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Jacira: No Coração do Mundo

(1) "O Encontro"

Jacira

Enquanto avanço pela floresta, sinto o toque da folhagem úmida sob meus pés descalços. O aroma fresco do musgo invade minhas narinas, enquanto o canto dos pássaros ecoa ao meu redor, criando uma sinfonia natural que parece vibrar com a vida da mata. Uma brisa fria acaricia meu rosto, fazendo meus longos cabelos dançarem suavemente, como se a própria floresta estivesse me recebendo em seu abraço.

O céu acima está encoberto, e nuvens escuras se acumulam no horizonte, prenunciando a tempestade que se aproxima. Ao olhar para trás, vejo a professora Paula, profundamente concentrada em suas anotações, examinando uma planta que descobrira entre as raízes. Sorrio para sua dedicação, mas a inquietude começa a me incomodar.

Então, antes que eu possa chamar a professora para voltarmos à aldeia, ouço passos, galhos se quebrando sob o peso de algo, ou alguém. Meu coração dispara, a adrenalina toma conta do meu corpo.

Sem hesitar, retiro meu arco das costas e me escondo atrás de uma árvore, as folhas sussurrando em torno de mim. Quando o intruso que percebo ser um homem se aproxima, aponto minha flecha diretamente para sua cabeça.

— Fique onde está, seu demônio! — digo, fixando meus olhos nos dele.

Ele para, e a intensidade de seu olhar castanho parece penetrar em mim. Um arrepio percorre minha espinha, mas não me deixo abalar. A tensão no ar é palpável.

— O que quer aqui? — questiono, a voz firme, embora um tremor leve quase escape.

O homem não responde. Apenas me observa, como se estivesse avaliando o perigo que represento. A impaciência começa a me consumir e, num grito mais alto, exijo:

— Diga! O que quer aqui?

Nesse instante, ouço os passos apressados da professora Paula, que chega correndo e rapidamente se coloca entre nós.

— Calma, Jacira. Está tudo bem. Abaixe sua flecha — ela diz, sua voz suave tentando trazer tranquilidade à situação.

Relutante, sigo seu conselho e baixo o arco, mas meus olhos permanecem fixos no intruso, enquanto ele não desvia seu olhar de mim. Então, ele se apresenta, a voz calma, quase despretensiosa:

— Eu sou Lucas Salazar, tenho uma produtora de documentários. Vim fazer um documentário aqui na Amazônia. Entrei por uma trilha e acabei me perdendo.

A indignação me toma.

— Encontre o caminho novamente e vá embora, demônio! — respondo, a fúria se acumulando em cada sílaba.

Ele franze o cenho, avaliando-me com uma expressão de confusão e desdém.

— Eu não sou um demônio.

Aproximo-me dele, o olhar ardendo de raiva.

— Pois para mim, você é! São demônios, destróem tudo que tocam!

Sinto a verdade das minhas palavras reverberando, como um eco da dor que carrego. A floresta ao nosso redor parece silenciar, esperando o que virá a seguir.

Lucas parece surpreso com minha declaração. Ele hesita, como se estivesse tentando entender a força das minhas palavras. O silêncio entre nós se tornando pesado.

— Olha, eu entendo que você possa me ver assim — ele começa, a voz mais suave agora, quase implorando por compreensão. — Mas não estou aqui para fazer mal a ninguém. Estou apenas tentando documentar a beleza da Amazônia.

— Beleza? — retruco, meu tom ácido. — Para vocês, beleza é sinônimo de exploração. Vêm, tiram o que querem e nos deixam as sobras!

A expressão dele se transforma em um misto de confusão e empatia. Sinto um pequeno lampejo de dúvida em sua postura. Ele parece mais vulnerável.

— Eu não quero explorar nada — insiste ele. — Quero contar a história de vocês. Mostrar ao mundo o que está acontecendo aqui.

Minhas emoções ficam à flor da pele. A ideia de expor nossa luta para quem só se importa com números e cliques é desgastante. Sinto a presença de Paula ao meu lado, sua mão suave em meu braço, tentando me acalmar.

— Jacira, talvez devêssemos ouvir o que ele tem a dizer — sugere ela, e eu percebo o olhar de apoio em seu rosto.

Então, um pouco nervosa, digo:

— Não, Paula. Eu não quero que ninguém saiba a localização da nossa aldeia. O Pai Pajé quer assim, e eu também. Não queremos intrusos entre nós. Meu povo já sofreu demais.

Paula me olha com uma expressão preocupada, segurando minha mão com firmeza, ao dizer:

— Ei, se lembra quando eu também estava perdida e acabei indo parar na sua aldeia? Vocês me acolheram, mostraram o que significa compaixão. Dê uma chance a ele. E, além disso, vem chuva por aí, a noite vai cair. Será perigoso para ele ficar aqui.

Suspiro profundamente, suas palavras reverberando em minha mente. As lembranças dos ataques que nossa aldeia sofreu, da dor e do medo que vivenciamos, me invadem. A fúria queima dentro de mim, mas consigo controlá-la, pelo menos por enquanto.

Aproximo-me de Lucas, olhando em seus olhos profundamente.

— Está bem. Você virá até minha aldeia. Mas ouça bem — digo, a voz firme e gelada —, se eu sequer suspeitar de suas intenções, arrancarei seu coração com minhas próprias mãos. Estou falando muito sério, então não venha com graça.

Lucas me observa, a expressão inalterada, mas consigo ver um brilho de compreensão em seu olhar.

— Eu entendi, Jacira. Prometo que não irei desapontá-la.

O céu se torna mais escuro, como se refletisse a tempestade que se aproxima não só do lado de fora, mas dentro de mim também. A floresta parece vibrar com a energia da nossa tensão.

— Vamos — ordeno, movendo-me para a frente.

O caminho se estreita, e os sons da floresta se misturam ao barulho da chuva que começa a cair, gotas grossas batendo contra as folhas e formando pequenos riachos no chão lamacento.

Enquanto caminhamos, a chuva escorre por meus braços e cabelos, mas sinto que minha mente está ainda mais agitada. O peso da responsabilidade e da desconfiança se instala em mim.

— Jacira, você não precisa ter medo — Paula diz ao meu lado, tentando me tranquilizar. — Dê uma chance a ele. Ele pode nos ajudar.

— Como você pode ter certeza? — respondo, a frustração escorrendo por minhas palavras. — Ele é um homem branco. Para ele, nós somos apenas uma história, uma curiosidade.

Lucas, que escuta a conversa, interrompe:

— Eu não estou aqui para explorar ou fazer um espetáculo. Quero entender e aprender.

Sinto um fio de vulnerabilidade em sua voz, mas a desconfiança ainda me prende. A ideia de abrir nosso lar para um estranho me faz querer recuar.

— Você diz isso agora, mas já vi muitos como você. Vêm, tiram fotos, fazem promessas e depois vão embora — digo, o tom ainda desafiador.

Ele, encara-me com uma sinceridade que me faz hesitar.

— Se eu fizer isso, pode continuar me chamando de demônio. Mas se eu conseguir trazer a história do seu povo ao mundo, talvez possa fazer diferença.

O trovão ecoa, e a chuva se transforma em um manto espesso que nos envolve. Olho para Paula, e vejo que ela acredita que Lucas pode ser uma ponte entre nossos mundos.

— Ele precisa de um guia, Jacira. Se deixarmos que o medo nos controle, perderemos oportunidades — sugere ela, tentando abrir uma brecha em minha resistência.

As palavras de Paula me afetam mais do que eu gostaria de admitir. Sinto um pequeno lampejo de esperança misturado com a minha desconfiança.

— Está bem — digo, minha voz mais suave agora, mas ainda firme. — Mas se você tentar algo, não hesitarei em usar essa flecha.

Lucas acena, aliviado, e continuamos, a floresta mudando à medida que a chuva se intensifica. As sombras se alongam, e o som da água se torna um eco de nossa luta interna.

(...)

Finalmente, chegamos à clareira, onde as luzes da aldeia começam a brilhar entre as árvores, tremeluzindo como estrelas em meio à escuridão. O cheiro de fumaça e terra molhada invade minhas narinas, lembrando-me de que estamos em casa.

— Aqui estamos — anuncio, e Lucas observa com um misto de respeito e admiração.

— É linda — ele diz, a sinceridade evidente em sua voz.

— E cheia de histórias, muitas delas dolorosas — respondo, lembrando os sacrifícios que meu povo fez.

Conforme entramos na aldeia, sinto que a tempestade não é apenas externa, mas também interna. O desafio de integrar Lucas em nosso mundo começa agora. Espero que, ao fazê-lo, não estejamos apenas abrindo as portas para um intruso, mas sim a oportunidade de contar nossa história de forma verdadeira e autêntica. O medo e a esperança se entrelaçam, enquanto nos dirigimos para o centro, prontos para enfrentar o que está por vir.

(2) "Ponte Entre Mundos"

Lucas

À medida que adentramos a aldeia, a chuva cai fortemente sobre nós, transformando a terra em um solo macio que suga meus pés, tornando meu tênis pesado e ensopado. O som da água batendo no sapê das casas ecoa ao meu redor, e o aroma da terra molhada mistura-se ao cheiro das folhas verdes, criando uma sensação intensa.

Ao decidir vir pessoalmente para a Amazônia, em vez de enviar um funcionário da minha produtora, busquei com isso, uma verdadeira imersão nas histórias e vivências que este lugar tem a oferecer. E, para minha surpresa, logo me vi na mira de Jacira, uma indígena cuja beleza me deixou paralisado no instante em que a vi.

Com a sua flecha apontada para minha cabeça, meu coração disparou, um tambor frenético de adrenalina e assombro. Seu olhar intenso me desafiava, mas também despertava algo em mim, uma curiosidade profunda.

— Chegamos à tenda do Pai Pajé — diz Jacira, me tirando dos pensamentos que se agitavam em minha mente.

Paula me lança um olhar significativo e diz:

— Espere aqui, Lucas. Eu e Jacira vamos falar com ele primeiro.

Assinto, sabendo que tudo depende da aceitação do pajé. Enquanto aguardo, minha mente vagueia para minha própria vida. Cresci em um orfanato, e logo após sair, encontrei na narrativa meu propósito. Dediquei-me a contar histórias que fizessem as pessoas se sentirem como se estivessem vivenciando cada momento que descrevo.

E aqui estou eu hoje, CEO de uma produtora de documentários, fazendo o que mais amo. Um misto de ansiedade e esperança se instala em mim, enquanto observo a chuva lavando a aldeia, como se estivesse purificando o espaço para algo novo.

Após alguns momentos, Jacira aparece na entrada da tenda, sua figura forte e confiante destacando-se na penumbra.

— Pai Pajé, quer ver você — diz, e sinto que minha respiração se acelera.

Com um gesto, ela me convida a entrar. Adentro a tenda, sentindo a mudança na temperatura do ar. O interior é acolhedor, com o cheiro de ervas e o calor de uma fogueira que crepita ao fundo. Meus olhos se movem pela tenda, absorvendo os detalhes: os desenhos nas paredes de palha, os instrumentos de rituais pendurados, cada um contando sua própria história.

À frente, vejo um homem idoso, com um enorme cocar adornando sua cabeça. Ele segura um cajado em mãos, e seu olhar sério parece penetrar minha alma.

— Aproxime-se mais, homem branco — diz ele, a voz grave e imponente, como um trovão distante.

Sinto um frio na espinha, mas dou um passo à frente, forçando-me a manter a compostura. O respeito que tenho por ele é imenso, e, ao mesmo tempo, uma onda de insegurança surge. O que ele pensará de mim? Estarei pronto para a responsabilidade que é contar a história do seu povo?

— Sou Lucas Salazar — digo, tentando transmitir confiança. — Vim para ouvir e contar a história da sua aldeia, se o senhor permitir.

O pajé me observa atentamente, seus olhos refletindo uma sabedoria profunda e uma desconfiança sutil.

— Contar histórias não é apenas uma arte — ele responde, pausadamente. — É um ato de responsabilidade. As palavras têm poder. O que você fará com esse poder?

Suas palavras ressoam em mim, fazendo meu coração acelerar. Sinto a importância do que estou prestes a fazer.

— Quero usar esse poder para mostrar ao mundo a beleza e a luta do seu povo. Para que as pessoas entendam e respeitem o que está em jogo — respondo, com a sinceridade nascendo em minha voz.

O pajé permanece em silêncio, a intensidade de seu olhar fazendo com que eu me pergunte se estou realmente preparado para a jornada que se apresenta diante de mim.

Enquanto isso, Jacira permanece na porta, observando com um misto de curiosidade e cautela. Sinto que, neste momento, o futuro de nossa colaboração está nas mãos do pajé, e a conexão que estamos formando poderá ser tanto um caminho para a verdade quanto uma ponte entre nossos mundos.

(3) "Aceitação"

Jacira

Enquanto Lucas conversa com meu pai, o Pajé, sinto a tensão pairar no ar. A professora Paula se aproxima de mim, entrelaçando os braços nos meus, e sussurra:

— Acha que seu pai vai aceitar ele aqui? Contando a história de vocês?

Suspiro profundamente, refletindo sobre a situação.

— Eu não sei. Às vezes é difícil compreender meu pai.

Ela assente, seu olhar preocupado me conforta um pouco. Nesse momento, meu pai me chama:

— Jacira, se aproxime.

Sem hesitar, Paula me lança um olhar encorajador, e eu sigo em direção a eles, posicionando-me ao lado de Lucas.

— Sim, pai Pajé, estou aqui — digo firmemente, mantendo o olhar fixo nele.

Meu pai começa a queimar algumas ervas, o aroma das fumaças se espalhando pela tenda, trazendo um toque sagrado ao ambiente.

— Você ficará encarregada de mostrar a ele alguns de nossos costumes e sanar suas dúvidas. Mas somente o que eu permitir — afirma ele, a voz grave e autoritária.

Engulo em seco, ciente da responsabilidade que estou assumindo, e afirmo:

— Farei isso.

Lucas, parecendo surpreso com a determinação de meu pai, esboça um sorriso e pergunta:

— Então isso é um sim, senhor?

A atmosfera muda levemente, e sinto um misto de alívio e apreensão. A resposta de meu pai não é apenas uma autorização; é um sinal de que Lucas pode realmente ter a chance de entender nosso mundo.

— Sim, é um sim — responde meu pai, mantendo um olhar sério, mas com um leve toque de aprovação. — Mas lembre-se, Lucas, respeito é fundamental. Nossas histórias são sagradas.

Lucas acena, o sorriso se ampliando, e eu percebo que, por trás de sua confiança, há um genuíno desejo de aprender. Enquanto meu pai continua a preparar o ritual, sinto que este pode ser o início de algo significativo, tanto para nosso povo quanto para Lucas.

O cheiro das ervas queima no ar, misturando-se ao som distante da floresta, e percebo que estou prestes a guiá-lo em um caminho que pode mudar nossas vidas para sempre.

Meu pai, sem perder tempo, segura uma vasilha contendo uma erva que continua a queimar, exalando sua fumaça densa e perfumada.

— Agora, aproxime-se mais, Lucas — diz ele, a voz firme e direta.

Lucas, um pouco intrigado, avança hesitante.

— O que é isso, senhor? — pergunta, a curiosidade evidente em seu olhar.

Meu pai não hesita em responder:

— É um ritual de preparação e limpeza. Preciso retirar a energia densa que você trouxe consigo. Agora, abra os braços.

Lucas assente, um pouco sem jeito, e lentamente abre os braços. Meu pai inclina-se, passando a vasilha sobre ele, permitindo que a fumaça o envolva como um manto etéreo. Sinto a tensão no ar enquanto observo essa cena, as chamas dançando suavemente na vasilha.

Os olhos de Lucas encontram os meus, e um lampejo de incerteza brilha neles, mas também há uma curiosidade palpável. A fumaça flui, cercando-o em um abraço etéreo, e por um momento, tudo parece suspenso.

Então, de repente, Lucas começa a tossir, a fumaça penetrando em seus pulmões de forma inesperada. Um riso involuntário escapa de mim, e a cena se torna quase cômica, quebrando a seriedade do momento.

Ele me olha novamente, agora com um sorriso genuíno, apesar da tosse. O contraste entre sua vulnerabilidade e a autenticidade de seu sorriso me faz sentir uma conexão mais forte.

— Parece que a limpeza está funcionando — digo, tentando controlar o riso, enquanto a fumaça se dissipa lentamente ao nosso redor.

Meu pai observa, um leve sorriso se formando em seus lábios, satisfeito com a reação de Lucas.

— Este é apenas o começo, jovem — ele avisa. — Mas é essencial que você se desprenda do que não serve mais.

Lucas, recuperando-se da tosse, olha para meu pai com seriedade.

— Estou pronto para isso — responde ele, a determinação visível em seu tom.

Enquanto a fumaça esmorece, sinto que algo especial se forma neste instante. A aceitação de Lucas, embora ainda delicada, começa a se entrelaçar com a sabedoria de meu pai, e percebo que estamos prestes a abrir um novo capítulo em nossas vidas.

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