Laura apertou o casaco contra o corpo enquanto caminhava pela calçada molhada da pequena cidade litorânea. As lojas começavam a fechar, e uma leve névoa cobria o porto, criando um cenário quase poético. Ela gostava do silêncio e da solidão, especialmente à noite, quando o mundo parecia suspenso, como uma página em branco.
A campainha da pequena livraria e café onde trabalhava soou ao abrir a porta. Ela tirou o casaco, pendurando-o cuidadosamente, e sentiu o cheiro familiar de café fresco misturado ao perfume amadeirado dos livros. Esse era seu refúgio, o lugar onde poderia escapar para o mundo das histórias sem ser perturbada.
“Laura, tem uma nova remessa pra você revisar,” avisou Dona Marta, a dona da livraria, enquanto limpava o balcão. “Dizem que é o próximo best-seller do Rafael Almeida.”
Laura levantou as sobrancelhas. Ela conhecia o trabalho de Rafael Almeida – era um autor conhecido, mas raramente dava entrevistas ou fazia aparições públicas. Acreditava-se que ele morava recluso, buscando inspiração em locais tranquilos, mas ninguém sabia ao certo onde.
Ela pegou a pilha de manuscritos deixada no balcão e seguiu para a pequena sala nos fundos da livraria, onde ficava sua estação de trabalho. Abriu o primeiro manuscrito e começou a ler as primeiras páginas, deixando-se levar pelas palavras bem escolhidas e pela profundidade dos personagens.
Ao longo da leitura, o barulho da campainha da porta da livraria continuava, mas ela estava tão envolvida na história que mal percebeu a presença de novos clientes entrando. Até que uma sombra surgiu no canto de sua visão.
“Com licença,” uma voz grave interrompeu seus pensamentos.
Laura levantou o olhar, sendo recebida por olhos escuros que a observavam atentamente. O homem à sua frente era alto, com uma expressão séria e um ar misterioso. Ele parecia deslocado naquele ambiente tão tranquilo, como se carregasse consigo algo sombrio e intenso.
“Sim? Posso ajudar em algo?” ela perguntou, mantendo o tom profissional.
“Você é a editora daqui?” ele perguntou, a voz carregando um leve sotaque que ela não conseguiu identificar de imediato.
“Sou, sim. Posso ajudar com alguma coisa?”
Ele hesitou, mas finalmente estendeu a mão. “Sou Rafael Almeida. Gostaria de falar sobre meu novo livro.”
Laura sentiu o coração bater mais rápido. Ela estava ali, frente a frente com o autor cuja obra estava lendo instantes antes. Tentou manter a calma enquanto aceitava o aperto de mão firme. Havia uma intensidade nele que era quase palpável, como se cada palavra e gesto fossem cuidadosamente medidos.
“Eu estava justamente lendo o manuscrito que você enviou,” disse ela, tentando esconder a surpresa.
Ele sorriu, mas era um sorriso tímido, quase imperceptível. “E o que achou? Vale a pena todo o isolamento?”
Ela sorriu, sentindo a tensão diminuir um pouco. “Eu diria que sim. A história parece… autêntica.”
Rafael observou-a em silêncio, e por um instante, parecia que ele estava tentando enxergar além das palavras dela, como se estivesse estudando cada nuance de sua reação.
“Espero que possamos trabalhar juntos, então,” ele disse finalmente, com um olhar que deixava claro que aquele trabalho poderia significar mais do que apenas uma parceria profissional.
Laura sentiu um frio na espinha. Algo naquela presença a deixava desconfortável e fascinada ao mesmo tempo. Ela sabia que, a partir daquele momento, sua vida tranquila na cidade estava prestes a mudar – e não tinha certeza se estava pronta para isso.
O som suave da chuva batendo contra as janelas da livraria criava uma melodia tranquilizante. Laura estava concentrada em seu trabalho, revisando o manuscrito de Rafael com um olhar minucioso. Ele escrevia de maneira intensa, e cada linha parecia carregar uma carga emocional tão densa que era quase palpável.
De repente, a porta da livraria se abriu, e Rafael entrou, sacudindo um guarda-chuva encharcado. Ele parecia desconfortável, como se aquele ambiente pequeno e acolhedor fosse um território estranho para ele.
“Bom dia, Laura,” disse ele, com um aceno contido.
Laura esboçou um sorriso leve. “Bom dia. Decidiu visitar mais cedo hoje?”
Ele se aproximou do balcão, observando-a por um instante antes de responder. “Estava curioso para saber o que achou do meu livro. A opinião de uma editora é sempre... esclarecedora.”
Ela segurou a pilha de páginas que havia lido até agora e suspirou. “Para ser honesta, é uma leitura intensa. Seus personagens parecem lutar contra sombras próprias, como se estivessem constantemente em guerra com o passado.”
Rafael inclinou a cabeça, surpreso com a precisão da análise. “Você captou bem a essência. Acho que todos nós carregamos algumas sombras, não?”
Laura desviou o olhar. Ele estava certo, mas ela não estava disposta a expor suas próprias feridas, pelo menos não para alguém que acabara de conhecer.
“Talvez. Mas nem todos conseguimos escrever sobre elas,” respondeu ela, mudando de assunto. “Posso te oferecer um café? Costuma ajudar nas discussões literárias.”
Ele aceitou, e logo os dois estavam sentados em uma das mesas da livraria, com duas xícaras fumegantes entre eles. Rafael olhava ao redor, absorvendo o ambiente, enquanto Laura tentava decifrar aquele homem enigmático que aparecera tão de repente em sua vida.
“Essa cidade é... peculiar,” disse ele, rompendo o silêncio. “Não é o tipo de lugar que eu frequentaria normalmente.”
“Então, por que escolheu Porto das Gaivotas para seu refúgio?” perguntou Laura, curiosa.
Rafael hesitou, e por um instante, parecia que estava prestes a confessar algo importante. Mas, então, ele apenas deu de ombros. “Talvez eu estivesse precisando de um lugar onde ninguém me conhecesse. Onde eu pudesse me reconectar com algo que perdi ao longo do caminho.”
Laura o observou em silêncio, sentindo haver muito mais por trás daquelas palavras. Mas, em simultâneo, ela entendia a necessidade de distância. Afinal, não eram apenas as palavras de Rafael que escondiam mistérios; ela mesma tinha os seus próprios segredos guardados a sete chaves.
Depois de um longo silêncio, Laura respirou fundo e resolveu arriscar uma pergunta mais direta.
“E... você encontrou o que veio buscar?”
Rafael desviou o olhar, fixando-o nas gotas de chuva escorrendo pela janela, como se elas pudessem lhe trazer alguma resposta.
“Não sei,” respondeu, com a voz baixa. “Às vezes, penso que o que estou procurando está perdido há tanto tempo que talvez nem exista mais.”
Laura assentiu, compreendendo mais do que gostaria de admitir. Sentia que ele era alguém em busca de algo indefinível, como ela mesma. Rafael pegou a xícara de café e a girou lentamente entre as mãos.
“Mas você parece se identificar com isso,” ele disse, como se a tivesse lido com a mesma profundidade com que escrevia. “De alguma forma, essa cidade... esse silêncio... combina com você.”
Laura sorriu, sem dar mais explicações. Rafael não precisava saber que ela havia escolhido Porto das Gaivotas justamente para se esconder das feridas do passado, da mesma forma que ele buscava algo que mal sabia nomear.
Por fim, Rafael pousou a xícara na mesa e a olhou de um jeito quase inquisitivo. “E você? Por que escolheu ser editora?”
Ela hesitou, mas respondeu: “Porque é mais fácil ajudar os outros a contar suas histórias do que encarar as nossas.”
Os dois se encararam em silêncio, e, por um momento, parecia que todos os mistérios que eles tentavam esconder pairavam entre eles, suspensos, esperando para serem desvendados.
A chuva lá fora parecia mais forte, como se o mundo lá fora fosse uma extensão de seus próprios conflitos internos. E ali, naquela pequena livraria, sob a luz fraca e o cheiro de café, ambos sabiam que, de alguma forma, o que procuravam talvez estivesse mais próximo do que imaginavam.
Os dias seguintes se tornaram uma espécie de ritual silencioso para Laura e Rafael. Ele aparecia pontualmente na livraria logo após o almoço, e sempre encontrava um lugar próximo à mesa onde Laura trabalhava, com um livro ou um bloco de anotações nas mãos. A cada visita, eles trocavam poucas palavras, mas parecia haver uma comunicação implícita, uma compreensão que ia além das conversas triviais.
Naquela tarde, Laura estava organizando algumas prateleiras quando Rafael se aproximou.
“Está com cara de quem precisa de uma pausa,” ele comentou, apoiando-se no balcão.
Laura sorriu, deixando escapar um suspiro cansado. “Longo dia. Acho que um café seria bem-vindo.”
Sem esperar uma resposta, Rafael foi até a máquina de café e, minutos depois, voltou com duas xícaras fumegantes. Entregou uma para ela e sentou-se em uma das poltronas, indicando para que ela fizesse o mesmo. Laura hesitou, mas acabou cedendo.
“Não posso deixar de notar que você passa bastante tempo aqui,” disse ela, tentando soar casual.
Ele deu de ombros, observando-a por cima da borda da xícara. “Gosto daqui. É calmo, e você é... uma boa companhia.”
Laura sentiu um leve rubor subir às bochechas, mas disfarçou, tomando um gole do café. O silêncio confortável se instalou entre eles, até que Rafael começou a falar sobre sua infância, algo que pegou Laura de surpresa.
“Eu costumava vir a uma cidade parecida com essa quando era criança. Minha família não tinha muito dinheiro, mas conseguíamos alugar uma pequena casa de praia por alguns dias no verão,” ele contou, a voz nostálgica. “Talvez seja por isso que Porto das Gaivotas me atraiu. É como voltar no tempo, de alguma forma.”
Laura sorriu, imaginando-o como um menino, correndo pela areia com o mesmo olhar determinado que ele tinha agora. “Parece uma boa lembrança.”
Rafael assentiu, mas seu olhar tornou-se distante. “É, mas as coisas mudaram rápido. Cresci em uma família que tinha muitas expectativas... Isso me levou à escrita, mas também me afastou de muita gente.”
Ela sentiu o peso em suas palavras e, pela primeira vez, percebeu que talvez ele também carregasse uma carga que tentava esconder. Tentando desviar o foco de si mesma, Laura resolveu falar um pouco de sua própria vida.
“Sabe, eu vim parar aqui há alguns anos. Queria recomeçar. Porto das Gaivotas parecia um bom lugar para alguém que... prefere o silêncio.”
Rafael a olhou com interesse. “Recomeçar? Fugindo de algo ou procurando algo?”
Laura riu, mas sem alegria. “Fugindo, talvez. Ou apenas tentando deixar certas coisas para trás.”
Ele assentiu, como se entendesse exatamente o que ela queria dizer. “E encontrou o que procurava?”
Ela olhou para ele, os olhos refletindo uma mistura de nostalgia e ceticismo. “Paz, talvez. Mas não posso dizer que o vazio foi completamente preenchido.”
Rafael permaneceu em silêncio por um momento, analisando-a. “Às vezes, o que preenche esse vazio é justamente aquilo que evitamos.”
Aquelas palavras a atingiram de forma inesperada. Era como se ele estivesse lendo seus pensamentos mais profundos, algo que ela tentava esconder há muito tempo. A intensidade daquele momento a assustou, mas, ao mesmo tempo, despertou uma curiosidade sobre aquele homem à sua frente, alguém que parecia entender a dor que ela escondia.
Eles ficaram ali, em silêncio, absorvendo a presença um do outro. Laura sabia que estava se aproximando de Rafael, mesmo que relutasse em admitir. Havia algo nele que a atraía, uma honestidade que contrastava com a imagem pública que ele tinha. E essa vulnerabilidade era exatamente o que a fazia se sentir segura ao lado dele, uma segurança que ela não sentia há muito tempo.
Quando a noite começou a cair, Rafael se levantou. “Bem, acho que já tomei seu tempo demais por hoje. Mas... talvez possamos repetir isso amanhã?”
Laura assentiu, surpresa com o quanto ansiava por mais encontros como aquele. “Claro. Estarei por aqui.”
Ele sorriu antes de sair, e ela ficou observando-o desaparecer pela porta, deixando-a sozinha com seus pensamentos.
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