Foi um dia comum, pelo menos até aquele momento. Eu tinha seis anos, uma criança despreocupada que só queria voltar da escola, jogar no tablet da família e talvez passar o resto da tarde sem pensar em mais nada. Nossa casa nova em Winnipeg ainda estava sendo explorada por mim e meus irmãos, cada canto, cada corredor. Mas havia algo que eu não podia prever. Algo que transformaria a maneira como eu via aquele lugar, e, principalmente, a forma como eu enxergaria o mundo ao meu redor.
Naquele dia, como de costume, eu larguei a mochila na entrada, subi correndo as escadas em direção ao quarto dos meus pais, onde o tablet ficava carregando. A escada fazia uma curva suave, que levava direto à porta do quarto deles. O ambiente estava silencioso. O sol da tarde entrava pelas janelas, iluminando cada canto da casa, o que deveria me trazer conforto. Mas quando eu entrei naquele quarto, algo quebrou essa calma, e de repente, a luz do sol parecia fraca, quase irrelevante.
Ela estava lá. Sentada na beira da cama, como se estivesse esperando por mim. Uma figura escura, sem rosto visível, mas claramente humana em forma. Seu corpo era o de uma menina, vestida com um vestido bufante, como algo saído de uma época passada. Não havia detalhes em sua roupa, apenas a sombra que formava seu contorno. E seus olhos… aqueles olhos brancos, vazios, brilhavam de uma maneira perturbadora. Eram grandes, quase como pires, e me encaravam sem qualquer emoção.
Meu corpo congelou. Eu queria me mover, mas parecia que algo segurava meus pés no chão, como se o ar ao meu redor tivesse se tornado denso. Meu coração disparou, e por um momento, pensei que estava sonhando acordado. Pisquei várias vezes, tentando desfazer aquela visão, mas ela continuava lá, imóvel, olhando diretamente para mim. Eu não conseguia entender o que estava vendo. Era uma pessoa? Um fantasma? Algo que minha mente estava criando?
Instintivamente, meu primeiro pensamento foi chamar meu pai. Soltei um grito, mais alto do que pretendia, e senti minha voz ecoar pela casa. "Pai! PAAAAAI!" Mas, para minha surpresa, não houve resposta. Nenhum som vindo de lá de baixo. Tudo parecia estranhamente silencioso, como se o tempo tivesse parado. Minha mente começou a girar, buscando uma saída, uma maneira de escapar daquela situação sem sentido.
Quando finalmente reuni forças suficientes para me mover, meus olhos voltaram para a cama… e ela havia desaparecido. Não houve movimento, nenhum som, nenhum sinal de que ela tinha saído pela porta ou pelas janelas. Era como se nunca tivesse estado ali. O espaço ao pé da cama estava vazio, mas o medo que eu sentia permanecia, latejando em cada célula do meu corpo.
Peguei o tablet rapidamente, sem pensar duas vezes, e saí correndo do quarto, descendo as escadas como se algo estivesse logo atrás de mim, prestes a me alcançar. Cada passo que eu dava era como se estivesse fugindo de algo invisível, algo que poderia me pegar a qualquer momento. Quando finalmente cheguei à sala, onde a luz do sol era mais forte e onde eu podia ouvir os sons da rua lá fora, senti uma pequena onda de alívio. Mas aquela sensação de ser observado… de ser vigiado, não desapareceu.
Eu não contei a ninguém. Nem para meus pais, nem para meus irmãos. Naquela época, eu ainda não tinha as palavras para descrever o que havia visto, e de alguma forma, achava que se eu falasse sobre aquilo, a coisa toda se tornaria ainda mais real. Mas a verdade é que, desde aquele momento, eu sabia que minha vida havia mudado. Algo havia entrado nela — algo que eu não entendia, mas que agora fazia parte do meu mundo. E mesmo que eu tentasse esquecer, a imagem da Garota das Sombras, com seus olhos brancos, ficou gravada na minha mente, como um lembrete constante de que eu não estava mais seguro em minha própria casa.
Esse foi o primeiro encontro. E, mal sabia eu, não seria o último.
Os dias que se seguiram ao meu primeiro encontro com a Garota das Sombras foram marcados por uma estranha sensação de inquietação. Nossa casa, antes um refúgio de segurança, agora parecia cheia de segredos. Mesmo durante os momentos mais simples do cotidiano, como brincar com meus irmãos ou ver meus pais preparando o jantar, eu não conseguia me livrar da sensação de que algo estava errado, como se houvesse uma presença constante nas sombras, observando cada movimento.
A casa nova era maior que a anterior, o que deveria ser motivo de alegria para todos nós, crianças. Havia mais espaço para explorar, mais lugares para se esconder durante nossas brincadeiras, mais janelas pelas quais o sol da tarde entrava, aquecendo o ambiente. Mas agora, cada canto parecia esconder uma ameaça invisível. Cada corredor parecia mais longo, cada sala mais vazia, e o silêncio, que antes era reconfortante, agora era opressor.
Logo percebi que o silêncio era um elemento-chave na presença dela. Sempre que a casa estava em seu momento mais quieto, era quando eu sentia aquela estranha tensão crescer dentro de mim. Quando a TV estava desligada, quando meus irmãos não faziam barulho, e quando minha mãe parava de cantarolar baixinho enquanto cozinhava, era como se o próprio ambiente ficasse mais denso, como se algo estivesse esperando, à espreita, nas sombras.
Comecei a evitar o quarto dos meus pais. Não conseguia passar pela porta sem lembrar da visão daquela figura escura sentada na beira da cama, me observando. Só de pensar em voltar lá, meus músculos se retesavam, e o medo voltava a apertar meu peito. Meus pais não entendiam por que eu havia parado de brincar no segundo andar, ou por que eu evitava entrar no quarto deles quando eles me chamavam. "É só uma fase", diziam. Mas, para mim, era muito mais do que isso.
Certa noite, eu estava deitado na cama, tentando dormir. O relógio na parede do corredor marcava o passar das horas com um leve tique-taque, o único som que preenchia o silêncio da casa. Meus irmãos já estavam dormindo, e meus pais haviam se recolhido ao quarto deles. Apesar da quietude ao meu redor, minha mente estava em alerta. Eu me perguntava se, naquele exato momento, a Garota das Sombras estava em algum lugar da casa, esperando, observando.
Foi então que ouvi. Um som sutil, quase imperceptível, como o farfalhar de roupas sendo arrastadas pelo chão. Minha respiração ficou presa na garganta, e meus olhos se fixaram na porta do quarto, que estava entreaberta. Do outro lado, o corredor estava imerso em sombras, iluminado apenas pelo fraco brilho da luz noturna que minha mãe sempre deixava acesa. Eu não conseguia ver nada além das paredes e da escada que descia para o andar de baixo. Mas a sensação de ser observado era inegável.
Com o coração acelerado, me forcei a levantar da cama. Caminhei até a porta, com passos leves, tentando não fazer barulho, como se, de alguma forma, eu pudesse evitar chamar atenção para mim. Olhei para o corredor vazio, meus olhos se esforçando para enxergar além das sombras. Não havia nada ali… pelo menos, não algo que eu pudesse ver.
Voltei para a cama, mas o sono parecia impossível. A cada ruído da casa — o ranger do piso, o estalo das janelas com o vento lá fora — minha mente imaginava o pior. Sentia como se a Garota das Sombras pudesse aparecer a qualquer momento, saindo de algum canto escuro, vinda de um lugar onde eu jamais esperaria encontrá-la. E a parte mais perturbadora de tudo isso? Eu sabia, no fundo, que ninguém mais na casa estava ciente dessa presença. Para os meus pais e irmãos, o silêncio era apenas silêncio. Para mim, era um aviso.
O tempo foi passando, e eu comecei a evitar falar sobre o que sentia. Ninguém parecia notar que algo estava errado, e eu não queria parecer fraco ou infantil. Sempre que eu tentava mencionar a sensação de que algo estava errado, meus pais sorriam de forma compreensiva, mas logo mudavam de assunto. "Você está crescendo, tudo isso é parte da sua imaginação", eles diziam. Era uma resposta reconfortante… mas eu sabia que eles estavam errados. O que eu havia visto, o que eu continuava sentindo, não era imaginação.
As noites eram as piores. Durante o dia, eu conseguia me distrair com a escola e as brincadeiras com meus irmãos, mas à noite, o silêncio da casa voltava com força total. Havia algo naquela quietude, algo que parecia convidar a Garota das Sombras a se manifestar. Eu tentava manter os olhos fechados, forçando-me a dormir, mas a sensação de estar sendo observado não me deixava em paz. Era como se, a qualquer momento, eu fosse abrir os olhos e encontrá-la parada ao pé da cama, seus olhos brancos fixos em mim.
Esse medo constante começou a se tornar parte da minha rotina. A casa, antes cheia de vida e alegria, agora parecia um lugar de mistério e incerteza. O silêncio, que antes era acolhedor, agora era sinônimo de perigo. E a cada dia que passava, eu sabia que aquilo não tinha acabado. A Garota das Sombras ainda estava por perto, em algum lugar, esperando o momento certo para aparecer novamente.
Mal sabia eu que aquele seria apenas o começo.
Algum tempo se passou desde aquele primeiro encontro com a Garota das Sombras. Eu tentei, sem sucesso, me convencer de que tudo não passava de um devaneio infantil, fruto de uma imaginação fértil. No entanto, a verdade, sempre à espreita, se recusava a ser ignorada. O medo ainda me acompanhava como uma sombra silenciosa, mas eu o mantinha em segredo. Afinal, que tipo de criança falava sobre uma entidade sobrenatural que habitava sua casa sem ser chamada de louca? Até meus irmãos, que compartilhavam o mesmo teto, pareciam alheios ao que eu estava vivenciando.
Foi durante um final de semana, em Pembina, na velha casa que costumávamos chamar de “casinha”, que a realidade que eu tentava reprimir se manifestou de maneira ainda mais aterrorizante. A casa em Pembina era pequena e aconchegante, mas sempre teve uma aura estranha. O porão era escuro e úmido, e raramente alguém descia lá sem motivo. Havia algo naquela casa que, mesmo antes de eu conhecer a Garota das Sombras, já me fazia sentir um desconforto inexplicável. E foi ali, naquele lugar que deveria representar conforto e familiaridade, que eu a vi pela segunda vez.
Era uma tarde como qualquer outra, e o som das risadas dos meus irmãos preenchia o ar enquanto eles corriam pela casa. Eu, no entanto, estava em busca de algo no meu quarto, talvez um brinquedo que eu havia perdido. Meu quarto, que dividia com meu irmão, ficava no segundo andar, acessível por uma escada estreita que rangia a cada passo. A casa estava viva com os sons típicos de uma família, mas, de repente, algo mudou. O barulho das brincadeiras diminuiu, e logo o silêncio reinou, o mesmo silêncio inquietante que me envolvia sempre que a Garota das Sombras estava próxima.
Subi a escada sem prestar muita atenção, meus olhos fixos nos primeiros degraus, absorto em pensamentos. Foi quando olhei para cima e a vi. Lá, no topo da escada, parada como uma estátua, a Garota das Sombras me encarava. Seu vestido bufante e antigo era o mesmo que eu havia visto antes, mas desta vez, algo nela parecia diferente. Sua presença era ainda mais intensa, mais real. Ela não se movia, apenas ficava ali, no topo da escada, me observando com aqueles olhos brancos e vazios que contrastavam com a escuridão de sua figura.
Meu corpo congelou instantaneamente. Uma parte de mim queria gritar, correr, pedir ajuda. Mas outra parte, talvez a mais aterrorizada, sabia que ninguém acreditaria em mim, e pior, ninguém poderia me salvar. Ali, no topo da escada, estava algo que não pertencia ao nosso mundo, algo que desafiava a lógica e a razão. E dessa vez, eu não estava apenas paralisado pelo medo. Eu estava com raiva.
Uma onda de fúria percorreu meu corpo. Como aquela coisa ousava invadir minha vida, minha casa, minha mente? O medo deu lugar a uma coragem irracional, e antes que eu percebesse o que estava fazendo, subi as escadas correndo, na direção dela. Eu queria enfrentá-la, fazer com que ela desaparecesse para sempre. Mas, à medida que eu avançava, algo terrível aconteceu. Seus olhos, aqueles dois orbes brancos, nunca se desviaram de mim, mas seu corpo começou a se mover.
Ela não caminhava como uma pessoa normal. Não levantava os pés. Em vez disso, seu corpo deslizava pelo chão, como se fosse feito de névoa, flutuando com uma graça perturbadora. Virou-se lentamente, sem qualquer esforço, e começou a se afastar pelo corredor que levava aos quartos do segundo andar. Eu não sabia o que fazer. A raiva que me impulsionou a subir as escadas rapidamente se transformou em uma sensação de impotência. O que eu esperava fazer? Como uma criança poderia enfrentar algo que claramente não era deste mundo?
Quando finalmente alcancei o topo da escada, ela já havia desaparecido. O corredor estava vazio, como se nunca houvesse estado lá. Eu corri para os quartos, abrindo portas, olhando em cada canto, esperando encontrá-la escondida em algum lugar. Mas, mais uma vez, ela havia sumido. Era como se a própria casa tivesse engolido sua presença, deixando-me com nada além do eco do meu coração acelerado e da dúvida crescente em minha mente.
Aquela noite, eu não disse nada a ninguém. Meus irmãos continuaram brincando, meus pais se prepararam para o jantar, e a vida seguiu seu curso normal, como se nada de extraordinário tivesse acontecido. Mas eu sabia que a Garota das Sombras ainda estava lá, em algum lugar, observando, esperando o momento certo para aparecer novamente. O segundo encontro foi diferente do primeiro. Não foi apenas uma aparição estática; foi um movimento, uma interação, e isso me deixou mais apavorado do que eu poderia admitir.
Algo dentro de mim mudou naquela tarde. O medo havia evoluído. Ele não era mais apenas o temor de ver a Garota das Sombras. Agora, era o medo do que ela queria. Por que ela continuava aparecendo para mim? O que ela esperava de mim? Essas perguntas martelavam minha mente enquanto eu tentava continuar minha rotina de criança normal. Mas a normalidade, eu sabia, já não existia mais.
As escadas, que antes eram apenas um caminho entre os andares, agora se tornaram um local de tensão. Cada vez que eu precisava subir ou descer, meus olhos procuravam por qualquer sinal dela, qualquer sombra que pudesse anunciar sua presença. Mas ela nunca aparecia quando eu estava preparado. Era sempre quando eu estava distraído, quando meu guarda estava abaixado, que ela surgia, como se soubesse exatamente quando me pegar de surpresa.
Eu não estava sozinho naquela casa, mas, ao mesmo tempo, sentia como se estivesse isolado em um mundo que só eu conseguia ver. E o pior de tudo? Eu sabia, com uma certeza que me arrepiava, que esse não seria o último encontro.
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