Dois anos. Foi o tempo exato que o contrato dos avôs havia imposto, como se fosse uma sentença gravada em pedra. Dois anos em que cada centímetro da mansão se tornou campo de batalha, cada palavra uma lâmina afiada, cada olhar um duelo silencioso. Eles se odiavam desde o primeiro dia. O orgulho era o verdadeiro terceiro habitante daquela casa.
Ela, com sua frieza impecável, continuava a mascarar feridas que ninguém tinha o direito de tocar. O nome da mãe jamais atravessava seus lábios. O mundo só via a herdeira milionária, a rainha dos negócios, a mulher que pilotava seus carros esportivos como se o asfalto fosse extensão de sua pele. Ele, por outro lado, não era menos. Frio, desbocado, incapaz de se curvar a qualquer um. Herdeiro de um império, homem que nunca soube ceder.
O casamento começou como uma guerra. A convivência, uma prisão. E, ainda assim, em meio às chamas das discussões, algo inesperado surgiu. Não foi amor romântico nem redenção súbita. Foi algo mais cru: respeito. Reconhecimento. A percepção de que estavam diante de um adversário à altura.
No fim do contrato, ninguém ousou falar em divórcio. O prazo expirou, mas o vínculo não. Ele já não falava mais na antiga noiva. Ela já não fugia tanto das sombras do passado. A melhor amiga continuava sendo seu porto seguro, e o animal de estimação ainda era a estranheza favorita que o fazia rir contra a própria vontade.
Não houve finais felizes com declarações perfeitas. O que houve foi a constatação de que ódio e paixão têm a mesma raiz. O que houve foi um olhar cruzado no silêncio da sala, sem precisar de promessas. Dois anos haviam sido apenas o começo.
Porque, no fundo, talvez aquele casamento arranjado não fosse uma sentença. Fosse um destino.
Continua….
O ronco grave da moto cortava a noite abafada de Verona, levantando poeira na pista improvisada de motocross. Isadora Valentini acelerava sem medo, o corpo inclinado com perfeição, como se fosse parte da máquina que conduzia. As luzes dos faróis refletiam em seus olhos claros, intensos, e no capacete preto que escondia a expressão calculista. Vencer ou perder nunca importava. Para ela, corridas eram apenas válvulas de escape.
Quando cruzou a linha marcada com fitas, reduziu a marcha e retirou o capacete, revelando os cabelos escuros desgrenhados pelo vento. Enquanto alguns rapazes a olhavam com surpresa e admiração, Isadora permaneceu impassível, indiferente às reações. Guardou a moto com precisão, como quem encerra um ritual.
Foi então que algo a fez parar.
O carro de seu pai.
Estacionado perto da entrada da pista.
Ela estreitou os olhos, irritada. Não costumava ser seguida, muito menos vigiada. Caminhou até o veículo, abrindo a porta do passageiro com a mesma frieza que lhe era natural.
— Perdeu o caminho de casa, pai? — sua voz saiu seca, quase cortante.
Giovanni Valentini, um homem de presença imponente apesar dos cabelos grisalhos, apenas a observou em silêncio por alguns segundos antes de responder.
— Precisamos conversar. Agora.
— Deve ser algo realmente importante para me esperar em um lugar como este. — ela se jogou no banco, cruzando as pernas sem cerimônia. — Vamos, dirija.
O silêncio entre eles no trajeto até a mansão era pesado, denso. Isadora nunca fora de conversas triviais. Preferia o silêncio às palavras vazias.
Ao chegarem, as luzes da casa estavam acesas. Um detalhe não passou despercebido por ela: o carro do advogado da família estava parado na entrada. Seus lábios se curvaram em um quase sorriso irônico.
— Se era segredo, perdeu a graça, pai. O senhor nunca chama Alessandro a menos que esteja prestes a assinar a ruína de alguém.
Giovanni suspirou, mas não rebateu. Apenas abriu a porta da frente.
Na sala, Alessandro já os esperava. Um homem de meia-idade, expressão grave, portava uma pasta de couro que parecia pesar mais que o necessário. Ao ver Isadora entrar, ele se levantou.
— Senhorita Valentini. — ele a cumprimentou com formalidade.
— Alessandro. — ela respondeu fria, atirando o capacete sobre o sofá de couro e se acomodando como se fosse dona do lugar, o olhar fixo nele. — Vou poupar discursos. O que está acontecendo?
O advogado hesitou por um instante, mas abriu a pasta. Retirou alguns documentos cuidadosamente.
— É sobre um acordo antigo, firmado entre seu avô e o senhor Lorenzo Monteverdi...
O nome fez Isadora arquear uma sobrancelha, mas ela permaneceu em silêncio.
— Esse acordo envolve um contrato de união matrimonial.
Ela soltou uma risada curta, sem humor.
— O senhor está sugerindo que, em pleno século XXI, minha vida sentimental está em um contrato de gaveta?
— Não apenas sugerindo. — Alessandro manteve a voz firme. — Estou afirmando. O documento exige o casamento entre você e o neto do senhor Monteverdi... Theo.
Isadora recostou-se no sofá, os olhos gelados fixos no advogado.
— Então é isso. Fui vendida como uma peça de xadrez.
Giovanni se mexeu desconfortável. — Não é tão simples, Isadora. Esse acordo garante a união de duas das maiores fortunas da Itália. Há cláusulas que, se rompidas, podem colocar em risco parte da herança da família.
Ela apertou os dedos contra o braço do sofá, mas sua voz permaneceu firme, controlada.
— O senhor realmente acredita que eu vou aceitar isso sem reagir?
O advogado pigarreou. — O contrato estabelece convivência mínima de dois anos. Depois... podem decidir se mantêm ou não a união.
Por um momento, o silêncio reinou. Então, Isadora ergueu o queixo, com um meio sorriso carregado de veneno.
— Dois anos com Theo Monteverdi... Imagino que o destino tenha um senso de humor cruel.
Seus olhos brilharam, mas não de medo. E sim de desafio.
Continua…
Já a noite!
O rugido dos motores ecoava na madrugada , iluminada pelos faróis das motos que riscavam o asfalto clandestino. O cheiro de gasolina, fumaça e adrenalina tomava conta do ar. No meio da multidão, todos sabiam: quando Isadora surgia, ninguém ousava duvidar do resultado.
Vestida com seu macacão preto de couro justo, o capacete apoiado debaixo do braço e o olhar gelado fixo na pista, ela caminhava como uma sombra entre gritos e apostas. Os homens mais ousados se afastavam, porque sabiam que, além de milionária e dona de metade da cidade com seus negócios, Isadora corria como se o próprio fogo do inferno a perseguisse.
— Finalmente… — murmurou um dos corredores, ao vê-la se aproximar da moto vermelha fosca, uma Ducati customizada. — A Rainha da Noite voltou.
Isadora apenas arqueou a sobrancelha e deslizou a luva preta pela moto. Não precisou responder; sua presença já dizia tudo.
Antes que pudesse montar, o celular vibrou no bolso do macacão. Reconheceu o número do pai, mas ignorou. O mundo inteiro podia esperar quando estava prestes a correr.
No meio da preparação, ouviu a voz conhecida do organizador:
— Isadora contra Javier, três voltas! Apostem agora!
A multidão gritou, mas a mente dela estava em outro lugar. O peso da conversa daquela manhã ainda martelava sua mente. O advogado, a herança, o acordo entre os avôs. Dois anos de casamento com Theo, herdeiro arrogante, frio e tão desafiador quanto ela.
Ele ainda tinha uma noiva. Ela ainda tinha sua liberdade. Mas, de repente, tudo estava ameaçado.
Isadora girou o punho, ligando a moto. O ronco metálico vibrou no peito de todos ali. O vento da noite beijava seu rosto quando ela colocou o capacete.
— Você vai perder! — Javier gritou, confiante do outro lado da pista.
Ela encaixou a moto na posição e respondeu, seca, a voz amplificada pelo microfone interno do capacete:
— Eu nunca perco.
O sinal foi dado.
O asfalto parecia arder sob os pneus. Isadora arrancou, deixando Javier para trás já na primeira curva. O corpo dela se fundia à moto, cada movimento preciso, calculado. Três voltas foram suficientes para humilhar o adversário. Quando cruzou a linha de chegada, o público foi ao delírio.
Ela tirou o capacete e ergueu a mão vitoriosa, mas seus olhos estavam frios, impenetráveis. A vitória não apagava a verdade: estava prestes a perder a única coisa que realmente importava para ela.
Ao se afastar da pista, o celular voltou a vibrar. Dessa vez, atendeu.
— Finalmente — a voz de seu pai veio carregada de tensão. — Isadora, você precisa entender. Não temos escolha. Esse casamento com ele é o que mantém nossa herança, nossos impérios, intactos.
— Herança? — ela rebateu, seca. — Eu não pedi nada disso. Nem do meu sobrenome.
— E ainda assim vai carregar o peso dele. — A voz dele soou firme, quase uma sentença. — Prepare-se. Amanhã você encontrará Theo.
Isadora fechou os olhos por um segundo. Theo. O nome soava como veneno em seus lábios.
— Então que ele esteja pronto. Porque eu não sou mulher de se dobrar para ninguém.
Ela desligou sem esperar resposta, subiu na moto e acelerou, sumindo pela estrada como um raio vermelho na escuridão.
Na mesma noite, a centenas de quilômetros dali, em Paris, Theo observava a noiva adormecida em sua cama. O telefone ainda em sua mão, o mesmo telefonema recebido horas antes.
O casamento. Dois anos. Com Isadora.
Um sorriso frio curvou os lábios dele.
— Vai ser divertido quebrar a rainha de gelo.
Mas, no fundo, ele sabia: não seria nada fácil.
Dia seguinte
O silêncio dentro da sala de estar era sufocante. O relógio de parede marcava cada segundo como uma martelada. O advogado, ajeitava os óculos com ar desconfortável, observando os dois herdeiros que se encaravam como predadores em lados opostos de uma arena.
Isadora cruzou as pernas, recostada no sofá de couro com um ar de indiferença absoluta. Jogou o cabelo para o lado e disse com voz gelada:
— Então é isso? Um casamento de fachada para satisfazer o desejo de dois velhos teimosos?
Theo, de braços cruzados, encostado no batente da porta, riu baixo. Seu riso não tinha humor algum.
— Não é fachada, Isadora. É obrigação. Você devia saber que o mundo não gira em torno do seu capricho.
Ela arqueou uma sobrancelha, quase divertida.
— Engraçado ouvir isso de você. O noivo perfeito, que já deve ter decorado os votos para a sua verdadeira noiva. — disse, com um leve veneno no tom.
— Aliás, como será que ela vai reagir quando descobrir que o noivo dela precisa dividir a cama comigo pelos próximos dois anos?
O maxilar de Theo se contraiu. Ele odiava como Isadora conseguia tocar nas feridas certas com uma precisão cirúrgica.
— Não se preocupe com a minha vida. — respondeu seco. — A questão aqui é que não vou abaixar a cabeça para você. Dois anos passam rápido. Podemos sobreviver sem nos matar… ou não.
O advogado pigarreou, tentando amenizar o fogo cruzado:
— Senhores, compreendo a relutância. Mas este contrato foi firmado entre seus avós antes mesmo de vocês nascerem. Se não houver casamento, ambas as famílias perderão direitos sobre os investimentos conjuntos.
— Ou seja, dinheiro. — Isadora completou sem emoção. — No fim, sempre se resume a isso.
Ela se levantou, caminhou até a janela e encarou a noite fria que caía sobre Verona. Por dentro, sua mente fervilhava de estratégias, mas por fora, era uma muralha inquebrável.
— Muito bem. — disse por fim, virando-se de volta. — Se é inevitável, vou jogar do meu jeito. Mas que fique claro: eu não sou sua sombra, Theo. Nem sou mulher de obedecer ninguém.
— Ótimo. — ele rebateu, sem hesitar. — Porque eu também não sou homem de lidar com bonecas mimadas.
O ar ficou pesado, quase palpável.
Isadora aproximou-se, parando a poucos centímetros dele. Seus olhos cinzentos encararam os dele, azuis como aço.
— Isso vai ser divertido. — murmurou com um sorriso frio. — Espero que sua noiva aguente o impacto.
Theo retribuiu o olhar, impassível.
— Não se preocupe. Você vai perceber logo que eu não caio nos seus joguinhos.
O advogado respirou fundo, já exausto daquela primeira reunião. Ele sabia que aquele casamento seria uma guerra.
E assim, o pacto estava selado. Não por amor. Não por escolha. Mas pelo peso de um legado que agora os obrigava a conviver debaixo do mesmo teto.
A guerra havia começado.
Continua…
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