A chuva caía implacável naquela noite, como se o céu chorasse a dor que André mal conseguia expressar. O som das gotas batendo contra o vidro do hospital ecoava em seus ouvidos enquanto ele encarava o corredor à sua frente, as pernas trêmulas e os passos hesitantes. Cada movimento era um esforço descomunal, como se um peso invisível puxasse seus ombros para baixo. Sentia-se sufocado pelo cheiro forte de álcool e pelos sussurros das vozes ao redor, que se mesclavam num turbilhão confuso. Tudo parecia distante, como se ele estivesse assistindo à própria vida de fora.
Na entrada da sala de emergência, um médico surgiu, o rosto marcado por olheiras profundas e uma expressão que misturava cansaço e compaixão. André leu o desfecho antes mesmo que as palavras fossem ditas, mas isso não amortizou o impacto. Ele já havia ouvido as frases de consolo em filmes e séries, mas nada o preparou para aquele momento. O médico suspirou, como se o fardo fosse pesado demais até para ele.
— Sinto muito, ela não resistiu.
O mundo parou. As palavras ecoaram dentro dele, ressoando com uma crueldade ensurdecedora. Tudo ao redor ficou em silêncio absoluto, como se a própria existência tivesse sido drenada de qualquer som. Por um instante, ele se recusou a acreditar. Talvez houvesse um erro, um engano qualquer. Era impossível que sua mãe, a mulher que ele sempre julgara ser indestrutível, não estivesse mais ali.
As lágrimas não vieram. Em vez disso, o vazio. Um buraco negro se formou em seu peito, sugando cada partícula de esperança que ainda lhe restava. Sentiu o toque gentil de um enfermeiro em seu braço, conduzindo-o para fora. Os passos de André ecoavam como marteladas em sua mente. A porta do hospital ficou para trás, mas a sensação de que ele nunca mais sairia daquele pesadelo permaneceu.
De volta ao apartamento vazio, o silêncio parecia um grito incessante. As lembranças surgiam como vultos assombrando cada cômodo: o cheiro do café que ela fazia todas as manhãs, o riso que preenchia a sala nas noites de domingo. Ele se afundou no sofá, as mãos cobrindo o rosto. Queria gritar, mas a voz não saía. Queria correr, mas não havia para onde ir. Durante horas, ficou ali, prisioneiro da própria dor.
Dias se arrastaram como anos. André tentava seguir com a vida, mas cada movimento parecia forçado, como se estivesse vivendo em um teatro onde as falas e gestos não faziam sentido. Quando achava que não poderia se sentir mais perdido, a traição de Isah caiu sobre ele como um novo golpe, cruel e devastador. Encontrou as mensagens no celular dela por acaso, um descuido que revelou uma realidade que ele não queria encarar. A traição não era apenas um rompimento de confiança; era a derradeira prova de que ele estava sozinho.
Desmoronou. Sentado no chão do quarto que antes compartilhava com ela, seus olhos fixaram-se na parede. Ele queria gritar perguntas que jamais seriam respondidas: "Por quê? O que eu fiz de errado?" Mas não havia resposta que pudesse trazer alívio. Tudo que ele enxergava era o reflexo de suas falhas, reais ou imaginadas.
Os dias se misturaram com as noites. Ele começou a evitar amigos, ignorava ligações, recusava-se a sair de casa. André tornou-se uma sombra, alguém que ninguém parecia alcançar. Seus pensamentos eram um redemoinho de insegurança, raiva, saudade e arrependimento. Quando se olhava no espelho, via um rosto pálido, olheiras fundas e olhos sem brilho. Quem era ele agora? Sentia que nem mesmo isso sabia responder.
Em meio a esse caos interno, ele teve a primeira crise de pânico. Sozinho no meio da madrugada, seu peito apertou de tal forma que pensou estar morrendo. Faltava-lhe ar, as mãos tremiam, e o coração batia descontroladamente. Foi ali, naquele momento de absoluta fragilidade, que algo dentro dele cedeu. Não podia continuar assim, precisava encontrar uma saída — ou ao menos tentar..
O dia arrastava-se como todos os outros. O relógio na parede marcava as horas com uma lentidão cruel, enquanto André permanecia imóvel no sofá da sala, encarando o vazio. A casa estava mergulhada em silêncio, um silêncio tão pesado que parecia gritar.
Ele segurava o porta-retratos da mãe entre as mãos, os dedos deslizando pelo vidro como se pudessem alcançar o passado. Era uma foto de um aniversário, um momento de felicidade que parecia pertencer a outra vida. Os olhos dele estavam marejados, mas ele se recusava a chorar. Choros já não vinham mais com a mesma frequência, apenas a dor constante e insuportável.
Foi então que o som da campainha quebrou a monotonia. Ele franziu o cenho, surpreso. Não esperava ninguém e, sinceramente, preferia que continuasse assim. Após um momento de hesitação, levantou-se com passos pesados. Quando abriu a porta, sentiu o coração dar um salto desconfortável.
Lá estava Geovana.
Ela parecia diferente, vulnerável, como se carregasse o peso do mundo nos ombros. O cabelo preso em um coque apressado, o rosto marcado por uma expressão que misturava arrependimento e esperança.
— André... — começou ela, a voz trêmula.
Ele permaneceu imóvel, a mão ainda na maçaneta. A visão dela trouxe uma avalanche de emoções: raiva, tristeza, frustração... e uma pontada de algo que ele não queria admitir, talvez uma saudade reprimida.
— O que você está fazendo aqui? — perguntou, a voz baixa e seca.
Geovana deu um passo à frente, tentando diminuir a distância entre eles.
— Eu precisava te ver. Precisava falar com você.
Ele soltou um riso curto, sem humor.
— Falar o quê, Geovana? Já não disse tudo o que precisava quando me traiu?
Ela pareceu encolher sob o peso das palavras dele, mas insistiu.
— Eu cometi um erro... um erro enorme. E eu sinto tanto. Você não faz ideia do quanto eu me arrependo.
André estreitou os olhos, a mandíbula tensionada.
— Arrependimento? Você só está arrependida porque foi pega. Se eu não tivesse descoberto, teria continuado com ele, não é?
As palavras saíram afiadas como lâminas, e ele sabia disso. Geovana fechou os olhos por um momento, respirando fundo como se tentasse conter as lágrimas.
— Não é assim... — sussurrou ela. — Eu estava perdida, confusa. Eu errei, mas nunca deixei de te amar.
O coração de André apertou, mas ele não deixou transparecer. A última coisa que queria era parecer fraco diante dela.
— Amor? — rebateu, com uma ironia amarga. — Se isso é amor, prefiro nunca mais sentir.
Ela avançou outro passo, os olhos cheios de desespero.
— Por favor, André. Me dê uma chance. Eu posso mudar. Eu posso consertar tudo isso.
Ele deu um passo atrás, aumentando novamente a distância entre eles.
— Não há conserto, Geovana. Não depois do que você fez. Você destruiu a confiança que tínhamos, e sem confiança não há nada.
Geovana começou a chorar, as lágrimas escorrendo pelo rosto.
— Eu sei que te magoei, mas ainda acredito que podemos ser felizes juntos.
André balançou a cabeça, sentindo o peso de cada palavra.
— Eu não posso ser feliz com alguém que me destruiu por dentro. Sai da minha casa, Geovana. Acabou.
Ela hesitou, como se quisesse dizer algo mais, mas a firmeza na voz dele a impediu. Com um último olhar carregado de arrependimento, virou-se e foi embora.
Quando André fechou a porta, apoiou-se nela, sentindo como se toda a energia tivesse sido sugada de seu corpo. A conversa havia terminado, mas a dor continuava lá, como uma ferida que ele sabia que levaria muito tempo para cicatrizar.
Dentro da casa, o silêncio voltou, agora ainda mais opressor.
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O silêncio parecia mais pesado do que nunca. Após a saída de Geovana, André permaneceu encostado na porta por alguns minutos, os olhos fixos no chão. A mente dele era um turbilhão de pensamentos, misturando lembranças de momentos felizes com a amargura do presente. Ele não conseguia decidir o que era pior: o arrependimento que ela havia trazido ou a saudade que ele lutava tanto para ignorar.
André se afastou da porta, com os passos lentos e inseguros. Voltou para o sofá, onde o porta-retratos ainda estava. Pegou a foto novamente, como se procurasse ali alguma resposta para os conflitos que o atormentavam.
— O que eu faço, mãe? — murmurou, a voz rouca e quase inaudível.
Era a primeira vez em meses que ele falava algo em voz alta. Desde a perda dela, era como se as palavras não encontrassem mais um propósito. Agora, a visita de Geovana parecia ter trazido à tona emoções que ele preferia manter enterradas.
A noite chegou, mas o sono não. André se mexia na cama, incapaz de encontrar paz. As palavras de Geovana ecoavam na mente dele como um disco arranhado: "Eu ainda acredito que podemos ser felizes juntos."
Mas como? Como reconstruir algo que parecia tão destruído? E, mais importante, ele queria tentar?
Decidiu levantar. A casa, mergulhada na escuridão, refletia o vazio que ele sentia por dentro. Foi até a cozinha, abriu a geladeira apenas para fechá-la novamente. Nada parecia capaz de preencher o buraco que havia dentro dele.
Pegou o celular sobre a mesa. Tinha mensagens de amigos que ele havia ignorado nos últimos dias, mas nenhuma delas parecia importante. Sua mente estava presa em Geovana e na traição que destruíra o pouco de estabilidade emocional que ele ainda tinha após a morte da mãe.
Antes que percebesse, ele digitou o número dela. Não clicou em ligar, mas ficou encarando a tela por minutos. A dúvida consumia cada fibra do seu ser: ela realmente merecia outra chance? E ele, merecia passar por tudo aquilo de novo?
Sem coragem de ligar, deixou o celular de lado. Era mais fácil deixar o passado onde estava, mesmo que isso significasse carregar as feridas por mais tempo.
Pela janela, os primeiros raios de sol começaram a surgir. Mais uma noite sem dormir, mais um dia para enfrentar as próprias sombras.
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Capítulo 4 - Laços Inesperados
Naquela manhã, André decidiu sair de casa. A sensação de claustrofobia, alimentada pela visita de Geovana, parecia sufocá-lo. Pegou um casaco e foi para o parque que sua mãe costumava frequentar. Era um lugar calmo, com árvores imponentes e trilhas cercadas por flores. Lá, ele sempre encontrava um pouco de paz.
Sentou-se em um banco afastado, observando as pessoas que passavam: crianças correndo, casais conversando, idosos caminhando lado a lado. Parecia um contraste cruel com a solidão que ele sentia.
— André? É você? — chamou uma voz feminina.
Ele levantou os olhos e viu uma mulher que parecia familiar, mas ele não conseguia lembrar de onde. Ela tinha um sorriso tímido, mas seus olhos revelavam empatia.
— Desculpe, você é...? — perguntou, tentando não soar rude.
— Bianca. Estudamos juntos na faculdade. Não lembra de mim? — Ela riu, cruzando os braços enquanto o observava.
A memória veio como um flash. Bianca era uma colega de turma, conhecida por ser reservada, mas incrivelmente gentil. Ele não a via há anos.
— Claro, Bianca! Quanto tempo. — Ele forçou um sorriso, tentando parecer mais animado do que realmente estava.
— Posso me sentar? — perguntou ela, apontando para o banco.
André assentiu. Ela se sentou ao lado dele, colocando uma bolsa no colo.
— Você parece... diferente. Está tudo bem? — perguntou Bianca, a voz suave.
A pergunta pegou André de surpresa. Ele não esperava que alguém notasse tão rapidamente o peso que carregava. Havia algo no tom dela que o desarmava, como se ela realmente se importasse.
— Digamos que não estou no meu melhor momento. — Ele deu de ombros, tentando minimizar a situação.
Bianca ficou em silêncio por um momento, como se ponderasse se deveria insistir. Então, falou:
— Eu sei como é. Perdi minha irmã há dois anos. Não é a mesma coisa, eu sei, mas... perder alguém que amamos nunca é fácil.
As palavras dela tocaram algo dentro de André. Pela primeira vez em muito tempo, ele sentiu que alguém entendia, pelo menos um pouco, o que ele estava enfrentando.
— Sinto muito pela sua irmã. — Ele olhou para ela, sentindo-se mais à vontade. — Eu perdi minha mãe há alguns meses. E, bem... tem outras coisas também. Parece que tudo desmoronou de uma vez só.
Bianca assentiu, os olhos cheios de compaixão.
— Eu também tive essa sensação. Mas, sabe, às vezes as pessoas certas aparecem quando mais precisamos. Não para resolver nossos problemas, mas para nos lembrar que não estamos sozinhos.
André não respondeu, mas aquelas palavras ficaram ecoando na mente dele. Talvez, só talvez, Bianca pudesse ser o começo de algo novo. Ou, no mínimo, uma companhia para os dias difíceis que ele sabia que ainda enfrentaria.
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