Uma parede deslumbrante estava diante de mim.
Onde diabos eu estava?
Olhei ao meu redor, e tudo que eu via agia para aumentar minha confusão: Móveis extremamente luxuosos e adornados com pedras preciosas, cortinas com rendas extremamente delicadas, tapetes brilhantes com estampas pastéis que impediam que o chão extremamente polido e branco ficasse à vista.
Virei-me na cama, provavelmente feita pelos deuses de tão macia, e observei a enorme varanda, que possuía uma delicada, mas eficiente cortina de renda, que impedia os raios solares matinais de me alcançar.
MEU DEUS!
Não precisei olhar outra vez para perceber onde estava.
EU...EU...
Tentei controlar minha respiração. Saltei da cama, percebi que usava uma camisola luxuosa e confortável, de cor rosa, que combinava com meu cabelo.
PUTA MERDA!!!
Corri até um belíssimo espelho redondo, pendurado sobre uma penteadeira branca, do outro lado do quarto.
Encarei meu reflexo, enquanto apertava meu rosto. Não... Como? Por que? Eu... Eu...
EU REENCARNEI NA MINHA OBRA PREFERIDA!?
Santo Deus... Eu tive de controlar minha respiração outra vez. Sentei-me na pequena banqueta que ficava ao lado da penteadeira. Não... Como aquilo era possível?
Após me acalmar, encarei meu reflexo outra vez no espelho.
COMO 'EU' POSSO SER TÃO LINDA ASSIM!??
Meu cabelo era comprido, ondulado e esvoaçante. Sua cor rosa, característica dos mangás, manhuas e manhwas, era muito mais bonita pessoalmente. Era deslumbrante, linda, linda, linda!
Após me encantar com minha aparência por um tempo, voltei ao plano terreno. Sim, mesmo que eu fosse linda, perfeita, deslumbrantemente incrível, isso não era suficiente. Por que eu era a vilã naquela história. A vilã da minha história preferida... "Todos os beijos que não te dei".
Essa era uma novel super popular, que acabou ganhando adaptação para manhua e anime. No entanto, conheci ela pelo manhua. Na história, Dalila, uma pobre jovem "órfã", trabalhava como empregada no ducado Rosae. Sofrendo diariamente com o trabalho, Dalila ainda tinha de lidar com um enorme contratempo: Michele, uma personagem que levava o meu nome, maltratava e humilhava Dalila de todas as formas possíveis. Porém, ela recebia uma estranha afeição do duque, o que aumentava o ódio de Michele.
Michele, a princesa Ducal, havia crescido sem amor e atenção, descontando seus traumas em tudo e todos, com um comportamento extremamente agressivo, esnobe e mesquinho. Por ser uma nobre de uma família extremamente rica e influente, todos faziam vista grossa para o comportamento de Michele. Um dia, durante um baile realizado no ducado Rosae, o arquiduque Ivan encontra Michele batendo em Dalila no jardim. Enojado com a cena, ele leva Dalila embora, e despreza Michele, que "secretamente" o amava desde a infância.
A partir disso, a merda tá feita. Ah, esqueci que Dalila e Michele são muito parecidas, o que era um motivo de vergonha para Michele, que achava ruim ter uma aparência que lembrava a de alguém "inferior". O que ocorre depois é Michele infernizando os protagonistas de todas as formas. Os masculinos secundários também entram na jogada, e uma verdadeira novela mexicana se desenvolve...
O fim da obra é incrível, e bastante revolucionário, sendo o principal motivo da obra ser super famosa. Michele, que a essa altura do jogo já não é uma personagem linear feita apenas para ser odiada, causa muita comoção quando consegue com sucesso envenenar e matar Dalila. No entanto, o que acontece depois disso é que ela descobre que Dalila era sua irmã.
Em meio a um turbilhão de emoções, Michele encontra a morte pelas mãos de Ivan.
Perdido sem o amor de sua vida, Ivan destrói várias coisas que eram importantes para Michele, e a obra termina com uma cena emblemática: Ivan sentado sobre o trono do ducado de Rosae com a cabeça abaixada, enquanto o leitor se pergunta se ele está chorando ou se mantém uma expressão de raiva.
Li essa obra umas dez vezes, no mínimo. O final amargo e os personagens fizeram com que eu adorasse absolutamente tudo. Estar dentro dela fazia meu coração palpitar, principalmente quando eu me lembrava de todas as cenas icônicas. Mas eu estava realmente numa situação problemática...
O que eu deveria fazer?
Bem...
Não é como se eu fosse o tipo de "protagonista" que reencarna e segue o curso original da história. Sim... o maior problema é interferir diretamente e mudar o enredo, impedindo que a narrativa emblemática pela qual eu me apaixonei seja mudada... Mas eu não quero morrer. Não!
Eu reencarnei na minha obra preferida, com os meus personagens preferidos, não posso simplesmente seguir o enredo original que eu conheço de trás para frente e partir... Não! Eu me recuso!
Comecei a andar de um lado para o outro, enquanto tentava chegar a uma conclusão. Se eu não estava disposta a agir como a verdadeira 'Michele', então eu deveria ter um bom delineamento de como seriam minhas ações. Sim, ainda que eu não fizesse todas as maldades que Michele fez, eu ainda tinha uma péssima imagem nesse mundo... Espera!
Eu demorei para perceber, mas havia algo extremamente importante que eu não havia considerado: Em que ponto da história eu havia reencarnado? Era antes ou depois da história ter começado?
Procurei por algum diário, calendário, o que quer que fosse, mas não havia nada. Bufei, e me joguei na cama. Pensando bem, onde estava a empregada que aparece sempre pela manhã? Todas as histórias começavam com a protagonista sendo acordada pela empregada...
Esperei por um tempo, e ninguém apareceu. O sol brilhava forte do lado de fora. Não era tão cedo...
De repente, uma cena se formou em minha cabeça: Michele gritava com uma fileira de empregadas, dizendo que não gostaria de ser acordada antes das onze da manhã.
Michele desprezava as empregadas, e elas desprezavam Michele. Provavelmente já era meio-dia. Elas não se importavam em ir até lá.
Ah...
Abri a porta do meu quarto bruscamente, e surpreendi uma empregada que passava pelo corredor.
- P-princesa!- Ela cumprimentou, abaixando a cabeça. Fiz sinal para que ela parasse de se curvar.-
Se eu quisesse mudar um pouco as coisas, eu deveria começar a mudar a relação de Michele com os empregados. Ela era uma vilã imbatível e sem culhões, mas jogava sozinha... Eu lembro de me irritar muito enquanto lia e via muitos planos de Michele falhar porque ela não era capaz de fazer tudo sozinha e rapidamente.
Continuei andando, desci por uma escadaria dupla de vidro, gritando internamente, pois era um dos cenários mais lindos do manhua. Após descer as escadarias, cruzei um enorme salão, pouco mobiliado, mas com as paredes extremamente decoradas. Era o salão de recepção, onde normalmente ocorriam os bailes e festas. Peguei um corredor pela direita, e após passar por algumas portas, estava diante de uma enorme porta dupla. Era a sala de jantar.
Dois guardas abriram as enormes portas, e adentrei no recinto. O duque, 'meu pai', Tyler Willian Turmalina Rosae, estava sentado, comendo sua refeição. Eu tinha amaldiçoado aquele homem muitas vezes enquanto lia. Também me lembro de rir muito sempre que ele aparecia, pois todas as vezes colocavam uma tag com o nome e o título dele, pois ele não aparecia muito e faziam como uma piada para que os leitores não se esquecessem. Graças a isso, decorei o nome dele inteiro, primeiro que o de outros personagens.
Mesmo tendo pouco tempo de "tela", Tyler era um desgraçado, responsável por 80% das merdas que aconteciam no manhua. Eu lembro de levantar hashtags e escrever posts enormes tentando justificar o porquê Tyler deveria ser considerado o verdadeiro vilão... eram bons tempos... E agora, ali estava eu, diante daquele velho diabo, que nem sequer havia ligado para minha presença ao adentrar a sala de jantar. Ele tampouco se importou de ordenar que um prato fosse colocado para mim na mesa.
Eu sorri internamente, observando o maldito mastigar com prazer.
Não é porque decidi não seguir com o enredo original, que eu tenha que abandonar 'minha' personalidade de vilã. Na obra, ele adorava gritar aos quatro ventos do ducado que Michele era malcriada e uma desgraça que nunca deveria ter nascido, mesmo que ela não tivesse feito nada para receber tais ofensas.
Essa era uma das poucas coisas que eu detestava em Michele. Ela não reagia diante do Tyler. Mas eu sim. Eu sim...
Peguei uma garrafa de vinho que um empregado levava até a mesa numa bandeja. Ele não pôde evitar.
Tyler levantou os olhos para mim. Não havia nada em seu olhar que eu não conhecesse. Aquele olhar de desprezo era algo que eu havia visto muitas vezes na tela do meu celular. Eu detestava aqueles olhos, tanto quanto a verdadeira Michele.
Peguei a garrafa, e a virei sobre a cabeça de Tyler. Ele permaneceu imóvel, me encarando com seus olhos desprezíveis. Não pude evitar esboçar um pequeno sorriso.
- O que acha que está fazendo?- Ele perguntou, em um tom frio e baixo. Sua voz não esboçava raiva, nem qualquer outro sentimento. Eu me sentia um pouco irritada em não ver ele esboçar raiva.-
- Estou lhe dando bom dia, vossa graça.- Respondi com serenidade, colocando a garrafa na mesa. Eu puxei uma cadeira para me sentar.- Ninguém me chamou para que eu viesse almoçar.
- Não foi você que disse para que ninguém fosse lhe incomodar?- Ele limpava o rosto com um lenço que foi levado até ele as pressas. O medo que os empregados sentiam era palpável.-
- Eu disse, mas os empregados também precisam ter um pouco de consideração. Se eu dissesse a eles que pintassem as paredes do ducado de vermelho, eles deveriam simplesmente obedecer?
As sobrancelhas dele se dobraram um pouco, mas voltaram ao normal em seguida. Era difícil saber o que ele estava pensando. A frieza dele era super medonha pessoalmente... No manhua pelo menos tinha os balões com os pensamentos dele.
- E quer que eu faça exatamente o quê?- Ah, lá estava! Ele faria as clássicas falas que colocavam a verdadeira Michele no fundo do poço.- Quer que eu peça que coloquem um prato para você na mesa? Quer que eu peça para que lhe acordem a tempo para o almoço? Você é uma princesa ducal, deveria saber cuidar de si mesma. Até quando terá esse comportamento infantil? O que mais quer que eu faça por você? Não é suficiente que eu lhe dê um lugar decente para viver?
O falatório acabou, e Tyler se levantou bruscamente da mesa, encenando a famosa cena do "Perdi o apetite quando você chegou". Não que eu me importasse, afinal era exatamente o que eu queria. Comer a maravilhosa comida que eu só via pela tela do meu celular, me fazendo salivar no meu quarto de madrugada... Ah, como eu ansiava por aquilo!
- Estão esperando o quê para trazer minha comida?
- A-ah, claro senhorita!- Um dos empregados correu até a cozinha, e voltou com um carrinho cheio daquelas comidas que enchem os olhos.-
Puta merda, era tudo que eu queria!
.
.
.
Meus olhos estavam pesados.
Sim, era óbvio que eu ficaria sonolenta depois de comer tanto... Eu permaneci pelo menos umas duas horas dentro da sala de jantar.
Enquanto subia pela minha linda escadaria de vidro, pude ver algo interessante no jardim.
Danados!
Nos jardins frontais do ducado, se via o belíssimo Tyler e sua querida Dalila.
Mesmo com o uniforme de empregada, ela era linda. O esperado de uma protagonista.
A razão pela qual Tyler não admitiu Dalila como sua filha, se deu pelo fato de ela ser fruto de uma relação extraconjugal. Ao mesmo tempo em que a mãe de Michele engravidou, ocorreu o mesmo com a mãe de Dalila. Minha mãe não resistiu ao parto, ao passo que a mãe de Dalila sobreviveu.
O queridíssimo Tyler, não pôde resistir a tentação de ficar com seu verdadeiro amor, e então levou sua amante e filha para o ducado. Um homem como ele, era capaz de comprar um título para sua querida amante, para que eles pudessem se casar, mas ele nunca fez isso. Ele a usou pelo tempo que pôde, mas a mulher não resistiu e se suicidou, quando 'eu' e Dalila ainda éramos bebês.
De acordo com a obra, apesar de tudo, Tyler amava a mãe de Dalila, e por conta do sentimento de culpa, manteve sua filha no ducado. Ah... Mais um dos motivos pelos quais o detesto: para esconder sua infidelidade e mau-caratismo, ele nunca pôde dar a Dalila o título que pertencia a ela. No entanto, ela cresceu com extrema consideração e carinho por parte dele... Ha, como se isso valesse de alguma coisa!
Observei a cena por um tempo, até que eles se distanciaram o suficiente, de modo que não era possível identificar suas silhuetas.
Um nó estava preso em minha garganta. Eu não soube dizer se era por mim, por Michele, ou por Dalila. O pôr do sol que invadia a mansão pelas vidraças e tornava a escada de vidro laranja era lindo.
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