— Vini! Cuidado! Deixa que eu te levo até lá!
Vinícius sente as mãos da sua mãe agarrar o seu braço o puxando para o lado oposto de onde queria ir. Mesmo a contra gosto se deixa ser levado até o outro lado da sala, onde se senta em uma poltrona.
— Querido Vini! Espere um pouquinho aqui que já lhe trago uma vitamina. Sabe que pode pedir o que quiser que eu ou uma das suas irmãs faremos, não precisa se arriscar indo à cozinha sozinho.
— Mãe... Eu só quero...
Dona Dalva corre para cozinha e em poucos minutos volta colocando um copo com vitamina de abacate na sua mão. — Coloca o copo nas mãos do filho. - A sua irmã acabou de fazer! Está uma delícia!
Dona Dalva: — Espere aqui! Vou ajudar a sua irmã a preparar um bolo para você, o seu preferido. De cenoura com cobertura de chocolate! Assim que estiver pronto trago para você. Não precisava ter se levantado tão cedo, pode dormir até mais tarde meu querido.
Dona Dalva lhe dá um beijo na cabeça, aperta seu ombro e sai voltando para a cozinha.
Vinícius ama a sua mãe e irmãs, sabe que elas o amam também. Que por esse motivo o protegem de tudo e mesmo sem querer o sufocam! Sente que é incapaz, não o deixam sequer decidir nada sobre sua própria vida. Como gostaria de dizer as irmãs e a própria mãe que pode se virar sozinho, que não precisa delas, mais é um covarde. Não quer magoar as pessoas que o amam, um pouco demais, mais o amam, por isso o super protegem, o amam, mesmo em excesso.
Vinícius é o filho mais novo de Dona Dalva, está agora com vinte e oito anos, suas irmãs, Valéria e Vanessa já estão casadas, tem cada uma sua família, mais não perdem a oportunidade de estar em casa com eles. Vanessa tem dois filhos, um casal, Valéria tem uma menina. Todos adoram estar na casa do tio Vinícius, uma casa ampla, com jardim enorme, horta, um grande pomar ao fundo e um lago de pesca no final da propriedade contando ainda com um estábulo próximo à casa, campo para seus cavalos e área de reserva. A propriedade é muito agradável, bem localizada, a casa uma bela construção, antiga, com escadas na entrada, janelas e portas largas, cômodos amplos, bem iluminados, os móveis antigos, belos e bem cuidados. Vinícius a comprara com o dinheiro que conseguiu nos anos trabalhados no exército e com o acordo que fez com o seu tio, antigo dono da propriedade, que passara por problemas financeiros a vendendo por um valor bem abaixo do que realmente vale. Na verdade, o acordo foi feito a pedido da sua mãe, que acredita que a vida no campo, um lugar mais calmo é o ideal para Vinícius, não que faça diferença para ele, nos quatro anos que mora ali mal saiu de dentro da casa, a não ser para as reuniões com ex colegas do exército, o que aconteceria em qualquer outro lugar, no estado de espírito em que está. Nesses quatro anos sempre foi assim, rodeado de mulheres que não o deixam dar um passo sem que estejam do seu lado, mesmo casadas e com suas vidas e maridos em outros lugares não se passou uma semana sem uma delas ali com sua mãe. E ainda tem a sua avó, Helena, a menos sufocante, a única pessoa que parece entender um pouco o que ele sente e o deixa mais em paz.
Estava assim perdido nos seus pensamentos, em tudo que aconteceu na sua vida nos últimos cinco anos, quando o ar começa a faltar-lhe, o coração parece que vai explodir, estava apertando com força demais o copo com a vitamina quando ouve os passos de Marcos atrás dele.
— Vinícius? Vamos fazer...
— M- Marcos! — Respira fundo com a voz pesada, estava sem ar, sufocando…
Marcos percebe que o amigo tem uma crise de ansiedade, retira o copo das suas mãos, antes que ele se despedace nos seus dedos, segura firme em uma delas. Vinícius a aperta tanto que chega a doer. Seu corpo todo está tenso, suor frio escorre por seu rosto, os lábios tremem...
Marcos: — Respire devagar! Inspire, respire! Vamos! Está tudo bem!
Alguns segundos depois, que parecem uma eternidade para Vinícius, ele vai melhorando, se acalmando, a respiração aos poucos volta ao normal.
Vinícius: — M-Marcos, preciso sair um pouquinho. Não quero que me vejam assim. Me acompanha até os cavalos?
Marcos sabe o que o amigo tem passado, as crises de ansiedade melhoraram muito, antes via o amigo assim várias vezes ao dia, aprendeu como lidar com isso, o que fazer e como ajudar o amigo a voltar a si.
Marcos, o amigo, mais que isso, o companheiro, estava com Vinícius no exército, e com a compra da propriedade veio para trabalhar com ele. Na verdade é Marcos que cuida de tudo ali. Tornou-se mais que um irmão para Vinícius depois de tudo que passaram. E de seu modo torto é o único que proporciona a ele um pouco de liberdade, de vida.
Marcos pega a bengala próxima à entrada da cozinha onde Vinícius estava indo antes de Dona Dalva o interromper e a coloca nas mãos do amigo.
Vinícius: — Queria um copo de água e acabei com uma vitamina nas mãos. — Respira angustiado.
Marcos: — A sua mãe te ama, quer o melhor para você, acredita que fazendo o que faz, cuida de você.
Vinícius: — Eu nem gosto de abacate!
Marcos solta uma gargalhada e Vinícius ri também, ficando mais relaxado.
Marcos caminha ao lado de Vinícius, o amigo sabe a direção de onde deseja ir, desce sem dificuldade os degraus da escadaria, tateando com sua bengala guia. Marcos sabe que ele já memorizou a quantia de degraus e a largura dos mesmos, não precisa mais o ajudar nisso, sabe que o amigo é capaz de ir sozinho. É o único que não agarra seu braço com força o puxando sem saber para onde quer ir ou o que deseja fazer, Marcos lhe dá instruções curtas, somente quando ele realmente precisa, o deixa errar, e consequentemente acertar, o ouve, o entende.
No estábulo Marcos traz o cavalo Trovão até ele, Vinícius toca seu focinho, acaricia o seu pescoço, sente o cheiro forte do animal, o cheiro que transmite-lhe força, como desejaria montar nas suas costas e sair correndo pela fazenda. Marcos sente a amargura na voz do amigo.
Vinícius: — Daria tudo para o ver meu amigo! — sussurra na orelha de Trovão.
Marcos: — Vou colocar as selas nele e vamos dar uma volta por aí. Você está a precisar de ar fresco.
Vinícius concorda com a cabeça, continua acariciando a cabeça de Trovão. Cavalgar, mesmo que puxado por Marcos lhe trará um pouco de paz de espírito. Se sente um inútil, um covarde por não conseguir dizer a sua família o que sente, o que quer. Talvez porque ele mesmo seja o culpado disso. Sua revolta era tanta no início que se deixava ser tratado como um boneco, um fantoche, apenas obedecia inerte a tudo que lhe diziam ou faziam, deixou que se tornassem responsável por tudo que se referia a ele e sua mãe e irmãs assim fazem até hoje.
Marcos prepara os cavalos, Vinícius sobe com maestreza no animal, era muito bom com cavalos quando jovem, corria pelos campos sem rumo, saltava cercas, corria... sentia o vento na sua face... agora tem que se contentar em ser conduzido pelo amigo. O subir e descer a seguir o ritmo de Trovão o acalma, sentir a brisa no rosto, o cheiro do mato. Os seus outros sentidos estão bem mais aguçados agora, o cheiro das coisas que antes não lhe fazia diferença estão nítidos e através deles consegue se situar. A audição também está bem mais sensível, consegue ouvir muito bem agora.
Vinícius: — Parece que temos visita em casa!
Marcos se vira para ele: — Não ouvi nada! — Olha em direção da casa e vê um carro se aproximando — Na verdade, vejo um carro parando na entrada. Três pessoas descem dele!
Vinícius: — Deve ser algum amigo de mamãe. Faz tempo que ela não faz uma visita a eles. Sei que ela sente falta do lugar onde morava… Marcos, por favor, me leva até o lago? Perto da cachoeira? O barulho da água me faz bem!
Marcos apenas o obedece. Tem uma admiração profunda pelo amigo. Deve-lhe a vida. Sente um aperto no coração ao o ver angustiado, sente como se tivesse um pouco de culpa.
Marcos e Vinícius sempre foram amigos, desde que se entendem por gente. Nasceram no mesmo bairro simples próximo à capital de Belo Horizonte, cresceram juntos, companheiros das mais diversas travessuras, tem a mesma idade, então prestaram serviço militar juntos, se candidataram para servir fora do país e foram convocados...
Vinícius pede a Marcos para o levar até a água, entra nela como está, "Como é bom sentir se vivo", o seu corpo todo reage à água fria da pequena cachoeira, são muito raros os dias que sai com Marcos, não gosta muito de incomodar o amigo, sabe que ele tem muito o que fazer mesmo ele dizendo sempre que está ao dispor dele, que faz qualquer coisa por ele, já lhe disse muitas vezes que não lhe deve nada. Vinícius tenta jogar água no amigo, que ri e o insulta mesmo já estando molhado.
Marcos: — Errou! Precisa de mais atenção! Estou aqui! Do seu lado direito! Vou dar água aos cavalos! A água está gelada!
Vinícius ri: — Então acertei-te não foi?!
Vinícius coloca a cabeça debaixo da água, deseja que a água leve toda a ansiedade, toda a angústia que sente, que limpe o seu corpo, seu coração e sua alma. Era um excelente nadador, apostava com os amigos e sempre chegava em primeiro, depois do ocorrido Marcos nadou com ele algumas vezes, mais não se sente a vontade para ficar-lhe pedindo essas coisas, ter que ser vigiado a todo o momento, sem contar o medo, a primeira vez ficou tenso por muito tempo, nadar na escuridão total lhe amedrontou ao mesmo tempo que lhe fez sentir uma liberdade imensa, só após sentir a segurança do amigo ao seu lado lhe gritando as orientações é que relaxou e aproveitou o momento. Nas outras vezes já nadou livre, sentindo-se senhor do seu corpo.
Marcos: — Vai nadar hoje?
Vinícius: — Não. Saí sem dizer nada em casa, daqui a pouco estarão aqui atrás de mim. Como já te falei não quero que saibam que nado, iriam proibir-me de vir aqui. Que você me trouxesse aqui! Vamos voltar antes que isso aconteça.
Marcos: — Você que manda!
Voltam para casa e como Vinícius previa, encontram a sua irmã desesperada a sua procura.
Vanessa: - Vini!? Onde estava? Mamãe está nervosa! Porque não disse que ia sair com Marcos?
Vinícius: - Me desculpe! Foi sem querer.
Marcos segura as rédeas para ele descer. Vanessa o segura pelo braço.
Vanessa: - Temos visita! Você está molhado! O que houve? Está fedendo a cavalo molhado!
Marcos: - Eu o levei a cachoeira.
Vinícius: - Estava com calor e resolvi me refrescar!
Vanessa: - Não pensou que poderia se resfriar? Vamos! Vou te levar ao quarto para se trocar, as visitas o esperam!
Vinícius: - Sabe que não gosto de visitas! Ficam me tratando como um debiloide.
Vanessa: - Vai gostar dessas, tenho certeza!
Vinícius sente uma pontada no peito, algo na voz da irmã, o que será que estão preparando para ele dessa vez?
Vinícius se deixa ser levado pela irmã que vai tagarelando até o deixar na porta do quarto.
Vanessa: — Já deixei a roupa que você deve usar sobre a sua cama. Te esperamos na sala. Não demore!
Vinícius para em frente a porta, ouve as conversas na sala, além da sua família há vozes de um senhor, uma senhora e com certeza uma jovem. As mulheres riam, falavam sem parar, ouve Vanessa chegando e o que ela diz o deixa irritado.
Vanessa: — Mirella, minha querida! Em poucos minutos Vinícius nos fará companhia. Você verá como ele é um homem bonito e que a cegueira não fará tanta diferença.
Dona Dalva: — Não é porque ele é meu filho, Vinícius é muito gentil, honesto e é dono de tudo que viu por aqui.
Mirella: - Vanessa me falou tanto dele que resolvi o conhecer!
Vinícius compreende na hora o que a sua família quer. Será que pensam que ele não é capaz de escolher uma garota para namorar ou até se casar um dia? O quê pensam que ele é? O que se tornou?
Caminha até a sua cama, se senta, passa as mãos nas roupas arrumadas pela irmã as joga no chão. Respira fundo, tenta se controlar, não quer outra crise, uma no dia já basta, vai até o banheiro, liga o chuveiro, entra nele, a água quente relaxa o seu corpo e a sua mente. Água, sempre o acalma. Não pode fazer o que desejou no primeiro momento. Não quer magoar a sua mãe, nem agir como um doido diante das visitas. O seu senso de dever como filho, como único homem da família, ou até mesmo a covardia o impedem de fazer o que tem vontade. Sai do banho, se seca com toda calma do mundo, sem pressa. Coloca as roupas que escolhe, e tem certeza que ficou muito bem, penteia os cabelos que estão precisando de um corte, passa uma loção, respira fundo e com ajuda da sua bengala guia caminha para sala.
As vozes cessam assim que bota o pé no local. Sente o clima pesado. Sua mãe quebra o silêncio.
Dona Dalva: — Filho, até que apareceu enfim . Estávamos preocupados…
Vinícius: — Mãe, sabe como é difícil para mim. Colocar uma roupa, leva um tempo bem maior do que gostaria... — mente.
Vanessa o agarra pelo braço: — Vem aqui Vini, quero apresentar-te a minha amiga Mirella, o seu pai Vítor e a sua mãe Mara…
Vanessa o encaminha até cada um deles quelhes apertam as mãos, a sua irmã o coloca sentado ao lado de Mirella.
Vinícius: — E do que conversavam?
Vitor picareia: — Eu... queria saber...Como um jovem assim...
Vinícius: — Como é ser cego? É como fica quando a energia acaba durante a noite. Porém, não há velas, isqueiros ou lanternas que resolva. Nem mesmo o amanhecer do dia seguinte…
Vitor: — E como se vira com tudo?
Vinícius: — Tenho a minha mãe, as minhas irmãs para me guiarem e fazer tudo por mim. — diz com ironia.
Dona Dalva chama Mara e Vitor a cozinha, inventa de mostrar algo a eles. Vanessa diz que vai ver se os seus filhos já estão a chegar da escola e deixa Vinícius a sós com Mirella. Ela parece não estar muito confortável no sofá ao seu lado, se mexe muito, ele percebe que ela o está analisando.
Mirella: — Bem... Vinícius... A sua irmã falou-me muito de você.
Vinícius vira a sua cabeça na direção dela, o seu perfume é forte, a sua voz tem um tom que não lhe agrada: — E o que ela disse?
Mirella: — Só elogios. Você não parece ser cego. Vou dizer-te uma coisa, estava com medo de te ver, mais…
Vinícius: —Mais? Não sou tão feio ou deformado? Sou?!
Mirella: — Quero que saiba Vinícius, que entendo como é e não me importo, vim te conhecer porque quis. — Coloca a sua mão sobre a perna de Vinícius. — A sua casa é muito bonita! Luxuosa… Não imaginei que era assim. Vanessa disse-me que recebe do exército?!
Vinícius entende no que ela está interessada: — Quando vim para está casa já era cego, então não sei se é "luxuosa", e sim recebo do exército.
Vinícius torce para voltarem logo a sala, retira a mão de Mirella da sua perna e se levanta, indo em direção da cozinha.
Mirella o olha espantada: — Você não parece ser cego. Anda direitinho.
Vinícius para e se vira para ela: — E como imaginou que eu andasse? De quatro? Sou cego, não burro ou outro animal qualquer.
Mirella: — Me desculpe não é o que quis dizer! — Diz com arrependimento — Quer que eu o leve a cozinha? — Se levanta e agarra o seu braço.
Vinícius ia responder quando a sua mãe vem com todos da cozinha, Mirella o leva de volta ao sofá. Uma chuva começa a cair, e as chuvas nessa época são intensas e duradouras.
Vanessa: — Mirella, querida, vocês não se importam de passar a noite aqui não é?! Essa chuva não vai passar tão logo não! E amanhã é domingo!
Vitor: — Com certeza podemos ficar. Gostaria muito de conhecer o resto da propriedade e amanhã teremos mais tempo.
Mirella: — Será um prazer! — aperta o braço de Vinícius — Se não for atrapalhar!
Vinícius não tem opinião, não lhe perguntam se quer hospedes em sua casa. Sua própria casa.
Dona Dalva coloca o bolo na mesa do centro, serve um café a todos. "E disse que o bolo era para ele" pensa Vinícius. "O bolo e a armadilha."
A conversa entre eles discorre sempre ao redor da casa, do que possuem, e de como Vinícius não dá trabalho. Como se ele fosse um animalzinho de estimação, dócil e obediente com a necessidade de se acasalar. Vinícius raramente participa das conversas respondendo com monossilabas ou concordando com a cabeça. De vez em quando sente a mão de Mirella em sua perna a apertando disfarçadamente.
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