, e o cheiro da terra úmida preenchia o ar. Ele andou até a fonte de mármore esculpida no centro do jardim, sentou-se à beira dela e afundou o rosto nas mãos.
Por um momento, sentiu como se estivesse afundando dentro de si mesmo.
Algo está errado comigo.
Não era apenas a paixão que o corroía. Era outra coisa. Mais densa. Mais perigosa.
Fechou os olhos e tentou controlar a respiração, mas quanto mais inspirava, mais sentia o cheiro dela — o cheiro do sangue dela.
Quente. Doce. Vivo.
—Pare com isso... —sussurrou, apertando os próprios punhos contra os olhos. Mas era inútil.
Imagens começaram a formar-se em sua mente — visões vívidas demais. Os dedos dele em meio aos cachos dela. Os lábios encostando-se ao pescoço. O gosto metálico em sua língua.
Não.
Ele se levantou abruptamente, respirando com dificuldade, como se tivesse corrido léguas. Estava suando, o corpo em alerta, os olhos arregalados e famintos.
—Isso não sou eu. —disse para a escuridão. Mas havia uma voz, enterrada em algum canto esquecido da sua alma, que sussurrava:
Mas será.
Ficou ali, em pé no jardim, cercado pelo vento noturno, pela memória do toque dela... e por uma sede que ele ainda não compreendia, mas que já começava a dominá-lo.
Para mais, baixe o APP de MangaToon!