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Em Seu Reflexo Existe um Paralelo

Capítulo 1

Kelly era uma garota que chamava atenção por onde passava. Estava no primeiro ano da faculdade de Psicologia. Os professores a consideravam esperta e inteligente: participava ativamente das aulas, respondia com precisão às perguntas, obtinha excelentes notas e ajudava os colegas com a matéria. Os alunos a admiravam por seu desprendimento, pelas iniciativas e pelas ideias inovadoras, que sempre beneficiavam o grupo. Além disso, muitos se encantavam com sua beleza. Dotada de um carisma natural, Kelly era simpática, conversava com todos e fazia amizades com facilidade, sem esforço, mas com disposição.

Sua aparência prendia olhares à primeira vista: cabelos pretos e lisos, que caíam quase até o quadril. Despertava inveja em algumas garotas, que ao mesmo tempo, ansiavam por sua amizade. Os rapazes a paqueravam constantemente, mas Kelly não dava muita importância a isso. Embora fosse o centro das atenções na faculdade, mantinha-se indiferente aos flertes. Sua falta de reciprocidade tinha razão: além de estar focada nos estudos, namorava desde os dezesseis anos, e, agora com dezoito, continuava em um relacionamento sério.

Seu namorado, Charlie, era um rapaz muito bonito, o cabelo dividido ao meio, que alcançava a altura do queixo, magro, mas com músculos definidos, tinha um olhar misterioso e charmoso. De personalidade séria, Charlie causava a impressão de ser metido, afinal, raramente sorria. Apesar disso, sua presença era sempre marcante e atraente. Fazia parte de uma banda de rock e arriscava-se cantando em pequenos bares da cidade. O dinheiro que ganhava era pouco, e dependia financeiramente dos pais, que não apoiavam seu sonho de ser artista nem concordavam com seu estilo de vida. Essa falta de apoio o deixava frustrado, e ele sofria de depressão, necessitando de acompanhamento psiquiátrico contínuo.

Charlie, no entanto, era displicente com as medicações. Como gostava de consumir álcool, costumava interromper o uso dos remédios para evitar os efeitos perigosos da mistura entre antidepressivos e bebida. Às vezes, tinha crises de ansiedade, principalmente quando passava muito tempo sem conseguir trabalho. Esses problemas de saúde mental afetavam frequentemente o relacionamento com Kelly. Quando se sentia mal, tratava-a com indiferença, em algumas ocasiões, chegava a ignorá-la. Ainda assim, Kelly nunca pensou em terminar o namoro. Pelo contrário, acreditava que ao se formar em Psicologia, seria capaz de entender melhor o que Charlie sentia e ajudá-lo a resolver seus conflitos internos.

Kelly e Charlie eram melhores amigos e vizinhos desde os treze anos. Por isso, ela conhecia bem os tormentos que ele enfrentava. Na maior parte do tempo, eram inseparáveis. O namoro surgiu de forma natural, após anos de amizade sólida.

Enquanto Kelly era bastante admirada na faculdade, em casa a realidade era diferente. Sua irmã mais velha, Vivian, era irritante e adorava provocar. Inventava histórias sobre a família e os amigos de Kelly, tentando criar intrigas onde não havia. Seu passatempo favorito? Irritar a irmã mais nova, com comentários maldosos, ironias afiadas e manipulações sutis.

A mãe de Kelly era indiferente e ranzinza, passava os dias cuidando da casa em silêncio e evitava qualquer tipo de conversa mais profunda. Já o pai, bebia quase todos os dias, até perder o controle. Estava desempregado, e o sustento da casa vinha dos aluguéis de imóveis herdados pela mãe de Kelly. Mesmo assim, a família enfrentava dificuldades financeiras, já que grande parte do dinheiro era gasto com as bebidas do pai e com os luxos de Vivian, que apesar de trabalhar e ter seu próprio dinheiro, era extremamente consumista, priorizando roupas, cosméticos e saídas caras, sem qualquer senso de responsabilidade.

Kelly pensava em ajudar financeiramente a família, mas, por estar apenas no primeiro período da faculdade e não ter experiência profissional, ainda não conseguia um estágio ou emprego. Enquanto isso, dedicava-se aos estudos com afinco. Desde os quatorze anos, tinha um hobby que não abandonava por nada: a dança de rua. A dança era sua válvula de escape, sua forma de aliviar o estresse diário. Talentosa, já havia sido convidada para competir em várias regiões do país, mas recusou todas as oportunidades, tanto para focar na faculdade quanto porque não tinha condições financeiras de arcar com as viagens, hospedagens e inscrições.

Certo dia, Kelly e Charlie tiveram uma discussão. Ele tinha um show marcado para a noite, mas ela não podia assistir porque tinha uma prova importante no dia seguinte. Apesar de sempre apoiar Charlie e assistir suas apresentações, dessa vez sabia que precisava dormir cedo. No dia seguinte, após a prova, Kelly ficou preocupada com a reação dele por sua ausência no show. Depois da aula, foi até a casa dele para conversar. Charlie a recebeu de forma fria, e ela logo se desculpou:

— Desculpa por ontem. Eu realmente não teria conseguido fazer a prova se tivesse ido ao show. Terminou muito tarde, e eu precisava acordar cedo.

Mesmo relutante, Charlie conseguia sentir a sinceridade em suas palavras.

— Você nunca dá valor ao que eu faço. Eu sempre valorizo você. Sua presença era importante. Tinham olheiros lá, e eu não tocava há meses.

— Eu sei, sinto muito. Vamos comemorar! Sei que você sempre arrasa. Amo ver meu rockstar tocar.

Ele deu um sorriso contido, quase imperceptível e ela o abraçou, tentando animá-lo.

— Está bem. Você pode dormir aqui em casa hoje?

Perguntou ele.

— Posso. Você quer um beijinho, né?

— Eu quero mais que isso.

Respondeu, com um sorriso malicioso.

— Hoje, meu artista favorito, de quem sou a fã número um, merece tudo.

Disse Kelly, beijando-o apaixonadamente.

No dia seguinte, Kelly estava cansada na faculdade depois de passar a noite toda com Charlie. Seus amigos fizeram brincadeiras, sugerindo que a noite tinha sido bem aproveitada e ela, embora tentasse ignorar, acabou sorrindo junto com eles, corando levemente. Durante a aula, passou boa parte do tempo rememorando os momentos com Charlie, até ser interrompida por uma cutucada da amiga, que a fez perceber, num susto, que o professor a estava observando com ar de reprovação.

Na faculdade, havia um garoto chamado Daniel, que sempre estava nas mesmas aulas que Kelly. Ele chamava atenção pela frieza e era considerado bizarro pelos colegas. Apesar de ser bonito, era descuidado: usava roupas escuras e velhas, não cuidava da aparência, mantinha a barba por fazer e o cabelo sempre bagunçado, como se tivesse acabado de acordar, ou como se não se importasse com o que os outros pensavam.

Daniel quase não falava, e muitos alunos sentiam arrepios só de passar perto dele. Vendia drogas na faculdade, discretamente, mas não tão discretamente assim, e, de vez em quando, parecia alterado, o que o tornava alvo constante de chacotas. Os colegas diziam que ele tinha “perdido os neurônios” de tanto usar drogas e zombavam de sua aparente falta de inteligência nas aulas, embora, em raros momentos, demonstrasse flashes de lucidez assustadora.

Daniel era o mais velho da turma, com vinte e cinco anos, enquanto a maioria dos alunos tinha entre dezoito e vinte e dois. Repetente, ele já poderia ter se formado, mas suas notas eram terríveis, e seu desinteresse parecia deliberado. Mesmo com sua má fama, tentava se aproximar de Kelly, mas nunca tinha sucesso. Muitas vezes, passava a aula inteira observando-a, sem prestar atenção na matéria.

Quando estava desanimado, lembrava-se dela e isso bastava para se motivar a ir à faculdade. No entanto, Kelly estava sempre cercada por amigos, o que dificultava qualquer aproximação. Um dia, Daniel decidiu investigar a vida dela pelas redes sociais e descobriu que ela fazia aulas de dança em uma escola próxima à faculdade. Sem hesitar, matriculou-se na mesma turma, buscando um contato mais direto e talvez, quem sabe, uma chance de ser visto por ela não apenas como um colega de sala, mas como alguém real, alguém além da sombra que todos insistiam em projetar sobre ele.

Capítulo 2

No primeiro dia das aulas de dança, Daniel percebeu que a turma era imensa, cerca de cinquenta pessoas. Kelly nem sequer notou sua presença. Ele não conseguiu se aproximar: ela era constantemente requisitada para dançar, cercada por colegas que queriam aprender com ela ou simplesmente aproveitar sua energia contagiante. A turma era caótica, barulhenta, cheia de movimento e Daniel, no meio daquilo tudo, permaneceu parado, como se o tempo tivesse congelado ao vê-la se mover pela primeira vez. Ficou boquiaberto, paralisado, os olhos grudados nela, acompanhando cada giro, cada passo, cada gesto preciso e fluido, como se estivesse assistindo a algo sagrado.

No segundo dia de aula, finalmente conseguiu se aproximar e os dois conversaram:

— Oi, Kelly!

— Daniel! Que surpresa! Não pensei que gostasse de dançar. Veio só para assistir a uma aula?

— Na verdade, eu resolvi fazer aulas.

— Legal! Você vai adorar.

— Tenho certeza disso, afinal, já estou adorando. Você pode me ajudar? Percebi que tem bastante experiência.

— Claro, pode contar comigo.

Daniel não conseguiu conter o sorriso pequeno, quase tímido. Sabia que Kelly era simpática com todos, mas, mesmo assim, achou aquela conversa melhor do que qualquer coisa que tivesse imaginado. Aquele breve diálogo, cinco frases, talvez menos, foi o suficiente para iluminar seu dia inteiro.

Mais uma vez, passou o resto da aula observando cada movimento dela, sem desviar o olhar nem por um segundo, como se estivesse memorizando cada detalhe para revivê-lo depois, sozinho, em silêncio.

Depois de duas semanas, eles ficaram mais próximos, dentro dos limites que Kelly permitia. Na faculdade, no entanto, pouco mudou. Daniel ainda não conseguia se entrosar com o grupo de amigos dela, mas Kelly passou a cumprimentá-lo todos os dias com um largo sorriso, aquele sorriso que iluminava corredores, e ele retribuía de forma reservada, quase contida, como se temesse que um gesto mais aberto pudesse assustá-la.

Os amigos dela começaram a estranhar aquela interação. “Por que ela sorri tanto para ele?”, cochichavam. Daniel, percebendo o desconforto alheio, pediu que Kelly não contasse a ninguém sobre as aulas de dança e ela, respeitando o pedido, manteve segredo. Seus amigos, então, não entendiam por que ele, de repente, recebia tanta atenção dela diariamente.

Nas aulas de dança, trocavam algumas palavras breves, mas significativas para Daniel. Kelly sempre o incentivava nas coreografias, corrigia seus passos com paciência, elogiava seus pequenos progressos. Com o passar dos dias, Daniel foi ficando cada vez mais confiante, não na dança, mas na proximidade com Kelly. Sentia que, ali, longe dos julgamentos da faculdade, ela o via de forma diferente. Um dia, ao final da aula, ele a chamou:

— Kelly, podemos conversar?

— Sim. O que foi?

— Quero te dizer algo…

Falou com relutância, a voz um pouco trêmula, sentindo um frio na barriga que subia até a garganta. Olhava para baixo, coçava a cabeça, como se tentasse ganhar tempo ou coragem.

— Fala!

— Desde o primeiro dia de aula na faculdade, você chamou minha atenção. Lembro que você foi a primeira pessoa a quebrar o silêncio constrangedor, quando ninguém se conhecia. Além disso… você é tão bonita! Sei que muitos na faculdade têm interesse em você. Mas, ao meu favor, tenho um segredo que me faz sobressair dos outros. Posso te contar mais, se aceitar sair comigo. O que acha?

Dominado por uma súbita coragem ou talvez por um impulso desesperado, parecia empolgado, quase eufórico, os olhos brilhando com a expectativa de uma resposta positiva. Porém, Kelly se mostrou surpresa e, por um instante, até desconfortável:

— Daniel… Estou surpresa! Foi por isso que você veio fazer aula de dança? Para se aproximar?

— Na verdade, sim.

— Antes de você pensar ou planejar qualquer coisa, preciso te avisar que tenho namorado.

— Você está mentindo! Não tem nenhuma foto sua com ele nas redes sociais!

— Eu não gosto de expor minha vida pessoal, mas é verdade.

Ela virou as costas e saiu, sem dar tempo para ele responder, nem para se explicar, nem para insistir. Daniel ficou parado, o peito apertado, uma mistura de raiva e decepção fervendo dentro dele. “Como ela poderia ter namorado e ainda assim tantos garotos se aproximarem dela?”, pensou.

Em sua cabeça, duvidou da existência desse namorado. Achou que Kelly havia inventado a história apenas para se livrar dele, para descartá-lo sem precisar dizer “não” diretamente. Concluiu que a rejeição era fruto da má reputação que carregava na faculdade, e que seus amigos, aqueles que sempre riam dele, a influenciavam negativamente. Foi então que decidiu: ia descobrir a verdade. E, para isso, precisava segui-la.

Daniel passou a perseguir Kelly por toda a faculdade discretamente, mas com obsessão. Tentava escutar suas conversas com os amigos, quando ela estava na lanchonete do campus, sentava-se na mesa ao lado, fingindo mexer no celular enquanto absorvia cada palavra, cada risada, cada gesto. Na sala de aula, sempre escolhia o lugar mais próximo possível, mesmo que isso significasse chegar meia hora antes para garantir o assento. Depois de uma semana a seguindo, os amigos de Kelly começaram a notar. Estranhavam o comportamento dele, aquele olhar frio, fixo, atento demais. Cada vez mais próximo, cada vez mais presente.

Suspeitavam que ele quisesse se enturmar com eles, mas não o queriam por perto. Pelo contrário: os olhares que recebiam dele os deixavam assustados, como se estivessem sendo avaliados ou caçados. Embora se sentissem desconfortáveis, optaram por ignorá-lo, fingir que ele não existia era mais fácil do que confrontá-lo.

Kelly, por sua vez, também passou a ignorá-lo. Parou de cumprimentá-lo, evitava contato visual. Não queria alimentar falsas esperanças, nem dar espaço para que ele interpretasse qualquer gesto como um convite. Mesmo assim, Daniel continuou frequentando as aulas de dança, como se aquele fosse o único lugar onde ainda podia vê-la sem ser repelido.

Em alguns dias, chegou a segui-la de carro até sua casa, que ficava a cerca de vinte minutos da faculdade. Kelly fazia esse percurso a pé todos os dias, mesmo sendo uma caminhada longa, pois preferia o ar livre à agonia do transporte público lotado. Ela não percebia que estava sendo seguida. Daniel, por sua vez, observava cada passo, cada parada, cada gesto, como se estivesse gravando um filme só para si.

Depois de alguns dias, Daniel a viu entrar na casa de um vizinho e ficou esperando, estacionado a alguns metros de distância, o coração acelerado. Kelly demorou cerca de duas horas dentro da casa. Quando saiu, estava acompanhada de um garoto. Deram as mãos. Riram de algo. Se despediram com um beijo, longo, tranquilo, íntimo. Foi nesse momento que Daniel descobriu: o namoro dela era real. Não era desculpa. Não era invenção. Era verdade.

Cheio de raiva. Uma raiva queimando por dentro, esmurrou o volante do carro com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos. Ligou o motor e saiu dirigindo de forma imprudente, acelerando além do permitido, como se pudesse deixar para trás não só aquela cena, mas também a dor que ela provocara.

Em casa, passou a noite em claro. Não conseguia dormir. Pensava em Kelly, em seu sorriso, em sua voz, em seus movimentos. E, acima de tudo, pensava em como tirar aquele garoto do caminho. Seria mais fácil se o namorado fosse alguém da faculdade, teria acesso, poderia manipular, influenciar. Mas não era.

Então, precisava de um plano maior. Um plano ambicioso. Algo que pudesse mudar completamente as coisas, não só para ele, mas para ela também. E, naquela madrugada insone, uma ideia começou a tomar forma. Era mirabolante. Repleta de riscos. Talvez até perigosa. Mas Daniel estava disposto a correr todos eles.

Porque, na mente dele, não estava fazendo nada errado. Estava, na verdade, oferecendo a Kelly algo melhor. Algo que ela nem sabia que merecia. Algo que só ele poderia dar. E ninguém na faculdade sabia, ninguém sequer imaginava, que Daniel não era apenas o “garoto drogado e burro”. Ele era, na verdade, muito rico. Filho de um cientista renomado mundialmente.

Capítulo 3

Kelly começou a enfrentar uma grande crise familiar uma dessas que abalam os alicerces da casa, que fazem o chão tremer e o ar ficar irrespirável. Seus pais tiveram uma briga séria. Durante uma de suas bebedeiras habituais, o pai, num acesso de fúria alcoólica, tentou agredir a mãe. Kelly, instintivamente, interveio e, por ele estar tão bêbado, conseguiu contê-lo, empurrando-o para longe, bloqueando seus braços, impedindo que fizesse algo irreparável.

Depois disso, sua mãe caiu em prantos no chão da sala, soluçando, repetindo entre lágrimas que queria o divórcio, que não aguentava mais, que aquilo tinha que acabar. Desesperada, Kelly ligou para a irmã, Vivian, que estava em uma festa, rindo, bebendo, vivendo como se o mundo fosse eterno. Pediu ajuda, implorou, na verdade. Mas Vivian, com a voz arrastada e o tom de quem não quer ser incomodada, respondeu com desprezo:

— Se vira, Kelly. Eu não volto pra casa hoje.

E desligou.

Sozinha, com o peso do mundo nos ombros, Kelly passou a noite em claro, sentada na escada da sala, ouvindo os roncos do pai no sofá e os soluços abafados da mãe no quarto. Ficou acordada, tensa, os músculos enrijecidos, pronta para qualquer movimento, qualquer som que indicasse que ele acordaria e tentaria machucar a mãe novamente. O medo era físico, quase palpável. Não conseguiu pregar os olhos. Ao amanhecer, por volta das seis horas, exausta, vencida pelo cansaço acumulado, adormeceu ali mesmo, encostada na parede.

Acordou três horas depois, com os berros da mãe rasgando o silêncio da casa. Assustada, deu um pulo da cama, ou melhor, do chão, e correu até a sala. Seus pais estavam novamente em confronto. Dessa vez, o pai parecia sóbrio ou pelo menos mais lúcido, mas a mãe, com os olhos vermelhos e a voz rouca de tanto gritar, o acusava de tê-la machucado na noite anterior. Gritava para que ele saísse de casa e nunca mais voltasse. Ele negava, retrucava com raiva, chamando-a de histérica, de mentirosa, de ingrata.

Kelly não sabia o que fazer. Não tinha mais a adrenalina do dia anterior, aquela força desesperada que a fizera enfrentar o pai bêbado. Agora, os gritos deles a faziam tremer por dentro. Ficou paralisada no vão da porta, as mãos geladas, o coração acelerado, como se estivesse presa num pesadelo do qual não conseguia acordar. Assistia à cena como espectadora involuntária, impotente, dividida entre o medo e a culpa por não saber como intervir.

Após minutos intermináveis de berros, sua mãe, num acesso de fúria e coragem, começou a arrastar as roupas do pai do armário e a jogá-las dentro de malas velhas. Depois, carregou as malas até a porta da frente e as atirou para fora, uma por uma, como se estivesse expulsando não só as roupas, mas todos os anos de dor, de silêncio, de submissão. Ele a insultava, chamava-a de louca, ameaçava voltar, jurava que aquela casa era dele, que tudo ali era dele.

Foi então que Kelly, percebendo a gravidade da situação, conseguiu reagir. Avançou até o meio da sala, colocou-se entre os dois e, com a voz firme, embora trêmula, disse ao pai:

— Se você tentar qualquer coisa física contra ela de novo, eu chamo a polícia. E não estou brincando.

Ficou de prontidão, os punhos cerrados, os olhos fixos nele, pronta para qualquer reação. Isso o irritou ainda mais, ele se virou para ela, cuspiu palavras cheias de ódio, fez ameaças, tentou intimidá-la com o olhar. Kelly estremeceu, mas não recuou. Não abaixou os olhos. Não cedeu. Manteve-se firme, decidida a proteger a mãe, mesmo que isso custasse tudo.

Depois de horas de confusão, gritos, lágrimas e ameaças, o homem finalmente pegou suas malas, xingou todo mundo pela última vez e saiu de casa enfurecido, batendo a porta com tanta força que as paredes tremeram. Antes de desaparecer rua abaixo, gritou:

— Eu volto! Essa casa é minha! Tudo aqui é meu!

E sumiu, sem rumo, sem destino, apenas raiva e álcool correndo nas veias.

A mãe de Kelly, sendo uma pessoa extremamente reservada, quase inacessível emocionalmente, recusou qualquer tentativa de consolo por parte da filha. Kelly tentou abraçá-la, falar com ela, acalmá-la, mas foi em vão. A mãe apenas balançava a cabeça, os olhos secos agora, como se tivesse esgotado todas as lágrimas que tinha. Com medo de que ele voltasse, e sabendo que, bêbado, era imprevisível, decidiu passar a noite na casa de uma irmã, distante dali. Convidou Kelly a ir junto.

— Não.

Respondeu Kelly, firme.

— Eu fico aqui.

Precisava ficar. Precisava proteger a casa. Precisava sentir que ainda tinha algum controle sobre algo. Com a situação momentaneamente controlada, ou pelo menos, silenciosa, Kelly respirou fundo, aliviada, e pegou o celular. Ligou para Charlie.

— Alô?

— Oi! Como foi seu dia? Você disse que passaria o dia dormindo. Não escutou gritos?

Perguntou ela, tentando soar casual, mas com a voz ainda trêmula. Queria saber se ele, sendo vizinho, havia ouvido algo, se alguém além dela testemunhara aquele horror.

— Não.

Respondeu Charlie, distraído.

— Estive o dia todo tocando com a banda. Aproveitamos que meus pais não estavam em casa e fizemos nosso próprio barulho. Mas por que pergunta? Quem brigou?

— Nada, ninguém.

Respondeu Kelly, rápida, quase automática. Preferiu não contar. Nunca falava sobre coisas ruins em casa, temia que isso pudesse piorar a depressão de Charlie, que já vivia à beira do abismo. Guardava tudo para si, como sempre fizera.

Depois de uma breve conversa, superficial, desligou o telefone. Sentiu o peso do silêncio da casa caindo sobre ela. Precisava sair. Precisava respirar. Precisava de ar que não estivesse contaminado por gritos e lágrimas.

Decidiu dar um passeio, não para pensar, mas para não pensar. Queria espairecer caminhando na praia, que ficava a apenas meia hora de sua casa. Desde o dia anterior, sentia uma vontade estranha, quase física, de entrar no mar, como se a água pudesse lavar tudo, apagar tudo, recomeçar tudo.

Pegou um táxi. Ao chegar, percebeu que a praia estava deserta, era um dia frio, nublado, o vento cortava a pele. Perfeito. Impulsivamente, sem pensar, decidiu entrar no mar de roupa, calça jeans, camiseta, tênis e tudo. Não havia levado biquíni, mas isso não importava. Correu pela areia, os pés afundando, o vento batendo no rosto, e adentrou o mar sem hesitar.

As ondas eram fortes, o mar, agitado e ela, destemida, foi se afastando da areia, como se buscasse algo além do horizonte. Sentia uma estranha paz naquela violência das águas, como se, ali, finalmente, pudesse se entregar.

Mesmo sabendo nadar, perdeu o controle. Uma onda maior a derrubou, outra a arrastou, e, de repente, percebeu que estava longe demais. Tentou voltar, mas as correntezas eram fortes demais. Debatia-se, engolia água, os braços cansavam, o peito ardia. Gritou, mas ninguém ouviu.

Os minutos se arrastavam, cada segundo parecia uma eternidade. Pensou na mãe. No pai. Em Charlie. E, no último lampejo de consciência, pensou: “É isso. Vou morrer aqui.” Depois disso, Kelly não viu mais nada.

Quando despertou, estava em um hospital. Luzes brancas, cheiro de antisséptico, o som abafado de máquinas. Por um momento, pensou que estava morta, afinal, não havia ninguém na praia. Quem poderia tê-la salvado? Ao abrir os olhos, viu toda a sua família reunida ao redor da cama: sua mãe, seu pai, sim, seu pai, e sua irmã. Todos gritavam, choravam, abraçavam-se uns aos outros:

— Ela acordou! Finalmente!

— Graças a Deus!

— Kelly! Kelly, você está aqui!

Tentavam falar com ela, mas todos falavam ao mesmo tempo, eufóricos, descontrolados, deixando Kelly ainda mais confusa. Seu corpo estava frio, um frio que vinha de dentro. Sentia-se tonta, desorientada. Sentou-se na cama com esforço, cercada por fios, tubos, monitores, e olhou ao redor, notando cada detalhe daquele quarto apertado, impessoal, cheio de vida artificial. Sua mente estava dispersa, dividida entre a imagem do mar furioso, as ondas, o sal, o desespero e os gritos de alegria da família.

Um médico foi chamado às pressas. Entrou no quarto com passos firmes, avaliou seus sinais vitais, perguntou como ela se sentia.

— Estou bem.

Respondeu Kelly, com a voz rouca, mas firme.

O médico arregalou os olhos, claramente não esperava aquela resposta. Trocou olhares com a enfermeira. A família comemorava, como se “estar bem” fosse um milagre.

Logo depois, exames foram feitos. Kelly continuava espantada com a animação de todos. E mais ainda com o fato de estarem juntos, todos juntos, depois da briga violenta entre seus pais. A situação era tão fora do comum que ela mal conseguia formar frases. Depois de alguns minutos, com a família finalmente mais calma, começaram a conversar, ou tentar:

— Filha, não se assuste.

Disse sua mãe, segurando sua mão com força.

— O médico disse que, milagrosamente, parece que está tudo bem com você.

— Filha, está tudo bem! Estamos aqui te esperando desde o primeiro momento.

Acrescentou seu pai, com os olhos marejados, a voz embargada.

Vivian, por sua vez, não conseguia conter as lágrimas, lágrimas que misturavam emoção, alívio. Kelly, assustada, perguntou:

— Quanto tempo demorou para me salvarem? E por que estão todos aqui reunidos? Pai, você não tinha saído de casa?

Todos a olharam em silêncio que foi mais assustador do que qualquer grito. Kelly sentiu algo estranho, um frio diferente, que não vinha do corpo, mas da alma. Sua mãe engoliu seco e disse, com voz trêmula:

— É provável que você esteja tendo delírios, amor… depois de tanto tempo desacordada. Mas pelo menos… pelo menos você nos reconhece.

Vivian, chorando, quis confirmar:

— Kelly, você sabe quem eu sou?

— Vivian, você está me zoando?

Kelly riu, nervosa.

— Você acha que um hospital é lugar para brincadeiras?

— Mãe! Ela me reconhece! Ela sabe quem nós somos! Não houve perda de memória!

Comemorou Vivian, como se tivesse acabado de vencer uma batalha.

— Por que vocês estão agindo tão estranho?

Kelly falou, ofegante, os olhos arregalados.

— Por que eu teria perda de memória por causa de um afogamento? Eu devo ter ficado pouco tempo na água, não precisa de exagero, estou bem!

Todos ficaram paralisados. Ergueram as sobrancelhas. Trocaram olhares apavorados. Ninguém ousou falar. Kelly sentiu um calafrio percorrer todo o seu corpo, da nuca até os pés. Algo estava definitivamente errado. Profundamente errado. Foi então que seu pai, com a voz pesada, uma voz que ela nunca tinha ouvido antes, disse, lentamente:

— Vamos ter que lembrá-la do que aconteceu.

Sua mãe, com lágrimas silenciosas escorrendo pelo rosto, apenas concordou com a cabeça, como quem confirma uma sentença.

E Kelly, teve medo. Teve medo da verdade.

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