O céu nublado ameaçava despencar em chuva a qualquer instante, e o cheiro de terra molhada já pairava pelo ar. Miguel caminhava pelas ruas de terra batida da pequena cidade de São Valentim, os sapatos afundando na lama a cada passo. Ele carregava nos ombros o peso de um saco de grãos, sentindo os músculos queimarem sob o peso e o suor escorrer pelas têmporas. O vento frio passava pela sua jaqueta fina, e a cada passo pesado, o mundo à sua volta parecia afundar um pouco mais.
Ele havia aprendido a carregar os pesos do mundo em silêncio. A mão calejada segurando firmemente o saco, os olhos fixos no caminho à frente. Sua casa era o próximo destino, uma construção pequena e humilde que ele conhecia em cada trinca, cada madeirinha rangendo. Dona Teresa, sua mãe, o esperava com aquele olhar severo que conhecia bem demais, embora carregasse, escondido, um certo orgulho pelo trabalho árduo do filho. Mariana, sua irmã mais nova, estudava para as provas na mesa da cozinha — ela tinha sonhos que escapavam àquela cidade, e Miguel faria o possível para ajudá-la a seguir adiante.
A porta da casa rangeu quando ele a empurrou com o ombro, a madeira velha e inchada pelo tempo resistindo. Dona Teresa estava de costas, mexendo uma panela sobre o fogão com movimentos decididos. O cheiro de comida simples, mas reconfortante, preenchia a casa.
— Demorou, Miguel — a voz dela soou áspera, mas o cansaço nos olhos denunciava sua preocupação.
— O caminhão atolou na lama lá embaixo, tive que ajudar a desatolar — respondeu ele, largando o saco de grãos ao lado da mesa de madeira, que tremeu com o impacto.
Ele passou a mão pelos cabelos curtos e bagunçados, deixando para trás manchas de poeira. Mariana levantou os olhos dos cadernos e ofereceu um sorriso cansado.
— Obrigada, mano. Vai ajudar bastante.
— É pra isso que tô aqui, né? — disse ele, tentando soar despreocupado, mas sentindo o peso de sua responsabilidade ecoar em cada palavra.
O relógio na parede parecia andar devagar demais, e os sons da cidade eram abafados pelas paredes finas. Miguel suspirou, já acostumado à rotina de carregar pesos, tanto físicos quanto emocionais. No entanto, a chegada de um carro novo, passando pela rua principal, trouxe uma movimentação incomum. Não era qualquer carro; era grande, preto e polido demais para pertencer àquele lugar. Ele cruzou a janela da cozinha, e todos na casa acompanharam o veículo com o olhar. Miguel sentiu um nó apertar-se no estômago.
— Quem será? — Mariana perguntou, com curiosidade brilhando nos olhos.
— Quem quer que seja, não deve ficar por muito tempo — resmungou Dona Teresa, virando-se para continuar seu trabalho.
Mas Miguel não tinha tanta certeza. A cidade era pequena demais para visitas de desconhecidos, e ele sabia que qualquer novidade poderia trazer consigo algo além do que aparentava.
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Mudanças e Um Novo Começo
No dia seguinte, a rotina na cidade começou como de costume. Miguel acordou antes do sol nascer, ajudando sua mãe e irmã com as tarefas domésticas antes de sair para trabalhar na fazenda próxima. Os campos ainda estavam cobertos por uma fina camada de orvalho, e o ar era úmido e frio. Ele respirou fundo, a umidade da manhã preenchendo seus pulmões, e começou a trabalhar, tentando afundar seus pensamentos no ritmo repetitivo de suas tarefas.
Foi então que ele a viu.
Na entrada da fazenda, próximo ao casarão principal, uma mulher observava ao redor. Cabelos escuros soltos ao vento, usando um vestido simples, mas claramente não adequado para a vida rural, ela parecia completamente deslocada ali. Os olhos dela varreram a paisagem até pousarem nele, e, por um instante, Miguel sentiu como se todo o mundo tivesse parado.
Laura.
Ele não sabia ainda quem ela era, apenas que não pertencia àquele lugar. A cidade, com suas casas simples e cercas desgastadas, parecia um universo completamente diferente do mundo de onde ela vinha. E talvez fosse exatamente isso que a tornava tão hipnotizante. Aquele contraste, aquela quebra na monotonia da vida de Miguel.
Ela se aproximou, sem hesitar, enquanto Miguel tentava entender por que aquela mulher estaria ali, a pé, com a expressão curiosa e ao mesmo tempo decidida. Ao se aproximar, ela o cumprimentou com um sorriso aberto, um sorriso que o deixou momentaneamente sem palavras.
— Olá, você trabalha aqui? — a voz dela era suave, mas carregava uma firmeza que não combinava com a delicadeza de sua aparência.
Miguel assentiu, ainda tentando encontrar uma resposta.
— Sim... trabalho, sim. Posso te ajudar?
— Ah, sim, meu nome é Laura. Eu... me mudei recentemente para a casa da minha família aqui. Estou tentando conhecer as redondezas.
Ela estendeu a mão para cumprimentá-lo, e Miguel, hesitante, limpou a própria mão suja de terra na calça antes de aceitar o gesto.
— Prazer, sou Miguel.
O toque foi breve, mas suficiente para que ele sentisse a suavidade da pele dela e o contraste gritante com suas mãos calejadas. Por um segundo, o mundo ao redor pareceu se dissolver, e Miguel se pegou observando-a, tentando entender o que exatamente aquela mulher significaria para sua vida.
Ela sorriu novamente, e Miguel viu algo naquele sorriso — uma promessa de mudança, algo que ele não conseguia nomear, mas que sabia que traria consigo mais do que apenas a simples presença de uma nova moradora.
Laura virou-se para olhar a paisagem, seus olhos brilhando com curiosidade.
— Sabe... parece tão tranquilo aqui. Diferente da cidade.
— É... é tranquilo. Mas tem seus problemas — Miguel disse, sem querer soar negativo, mas também sabendo que a cidade podia ser mais lama do que paisagem bucólica.
— Eu imagino. Bom... espero que possamos nos ver mais vezes, Miguel.
E com isso, ela se despediu, caminhando de volta na direção de onde veio, deixando Miguel ali parado, com a sensação de que algo dentro dele estava prestes a mudar.
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Reflexão e Expectativa
O restante do dia passou como uma névoa para Miguel, seus pensamentos sempre voltando para Laura. Havia algo naquele encontro, algo na maneira como ela se portava, que não se encaixava com o lugar e ao mesmo tempo parecia destinado a estar ali.
Ao voltar para casa à noite, exausto e sujo, ele se encontrou pensando em como a vida parecia ter um jeito estranho de surpreender. Ele se deitou em sua cama de madeira simples, sentindo o cheiro de terra e suor, e fechou os olhos, tentando afugentar os pensamentos que o inquietavam.
Mas era impossível não pensar nela. Naquele sorriso. Naquele olhar que parecia ter atravessado a lama da vida dele e enxergado algo que nem ele mesmo sabia que estava lá.
E Miguel sabia que aquela não seria a última vez que cruzaria com Laura. Algo estava apenas começando. Algo que ele não sabia ainda como chamar, mas que sentia crescer a cada batida de seu coração.
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O som da enxada cortando a terra era repetitivo e reconfortante. A cada golpe, Miguel deixava escapar um pouco da tensão que se acumulava dentro de si. O sol fraco daquela manhã parecia querer furar o manto de nuvens que cobria o céu, mas a chuva não dava trégua — apenas ameaçava, mas nunca caía. Ele estava sozinho no campo, como sempre. Era assim que gostava, só ele e o trabalho duro. A terra, apesar de molhada, respondia bem, e a enxada se movia como se parte de seu próprio corpo.
No entanto, por mais que tentasse, Miguel não conseguia afastar os pensamentos da mulher que havia conhecido no dia anterior. A lembrança de Laura, com seu vestido claro e o sorriso aberto, parecia cravada em sua mente, como uma imagem que se recusava a desvanecer. E mesmo que ele tentasse afundar seus pensamentos no trabalho, ela insistia em retornar. A suavidade do seu olhar, a forma como ela segurou sua mão, como se não se importasse com a aspereza e a sujeira das mãos de Miguel. Isso o incomodava e, ao mesmo tempo, o fascinava.
O barulho de um carro ao longe trouxe Miguel de volta à realidade. Ele levantou a cabeça, e o mesmo veículo preto do dia anterior se aproximava pela estrada lamacenta, criando um contraste gritante com o cenário rural. Era Laura. Desta vez, ela dirigia sozinha, e o carro se movia lentamente, balançando enquanto passava pelos buracos do caminho.
Ele observou enquanto ela estacionava próximo à cerca do campo. Laura saiu do carro com a mesma elegância casual de antes, mas agora parecia mais preparada para o ambiente, usando calças e botas. Ela acenou para Miguel, e ele sentiu um calor subir pelo pescoço, uma mistura de nervosismo e excitação que não sabia explicar.
— Oi, Miguel! — ela o chamou, com um sorriso que parecia iluminar todo o campo.
Miguel largou a enxada e limpou as mãos na calça, caminhando em sua direção. Cada passo que dava era como se atravessasse uma barreira invisível, que ele não sabia se estava preparado para cruzar.
— Oi, Laura... — ele respondeu, com um tom mais baixo do que pretendia.
Ela riu, um riso que soava como música para ele, uma melodia que destoava do silêncio usual dos campos.
— Espero não estar atrapalhando seu trabalho... É que eu queria te pedir um favor.
Miguel assentiu, sem saber exatamente o que esperar. Ela se aproximou, olhando-o nos olhos de forma direta e sincera, como se estivesse tentando decifrá-lo.
— Estou tentando entender melhor como as coisas funcionam por aqui. Minha família... Bem, eu estou com algumas terras para cuidar, e não faço a menor ideia de como começar. Achei que talvez você pudesse me mostrar, me explicar como as coisas funcionam por aqui.
Ele não sabia o que dizer. A ideia de passar tempo com ela, de tê-la ali ao seu lado, era ao mesmo tempo emocionante e assustadora. Ele se pegou desejando recusar, encontrar alguma desculpa para fugir daquela situação. Mas a forma como ela o olhava, como se realmente acreditasse que ele fosse a pessoa certa para ajudá-la, o impediu de dizer não.
— Claro... Posso te mostrar como a gente faz as coisas por aqui. Não é muita coisa, mas... — Miguel deixou as palavras desaparecerem, sentindo-se envergonhado de sua própria simplicidade.
— Vai ser mais do que o suficiente, eu garanto — respondeu ela, com um sorriso reconfortante. — E eu prometo que vou tentar não atrapalhar.
Miguel sentiu uma onda de calma passar por ele. Talvez não fosse tão difícil assim. Talvez pudesse mostrar a ela como plantar, como cuidar da terra, como respeitar o ritmo de uma vida mais simples. Talvez, só talvez, isso fosse trazer algo bom para ambos.
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Ao final do dia, Miguel se despedia de Laura com um aceno tímido, enquanto ela entrava em seu carro e partia. Ele a observou desaparecer pela estrada de lama, o coração batendo rápido demais para seu próprio gosto. Aquela tarde ao lado dela havia sido surpreendentemente agradável. Laura fazia perguntas inteligentes, ouvia com atenção, e, embora soubesse que aquilo era novo para ela, não reclamava do esforço. Pelo contrário, parecia encontrar uma espécie de prazer em aprender algo tão diferente de sua realidade.
A noite chegou, e ele se viu sentado à mesa com Dona Teresa e Mariana. O jantar era simples: feijão, arroz e carne seca. A conversa estava dispersa, como sempre, com Mariana falando de suas provas e Teresa reclamando de algum detalhe da casa. Mas algo na atmosfera havia mudado para Miguel, mesmo que ele não soubesse dizer o que era. Talvez fosse a presença de Laura que, mesmo ausente, parecia pairar sobre ele, trazendo uma sensação de esperança.
— Você está calado hoje, Miguel — Dona Teresa comentou, seus olhos afiados o estudando.
Ele deu de ombros, tentando parecer despreocupado.
— Só cansado, mãe. Nada de mais.
— Cansado de mais o quê? De novo com esses pensamentos aí? — ela insistiu, sem saber ao certo o que Miguel escondia, mas percebendo que algo diferente estava acontecendo.
Mariana olhou de relance para o irmão, com uma curiosidade mista de preocupação e interesse. Ela sabia ler Miguel como ninguém, mas optou por não pressionar. A rotina deles já era cheia de silêncio, e ela sabia que, quando ele quisesse, falaria.
Após o jantar, Miguel se retirou para o quarto, o corpo cansado do trabalho e a mente vagando para o encontro com Laura. Havia algo na maneira como ela falava com ele, como se enxergasse além da casca dura e dos erros do passado. Era uma sensação assustadora, mas também confortante, como se, de repente, houvesse alguém que acreditava que ele pudesse ser mais do que o que a cidade falava.
Ele pegou uma pequena foto que guardava escondida sob o colchão, uma lembrança do pai que não via há anos. Sempre que se sentia perdido, ele a segurava, como se buscasse algum tipo de força naquele homem que havia partido cedo demais. E naquela noite, ao olhar para a foto, Miguel sentiu algo diferente. Não era tristeza, não era raiva. Era esperança. Algo que há muito tempo ele não sentia.
E então ele se deitou, fechou os olhos, e pela primeira vez em muito tempo, a imagem que surgiu em sua mente antes de adormecer não foi do passado, mas do futuro. Um futuro incerto, é verdade, mas cheio de possibilidades. Um futuro onde ele podia ser mais do que a lama que o prendia.
E foi com esse pensamento que Miguel adormeceu, sem saber que aquela mulher, Laura, era a faísca que acenderia a chama de sua mudança.
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O silêncio da manhã estava sempre ali, preenchendo os espaços vazios entre o sol nascendo e os pássaros cantando. Miguel estava no campo novamente, e o peso da enxada nas mãos parecia mais leve do que de costume. Havia algo diferente na maneira como ele enxergava o trabalho: um tom de esperança, uma novidade que Laura havia trazido consigo sem sequer perceber. Desde a primeira conversa com ela, Miguel sentia como se as amarras invisíveis que o prendiam àquela vida começassem a afrouxar, e, apesar disso, ele tentava não se deixar levar por essa esperança. As raízes do passado ainda o puxavam para baixo, como a lama que afundava seus pés a cada passo.
Renato apareceu ao longe, caminhando pelo campo. Seus passos eram rápidos, cheios de energia, e sua expressão carregava a usual mistura de humor e preocupação. Miguel sabia que seu amigo de longa data não gostava de vê-lo se isolando; era como se a solidão de Miguel o inquietasse. Renato era uma lembrança viva dos tempos mais problemáticos, mas também a prova de que o passado, de certa forma, nunca estava tão longe quanto ele gostaria.
— Bom dia, rapaz! — gritou Renato, sorrindo largamente. — Pensei que você tinha sumido no meio da lama!
Miguel sorriu, mas era um sorriso contido, quase inseguro.
— E o que te traz aqui a essa hora? — perguntou ele, fincando a enxada na terra.
— Tava de bobeira, e pensei em te ajudar por aqui... E também soube que temos novidade na cidade — Renato lançou o olhar em direção à estrada onde o carro de Laura havia passado dias antes. — Ouvi dizer que tem uma moça bonita por essas bandas.
— Sim, tem — respondeu Miguel, tentando soar casual, mas sua voz traiu a ansiedade que sentia ao falar dela. — O nome dela é Laura, se mudou pra cuidar das terras da família.
Renato levantou as sobrancelhas, um sorriso divertido surgindo em seu rosto.
— E você já conhece a garota? Que sorte a sua, Miguel! E aí, vai investir?
— Não começa, Renato. Ela só tá tentando entender como as coisas funcionam por aqui. E eu tô ajudando. Só isso.
— Sei... — Renato se aproximou, dando um leve tapa no ombro de Miguel. — Eu te conheço, rapaz. Não esconde nada de mim. Mas fica esperto. O pessoal da cidade gosta de falar, e você sabe como é...
Miguel sabia. Ele sempre soube. Os rumores, os olhares tortos, o julgamento constante. Ser filho da Dona Teresa era uma bênção e uma maldição ao mesmo tempo; sua mãe tinha uma reputação de mulher forte, mas os problemas de Miguel na juventude tinham manchado o nome da família. A cidade nunca esquecia. A cidade nunca perdoava.
— Não tem nada acontecendo — respondeu Miguel, mais para si mesmo do que para Renato. — E mesmo que tivesse... Você acha que alguém como eu tem chance com alguém como ela?
Renato deu de ombros, uma expressão sincera de amizade surgindo em seu rosto.
— Não sei, cara. Mas nunca foi do seu feitio fugir de um desafio, né?
Miguel riu, mas foi uma risada nervosa. As palavras de Renato ficaram com ele enquanto trabalhavam lado a lado, arrancando ervas daninhas, limpando os sulcos de lama que se acumulavam entre os campos. Eles passaram horas assim, em um ritmo que era ao mesmo tempo exaustivo e reconfortante, como se os problemas fossem menores quando enterrados sob o peso do trabalho duro.
O Sussurro dos Segredos
Mais tarde naquele dia, Miguel se viu na praça central da cidade. Era a hora do intervalo para o almoço, e ele aproveitava para comprar algumas coisas que faltavam em casa. A praça era um ponto de encontro da cidade, sempre movimentada, com crianças brincando, senhoras trocando receitas e homens discutindo sobre a última colheita. Entre as conversas que pairavam pelo ar, os olhares de curiosidade de alguns conhecidos recaíam sobre ele, como se ele fosse sempre alvo de uma atenção que não desejava.
Foi então que ele avistou Laura novamente. Ela estava parada em frente à igreja, conversando com Padre Olavo. Sua postura era elegante, mas seu rosto parecia carregado por uma preocupação. Miguel hesitou por um momento. Não queria interromper, mas algo o atraía a se aproximar. Era como se o simples ato de estar perto dela trouxesse uma espécie de calma que ele não experimentava há muito tempo.
Padre Olavo notou Miguel e acenou com um sorriso caloroso, como se estivesse esperando que ele se aproximasse.
— Ah, Miguel! Venha, venha! — chamou o padre, a voz ecoando pelo ambiente. — Laura estava me contando sobre a ajuda que você está dando a ela. Fico feliz em saber que está ajudando a nossa nova moradora a se adaptar.
Laura virou-se e sorriu para Miguel. Ela parecia diferente ali, na praça, longe dos campos. Havia uma certa vulnerabilidade em seus olhos que ele não havia percebido antes, como se ela estivesse tentando encontrar seu próprio lugar naquele mundo novo.
— Eu estava dizendo ao padre que você é muito gentil em me mostrar como as coisas funcionam por aqui — disse Laura, seus olhos fixos nos de Miguel.
— Só faço o que posso — respondeu ele, tentando não parecer nervoso. — E como estão indo as coisas? Tá se adaptando?
— Sim... Aos poucos. É bem diferente do que eu imaginava. Mas acho que vou gostar daqui.
Padre Olavo observou os dois, os olhos sábios estudando a interação silenciosa entre eles. Ele sabia reconhecer quando algo especial estava surgindo, mas também sabia que precisava ser cuidadoso. Miguel era como um filho para ele, alguém que ele viu crescer e lutar contra seus próprios demônios. E Laura, a jovem que havia voltado à cidade por um motivo que ainda não tinha sido completamente revelado, também parecia carregar seus próprios mistérios.
— Bem, se precisarem de alguma coisa, estarei por aqui — disse o padre, se afastando com um sorriso complacente. — Fiquem à vontade.
Laura e Miguel ficaram ali, sozinhos por um instante, enquanto a praça fervilhava ao redor deles. Miguel podia ouvir o murmúrio das vozes, o vento soprando pelas árvores e o som distante de crianças brincando. Era como se o mundo tivesse desacelerado apenas para eles.
— Queria te agradecer, Miguel — disse ela, com uma sinceridade que o desarmou. — Você tem sido muito paciente comigo, mesmo sem me conhecer direito.
— Não precisa agradecer, Laura. Só... acho que todos merecem uma chance de conhecer como a vida realmente é aqui.
Ela assentiu, mas havia algo a mais em seus olhos, algo que Miguel não conseguia decifrar. Uma sombra, talvez, ou um segredo escondido atrás daquele sorriso gentil. Ele quis perguntar, quis entender o que a trazia ali e por que ela parecia tão sozinha, mesmo cercada por pessoas. Mas se conteve. Não era o momento certo.
— Talvez um dia você me conte mais sobre você, Miguel — disse ela, quase como se estivesse lendo seus pensamentos. — Eu sinto que há muito sobre você que ainda não sei.
Ele sorriu, mas foi um sorriso que não chegou aos olhos.
— Talvez, um dia — respondeu ele, tentando manter o tom leve. — Mas até lá, acho que temos muito trabalho nos campos para fazer.
Eles riram juntos, uma risada que soava como um alívio, uma trégua no meio do caos silencioso de suas próprias vidas. E naquele instante, sob o céu cinzento e as nuvens que prometiam chuva, Miguel sentiu que, talvez, estava tudo bem se deixar sonhar.
Se, através da lama, ele pudesse encontrar uma nova estrada, Laura poderia ser o primeiro passo.
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