Clara sempre acreditou que sua vida era previsível. Com 24 anos e um curso de história que consumia quase todo o seu tempo, ela nunca esperava grandes surpresas. Mas a carta que chegou pelo correio mudou tudo. O envelope amarelado e desgastado parecia algo saído de outro século. Dentro dele, uma mensagem sucinta:
"Clara Almeida, lamentamos informar o falecimento de seu tio-avô, Hugo Vasconcelos. Como herdeira única, você recebeu a propriedade da família situada na vila de São Benedito."
O nome não era familiar. Clara não sabia que tinha um tio-avô, muito menos que ele possuía uma mansão. Ainda assim, a curiosidade falou mais alto. Após algumas semanas de ajustes em sua rotina, ela partiu para São Benedito, um lugar esquecido no tempo, onde a neblina parecia um habitante permanente.
A vila era pequena e silenciosa. Os moradores, curiosamente, paravam de conversar quando Clara passava. Alguns lançavam olhares furtivos, como se reconhecessem algo nela. Depois de várias perguntas, encontrou um homem que se ofereceu para guiá-la até a propriedade.
"É para a mansão Vasconcelos, certo?" ele perguntou, olhando-a com um misto de pena e receio. Antes que Clara pudesse responder, ele acrescentou: "Boa sorte."
A estrada até a mansão era estreita, ladeada por árvores cujos galhos pareciam se curvar em reverência ou ameaça. Quando a casa finalmente surgiu à vista, Clara sentiu um arrepio percorrer sua espinha.
A mansão era colossal, mas desgastada pelo tempo. As janelas estavam cobertas de poeira, e a madeira da estrutura rangia, mesmo sem vento. O portão de ferro rangeu alto quando ela o empurrou. Ao se aproximar da porta principal, uma sensação de desconforto tomou conta dela. Não era apenas o silêncio absoluto; era como se algo invisível estivesse esperando.
Clara girou a chave enferrujada que recebera junto com a carta. A porta abriu-se com um rangido prolongado, revelando um grande hall de entrada. O ar era espesso, com um cheiro de mofo misturado a algo mais metálico, como ferrugem. Havia móveis antigos cobertos por lençóis amarelados, e quadros tortos nas paredes exibiam retratos de pessoas que pareciam observá-la.
"Então, isso é meu agora..." Clara sussurrou para si mesma, tentando ignorar o peso do lugar.
Depois de explorar rapidamente os cômodos do térreo, Clara escolheu um quarto no andar superior para passar a noite. Havia algo reconfortante na altura, como se a distância do solo a afastasse daquele ambiente opressor.
Enquanto ajeitava seus pertences, um som baixo e sutil chamou sua atenção. Ela congelou, com os ouvidos atentos. Era como um sussurro distante, quase imperceptível, vindo das paredes.
"Deve ser o vento", murmurou, tentando se convencer. Mas o som persistia. Palavras indistintas, quase melodiosas, formavam um ritmo estranho. Clara pressionou a orelha contra a parede, mas tudo ficou em silêncio.
Exausta da longa viagem e da tensão acumulada, decidiu ignorar o episódio e se deitou. Apesar do cansaço, o sono demorava a vir. Quando finalmente adormeceu, os sussurros retornaram, mais altos dessa vez. Pareciam fluir pelas paredes, como se a casa estivesse respirando.
Clara acordou sobressaltada, suando frio. O quarto estava mergulhado na escuridão, exceto pela luz pálida da lua que entrava pela janela. Sentiu o coração disparar quando percebeu que a porta, que tinha certeza de ter trancado, estava entreaberta.
"Calma, Clara. É uma casa velha... Tudo isso é normal", disse a si mesma, tentando controlar o medo crescente. Mas, no fundo, sabia que havia algo errado. Muito errado.
Antes que pudesse se levantar, ouviu passos leves no corredor. A madeira rangia com cuidado, como se alguém ou algo estivesse tentando não ser notado. Clara prendeu a respiração, com os olhos fixos na porta.
E então, silêncio.
Na manhã seguinte, Clara desceu as escadas com o corpo tenso. Ao pisar no hall, encontrou um objeto no centro do chão: um broche dourado, com o símbolo de uma serpente, reluzindo apesar da sujeira. Ela não lembrava de tê-lo visto antes.
Era como se a casa quisesse lhe dar boas-vindas, de sua própria e perturbadora maneira.
O dia seguinte amanheceu tão nebuloso quanto o interior da mansão. Clara acordou com a mente confusa, entre os ecos da noite passada e o mistério do broche dourado que encontrara no hall. Ela o guardou em um dos bolsos da jaqueta, uma parte de si intrigada, outra receosa.
Enquanto descia as escadas, o som do piso de madeira rangendo sob seus pés parecia amplificado pelo silêncio opressor. O ar estava pesado, e a sensação de estar sendo observada não a abandonava. Decidida a explorar mais da casa, Clara começou pelos cômodos que não visitara na noite anterior.
O primeiro foi a biblioteca, uma sala de teto alto e paredes cobertas por estantes escuras repletas de livros antigos. O cheiro de papel envelhecido e couro impregnava o ambiente. Alguns volumes estavam tão deteriorados que mal se sustentavam nas prateleiras. Clara correu os olhos pelos títulos, muitos deles em línguas que ela não compreendia. Grego, latim, alemão... Entre as fileiras de livros, encontrou algo que chamou sua atenção: um diário encadernado em couro preto, com as iniciais "H.V." gravadas na capa.
“Será que é dele?”, sussurrou, referindo-se ao tio-avô que nunca conheceu.
Clara sentou-se em uma poltrona ao lado de uma janela empoeirada e começou a folhear o diário. A caligrafia elegante preenchia cada página com uma mistura de anotações e esboços perturbadores. Havia desenhos de símbolos estranhos, círculos intricados e figuras que pareciam humanas, mas com traços distorcidos.
Nas primeiras páginas, Hugo Vasconcelos falava sobre sua paixão pela ciência e pela metafísica. Ele mencionava uma busca obsessiva por “respostas além do nosso mundo”. Contudo, conforme Clara avançava, as anotações tornavam-se mais sombrias.
"A casa responde aos comandos... As paredes têm memória. É através delas que os sussurros se manifestam. É aqui que o espelho encontrou sua verdadeira função."
O coração de Clara bateu mais rápido. Espelho? Ela lembrou-se do reflexo estranho que vira no grande espelho do hall, mas ainda não sabia que aquilo era apenas o início.
Mais adiante, Hugo descrevia algo que gelou seu sangue: experimentos realizados no porão. Ele mencionava tentativas de “abrir portais”, usando o espelho como uma espécie de âncora. Os textos ficavam cada vez mais frenéticos, com referências a vozes que o guiavam, figuras que apareciam e desapareciam, e uma entidade sem nome que ele chamava apenas de "o Observador".
Na metade do diário, uma passagem estava marcada com um pedaço de tecido desbotado. A curiosidade venceu o receio, e Clara leu as palavras em voz alta, quase como se fosse um reflexo:
"No âmago do reflexo reside o que foi e o que será. Aquele que olhar além verá não apenas o outro lado, mas também a verdade que o consome."
Ao terminar, a temperatura do ambiente pareceu cair abruptamente. Clara sentiu um arrepio tão intenso que sua visão ficou turva por um momento. O som dos sussurros voltou, mas desta vez mais próximos, como se as paredes ao seu redor estivessem vivas.
Ela olhou ao redor, com a respiração acelerada. Tinha a sensação de que algo a observava. Levantou-se rapidamente, o diário ainda em mãos, e sentiu um peso invisível sobre seus ombros, como se uma força quisesse mantê-la ali.
“Isso é loucura... Só estou cansada”, disse, tentando convencer a si mesma. Mas o ambiente parecia desmenti-la.
De repente, a porta da biblioteca, que estava entreaberta, fechou-se com um estrondo. Clara correu até ela, puxando a maçaneta com força, mas parecia trancada por dentro. Foi então que viu, pelo reflexo de um espelho oval pendurado na parede, uma sombra se mover atrás dela.
Clara virou-se de forma brusca, mas não havia ninguém. Ela encarou o espelho, e o que viu fez seu coração quase parar. Seu reflexo não a imitava. Enquanto ela estava paralisada de medo, a imagem no espelho inclinou a cabeça e sorriu de forma sutil, mas assustadora.
“Isso não está acontecendo...” Ela fechou os olhos e respirou fundo. Quando os abriu novamente, o reflexo parecia normal, mas o sussurro continuava.
Finalmente, a porta se abriu com um rangido lento, como se a casa decidisse libertá-la. Sem pensar duas vezes, Clara saiu da biblioteca e trancou a porta atrás de si, mas não pôde evitar uma última olhada para o interior. Nada parecia diferente, mas o diário em suas mãos parecia mais pesado, quase pulsante.
Determinada a entender o que estava acontecendo, Clara decidiu que precisava encontrar o porão que Hugo mencionara em suas anotações. Embora cada passo a aproximasse de algo que ela sabia ser perigoso, a sensação de estar em um caminho sem volta a impulsionava.
Enquanto caminhava pelos corredores, uma frase lida no diário ecoava em sua mente:
"A casa responde aos comandos... As paredes têm memória."
E Clara começava a acreditar.
O porão era uma parte da casa que Clara relutava em explorar. Desde que lera sobre os experimentos do tio-avô Hugo no diário, a ideia de descer àquele lugar a fazia sentir calafrios. Contudo, algo dentro dela, uma mistura de curiosidade e inquietação, a empurrava na direção do desconhecido.
Ela encontrou a porta do porão ao lado da cozinha. Era de madeira grossa, com marcas de desgaste que lembravam arranhões. Ao girar a maçaneta, um rangido grave ecoou pela casa, como se o próprio ar reclamasse de sua decisão. A escuridão do porão parecia mais densa do que qualquer sombra comum, engolindo a luz que vinha de cima.
Clara pegou uma lanterna que encontrara na cozinha e desceu com cautela, os degraus de pedra fria parecendo intermináveis. O cheiro de mofo e um leve odor metálico tomavam o ar. O espaço era amplo, mas desordenado. Havia prateleiras cheias de frascos empoeirados, equipamentos enferrujados e papéis espalhados pelo chão.
No centro do porão, algo chamou sua atenção: uma forma retangular coberta por um pano velho e encardido. Clara hesitou, o coração batendo como um tambor em seu peito. Ela sabia, sem saber como, que aquilo era o espelho que Hugo mencionara em suas anotações.
“Vamos, Clara. É só um espelho”, murmurou para si mesma, tentando reunir coragem.
Com as mãos trêmulas, puxou o pano. O objeto revelou-se em toda a sua imponência. Era maior do que ela esperava, com quase dois metros de altura e uma moldura de ferro ornamentada com símbolos que Clara não reconhecia. A superfície do espelho estava impecável, como se o tempo não tivesse poder sobre ele.
Quando ela ergueu a lanterna para iluminá-lo melhor, seu reflexo apareceu... mas algo estava errado. A princípio, parecia normal. Clara inclinou a cabeça para a direita e seu reflexo fez o mesmo. Ela ergueu a mão, e a imagem no espelho a acompanhou. Mas então, de repente, o reflexo parou.
Clara congelou. Ela não estava se movendo, mas a imagem no espelho inclinou a cabeça levemente, como se estivesse examinando-a com curiosidade. Então, o reflexo sorriu — um sorriso que não era dela, mas algo perverso e profundamente desconcertante.
“Quem... quem é você?”, Clara perguntou, a voz trêmula.
O reflexo abriu a boca como se fosse responder, mas, em vez de palavras, o som de sussurros encheu o porão. Eles vinham de todos os lados, como um coro de vozes distantes, incompreensíveis. Clara recuou, quase tropeçando nos papéis espalhados pelo chão, mas não conseguia desviar os olhos do espelho.
As palavras finalmente começaram a fazer sentido, como se as vozes estivessem se ajustando para que ela as entendesse:
"Você não pertence aqui. Assim como os outros não pertenciam."
“Que outros?”, ela perguntou, mas sua voz soava abafada, como se o ar ao redor estivesse mais pesado.
O reflexo levantou a mão — algo que Clara definitivamente não estava fazendo. Com um movimento lento e teatral, apontou para ela. As vozes ficaram mais altas, misturando verdades sombrias e enigmas.
"Esta casa não é sua. Foi construída sobre segredos, sobre sangue. Hugo sabia... Ele tentou nos trancar aqui, mas agora você abriu a porta."
Clara sentiu um arrepio percorrer sua espinha. A palavra “sangue” parecia ecoar mais alto que as outras. Ela lembrou-se das menções no diário sobre desaparecimentos e experimentos. O espelho parecia pulsar, como se tivesse vida própria.
“Isso não pode ser real...”, murmurou.
A imagem no espelho começou a mudar. O reflexo dela se distorceu, o rosto se alongando, os olhos ficando fundos e negros. Outras figuras começaram a aparecer ao redor, rostos pálidos e vazios, com bocas abertas em gritos silenciosos.
Clara deu um passo para trás, mas suas costas encontraram a parede fria. Quando tentou correr para as escadas, a porta do porão se fechou com um estrondo. A luz da lanterna piscou, e os sussurros viraram gritos.
“Deixe-me sair!” Clara gritou, batendo na porta com toda a força que tinha. Mas a madeira parecia intransponível.
De repente, a lanterna apagou-se, mergulhando-a em uma escuridão quase palpável. A única luz restante vinha do espelho, que agora emitia um brilho fraco e sinistro.
No reflexo, Clara viu algo que a fez perder o fôlego: uma figura alta e encapuzada estava atrás dela, mesmo que o espaço ao seu redor estivesse vazio.
Ela virou-se rapidamente, mas não havia nada lá. Quando olhou de volta para o espelho, o reflexo dela estava normal outra vez, mas com os olhos fixos nos dela, como se zombasse de seu medo.
Sem outra escolha, Clara tentou novamente abrir a porta. Desta vez, cedeu com um rangido lento. Ela subiu correndo as escadas, sem olhar para trás, sentindo que algo estava prestes a alcançá-la. Quando finalmente chegou ao hall, as portas da mansão estavam trancadas, apesar de estarem destrancadas mais cedo.
“Não... não pode ser!” Clara correu até a porta principal e puxou a maçaneta repetidamente, mas ela não se movia.
Ao longe, o som dos sussurros voltou. Só que agora, eles estavam mais altos, e ela podia jurar que vinham diretamente do espelho lá embaixo.
Clara caiu de joelhos, sentindo o desespero tomar conta. Não sabia o que estava enfrentando, mas uma coisa era certa: a mansão estava viva, e ela não a deixaria sair tão facilmente.
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