Raven estava acostumada ao silêncio. Desde que o mundo desmoronara, o som das cidades arruinadas e a ausência de vida davam forma ao novo cotidiano. Ruínas cobriam a paisagem desolada, suas formas fragmentadas como cicatrizes permanentes do que um dia fora o lar. A civilização fora reduzida a fragmentos dispersos, e a palavra "esperança" tornara-se algo raro, quase proibido.
Ela se movia com passos calculados pelo que outrora fora uma metrópole vibrante. Agora, apenas a cinza e a poeira pairavam sobre as construções que um dia abrigaram vidas. Era como se o tempo, os sonhos e os rostos se petrificassem naquela terra destruída. O som de seus passos se mesclava com o vento gelado que soprava do leste, um sussurro constante do mundo que havia sido engolido pelas chamas e pelo abandono.
Raven ajustou a capuz desgastado de seu casaco. O vermelho da Resistência agora era uma cor camuflada pela poeira. Não havia espaço para ostentações, não na era em que o Império Tecnocrata reinava com punho de ferro. Ela era sua líder, mesmo que isso não significasse muito para quem a via. Mas para aqueles que ainda mantinham alguma centelha de esperança, ela representava a única chance de sobrevivência.
— Raven... — sussurrou alguém ao seu lado.
Ela parou, o nome surgindo no vazio com um tom hesitante. Virou-se devagar, encontrando Lina.
Lina era o oposto de tudo que Raven representava. Jovem, ágil e com os olhos sempre vigilantes. Uma espiã infiltrada nas entranhas do Império. Raven sabia que, sem ela, a Resistência estaria perdida. No entanto, o peso da lealdade que mantinha com o grupo era algo que Lina ainda estava descobrindo.
— O que encontrou? — Raven perguntou, sua voz firme, mas baixa.
Lina hesitou antes de responder. Seu olhar se desviou para o horizonte, onde as ruínas se perdiam no horizonte acinzentado.
— Eles estão em movimento... — disse, a voz carregada de tensão. — Os tecnocratas. Parece que estão buscando algo.
Raven franziu o cenho, as informações de Lina sempre precisas, mas às vezes difíceis de interpretar. O Império estava sempre em busca de algo. Recursos, pessoas, ou até mesmo respostas para seu próprio domínio.
— Encontre o que eles querem — ordenou Raven. — Precisamos saber o que estão planejando antes que seja tarde demais.
Lina assentiu, mas seu rosto estava marcado por dúvidas. Era como se as linhas entre lealdade e traição estivessem cada vez mais tênues.
Raven ignorou as dúvidas de Lina, voltando-se para o caminho à frente. Ela sabia que a Resistência dependia dos segredos que Lina poderia desenterrar, mas também sabia que, se o Império soubesse de sua infiltração, seria o fim para ela. E, pior, seria o fim para a Resistência.
Enquanto caminhava, Raven sentia os olhos de Lina fixos em suas costas. A jovem espiã parecia estar sempre um passo atrás, mas nunca distante o suficiente para não ser um risco. Raven já havia visto aqueles olhos vazios em tantos outros antes de Lina. Olhos que, mais cedo ou mais tarde, terminavam por se perder em lealdades conflitantes.
O silêncio voltou a reinar enquanto elas seguiam pelo território destruído. A terra se estendia como uma mancha interminável, um testemunho da queda do mundo. Raven sentia os ossos se contraírem sob o peso dessa realidade. Mas ela não tinha escolha senão continuar. Não para si mesma, mas para aqueles que ainda a seguiam.
Em algum ponto mais adiante, Lina parou. Raven olhou para trás, encontrando o olhar distante da espiã.
— O que foi? — Raven perguntou.
Lina respirou fundo antes de responder:
— Há algo no horizonte... — ela apontou para uma colina distante. — Um movimento. Não parece natural.
Raven acompanhou o gesto, vendo além da linha da visão. De fato, havia algo — uma silhueta distorcida, quase imperceptível em meio às ruínas. Os rastros de fumaça e poeira que se erguiam a partir dali não eram obra do acaso.
— Vamos — ordenou Raven, mantendo-se alerta. — Algo está acontecendo. E nós precisamos saber o que é antes que o Império o faça.
Lina seguiu atrás dela, sem questionar. Juntas, elas se moviam em direção ao desconhecido, cada passo trazendo mais cinzas e a promessa de um futuro incerto.
O céu cinzento parecia mais baixo naquela noite, como se o peso do mundo desabasse lentamente sobre os ombros de Raven. Ela apertou os dedos contra o cabo de sua adaga, observando de longe o imenso complexo de metal e concreto do Império Tecnocrata. Lanternas varriam a escuridão, acompanhadas pelo som incessante de máquinas e vozes de guardas patrulhando.
— Duas horas até a troca de turno, murmurou Lina ao seu lado, quase como um sussurro carregado pelo vento. — Se perdermos a janela, não teremos outra chance.
Raven assentiu, o olhar fixo no prédio. A cientista estava lá dentro. Dr. Elise Carter. A mulher com a cura.
— Tem certeza de que ela está viva? — A voz de Raven saiu seca, mas carregada de esperança disfarçada.
Lina, vestida como uma das soldadas do Império, ajustou o capacete roubado antes de responder:
— Estava ontem. Eles a mudaram para o bloco central depois que descobriram o que ela sabe.
— Então é agora ou nunca.
O grupo da Resistência avançava pelas sombras como espectros. Eram apenas cinco soldados liderados por Raven e auxiliados por Lina. Enquanto Raven e os outros se esgueiravam entre contêineres abandonados e pilhas de sucata tecnológica, Lina seguia na frente, caminhando como se pertencesse àquele lugar.
No bloco central, Elise estava sentada no canto de uma cela metálica, os braços envolvendo as pernas. Seu jaleco, já sujo e rasgado, mal lembrava o símbolo da ciência e esperança que ela fora outrora. A única luz vinha de uma lâmpada piscando sobre sua cabeça. Ela ouviu passos. Por instinto, se encolheu, esperando mais perguntas, mais gritos.
— Dr. Elise Carter? — Uma voz baixa ecoou pela cela. Elise levantou o rosto de súbito. Uma jovem com o uniforme do Império a encarava. Lina tirou o capacete e revelou o rosto. — Vim tirá-la daqui.
— Quem é você? — A voz de Elise tremeu, arranhada pelo medo e pela falta de uso.
— Sua única chance de sair viva. Agora ande.
Elise se levantou com dificuldade, o coração disparado. A porta da cela rangeu baixo quando Lina a destrancou. O olhar de Elise vasculhou o corredor, esperando uma emboscada. Mas Lina fez um gesto impaciente.
— Temos dois minutos. Se não confiar em mim, morre aqui. Escolha.
Elise não respondeu. Apenas seguiu Lina pelo corredor.
Lá fora, Raven observava o complexo com olhos treinados. Lina ainda não voltara, e o tempo estava acabando. Ela sentiu um tremor na mão, algo que odiava admitir que sentia: nervosismo.
— Raven, sussurrou um dos soldados atrás dela. Movimento no portão leste.
Ela girou o rosto, os olhos captando um grupo de guardas caminhando em direção à saída principal. Sua mandíbula se retesou. Não temos tempo.
— Preparem-se para o plano B.
— Plano B? — Um soldado murmurou, mas Raven já havia se movido.
Raven sacou uma pequena granada de fumaça improvisada e avançou como um raio em direção ao portão. Ela jogou o dispositivo no meio dos guardas, que gritaram enquanto a fumaça densa e cinza engolia o ar. Antes que pudessem reagir, Raven já estava entre eles, um vulto afiado. Sua adaga encontrou gargantas e costelas, cada movimento certeiro, brutal e silencioso.
— Lina! — Raven sussurrou pelo rádio. Estou entrando.
A resposta veio em um chiado breve:
— Portão secundário, venha rápido!
Raven fez um sinal para seus homens seguirem e correu pelo complexo. Os alarmes começaram a soar. Luzes vermelhas varreram os corredores. O plano estava indo por água abaixo, mas Raven não se importava. Elise Carter não morreria naquele lugar.
Lina e Elise já haviam chegado ao portão secundário quando os tiros começaram a ressoar no pátio principal. Elise se encolheu ao ouvir o barulho, os olhos arregalados de pavor.
— Eles vão nos pegar. Estamos mortos!
— Não se preocupe. Ela está vindo.
— Quem está vindo?
Foi quando uma figura emergiu da fumaça e das sombras. Raven, coberta de poeira e manchas de sangue, corria em direção às duas, os cabelos presos desordenadamente. Seus olhos cravaram nos de Elise por um breve instante.
— Você deve ser a doutora. Ande.
Elise não conseguiu responder. Aquela mulher diante dela parecia ter saído de um mito: tão feroz quanto o mundo em que viviam. Lina segurou o braço de Elise e puxou-a em frente.
Os três correram para fora do complexo, onde o restante da equipe já esperava com um veículo improvisado, uma caminhonete velha adaptada para resistir ao fogo inimigo.
— Subam! — Raven gritou, pulando no banco do motorista. Lina e Elise se jogaram na carroceria enquanto balas ricocheteavam ao redor. O motor rugiu, levando-as para longe.
A poeira do deserto os envolveu assim que deixaram o complexo. Os tiros foram ficando para trás, até que o silêncio tomou conta. Elise estava sentada na carroceria, o corpo tremendo incontrolavelmente. Lina ajeitou-se ao lado dela, respirando fundo.
Raven manteve os olhos fixos na estrada, as mãos firmes no volante. Mesmo com o coração ainda batendo forte no peito, ela finalmente sentiu o peso do sucesso.
— Você está segura agora, Raven disse sem olhar para trás.
Elise finalmente falou, a voz rouca:
— Quem... quem são vocês?
Lina sorriu de canto, enxugando o suor do rosto.
— As Últimas loucas que ainda acreditam em salvar o mundo.
Raven, pela primeira vez em muito tempo, permitiu-se sorrir. Apenas um pouco.
A luta estava apenas começando.
A caminhonete cruzava a estrada de terra batida sob a luz tênue do amanhecer. Poeira alaranjada se ergueu no ar, acompanhando o ronco constante do motor. Na carroceria, Elise observava as ruínas distantes com uma expressão ansiosa, ainda processando o que havia acontecido nas últimas horas. Ao volante, Raven mantinha o olhar fixo na estrada, enquanto Lina, sentada no banco ao lado, cantarolava baixinho uma melodia desconhecida, a mão sempre próxima da arma presa à cintura.
— Chegaremos à base antes do sol ficar alto, anunciou Raven, sem olhar para trás.
— E o que acontece comigo quando chegarmos lá? — perguntou Elise, a voz embargada de preocupação.
Raven respondeu sem hesitar, com seu tom firme habitual:
— Você descansa. E depois conversamos. Mas todos lá precisam entender quem você é e por que está conosco. Sem isso, você não terá a confiança deles.
Lina soltou um pequeno riso, quase debochado.
— Ou seja, uma boa apresentação será essencial. Raven não gosta de surpresas.
Raven lançou um olhar breve, mas afiado, para Lina.
— E você deveria guardar a língua. Ainda estamos em território arriscado.
A base da Resistência apareceu diante delas como um oásis de aço e concreto em meio ao deserto. Torres de vigia feitas com restos de metal se erguiam ao redor das ruínas de uma antiga fábrica, e a atividade lá dentro era frenética. Grupos de pessoas carregavam caixas de munição e ferramentas, enquanto sentinelas armados patrulhavam os portões.
Raven parou o veículo e desceu sem cerimônia.
— Bem-vinda ao que chamamos de lar, ela disse para Elise.
Elise desceu com cuidado, ajustando os óculos que quase caíram durante a travessia. Observava ao redor, fascinada e, ao mesmo tempo, assustada com o movimento constante e os olhares desconfiados lançados em sua direção. Lina pulou da carroceria com a mesma agilidade de um gato e estendeu a mão para Elise.
— Vai precisar de mim para navegar por aqui. Não se preocupe, você se acostuma com o cheiro. Eventualmente.
Raven ignorou a troca entre as duas e fez um gesto para que a seguissem.
— Venham. Precisamos falar sobre muitas coisas.
O trio atravessou os corredores estreitos da fábrica até chegar a uma sala improvisada, onde mapas e anotações cobriam uma mesa central. Uma lâmpada pendurada balançava levemente, lançando sombras nas paredes. Raven pegou uma cadeira e se sentou, gesticulando para que as outras fizessem o mesmo.
— Antes de qualquer coisa, vocês precisam entender com quem estão lidando. Elise, você não está em uma organização de caridade. Somos uma resistência com um objetivo claro: derrubar o Império e libertar o que resta desse mundo. E cada pessoa aqui tem uma história que define por que lutamos. Vou começar com a minha.
Ela se inclinou para frente, o rosto endurecido pelo peso das memórias.
Raven se levantou e caminhou até uma janela quebrada que dava para o campo de treinamento da base.
— Quando eu era criança, minha vida era normal. Tinha uma família. Meu pai era um engenheiro que trabalhava para reconstruir o que o mundo perdeu. Mas ele acreditava que o progresso não deveria custar a liberdade das pessoas. Quando o Império Tecnocrata começou a se formar, ele se recusou a entregar seus projetos. Isso o transformou em um alvo.
Ela parou, observando os jovens treinando com rifles improvisados.
— Eles vieram à noite. Eu tinha doze anos. Meu pai tentou resistir, mas foi morto na minha frente. Minha mãe... Ela tentou me proteger, mas não teve chance. Eu fui capturada e jogada em uma cela com outros sobreviventes. Fiquei lá por meses, até que consegui escapar durante um ataque rebelde. Desde então, fiz uma promessa: nunca deixar o Império destruir outra família.
Ela olhou para Elise, os olhos queimando com intensidade.
— É por isso que luto. Não por vingança, mas porque ninguém mais deveria passar por isso.
Lina, que estava recostada na parede, soltou um suspiro e caminhou até a mesa, pegando uma faca para girar entre os dedos.
— Minha história não é tão nobre quanto a de Raven, mas aqui vai: eu era uma garota comum em uma vila esquecida pelo mundo. Até que o Império decidiu que aquele pedaço de terra tinha valor. Eles envenenaram o poço e queimaram as casas. Minha família morreu em menos de uma semana. Uma freira me encontrou e me escondeu no porão de uma igreja. Foi a única razão para eu estar viva hoje.
Ela parou de girar a faca e cravou a lâmina na mesa.
— Depois disso, aprendi a me virar. Roubei. Matei. Fiz o que era necessário para sobreviver. Quando encontrei a Resistência, percebi que podia usar as mesmas habilidades para algo maior. Espionar o Império é arriscado, mas é minha maneira de fazer justiça por tudo o que perdi.
Elise hesitou, olhando para as duas. Com um suspiro, ela começou:
— Eu era uma cientista. Cresci longe desse caos. Minha vida era simples. Trabalho, pesquisa... Quando o colapso ambiental começou, dediquei minha vida a tentar ajudar. Foi assim que o Império me encontrou. Me recrutaram, e eu pensei que poderia fazer a diferença. Mas tudo o que queriam era poder. Eles usaram meu trabalho como uma arma.
Ela apertou os punhos sobre a mesa.
— Eu tentei fugir quando percebi o que estavam fazendo. E agora, tudo o que quero é garantir que minha pesquisa não seja usada para controlar ainda mais pessoas. É só isso que me importa.
Raven assentiu, satisfeita com as histórias.
— Agora sabemos quem somos e por que estamos aqui. E se quisermos sobreviver, precisaremos confiar umas nas outras.
Antes que alguém pudesse responder, o som de um alarme ecoou pela base. Luzes vermelhas piscavam, e gritos eram ouvidos do lado de fora. Lina foi a primeira a sacar sua arma.
— O que está acontecendo?
Um soldado entrou correndo na sala, o rosto pálido de terror.
— Algo está vindo do deserto! É grande... e rápido!
Raven se levantou, já pegando sua arma e gesticulando para que as outras a seguissem.
— Bem, parece que a apresentação acabou. Hora de trabalhar.
Elise sentiu o coração disparar enquanto seguia as duas para fora. Quando alcançaram os portões, viram a figura monstruosa avançando através da areia, um rugido ecoando pelo ar seco.
Eram os monstros do novo mundo.
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