Asthara Varyneus
...***...
Com certeza o final de um longo e exaustivo dia de aulas, havia se tornado o meu momento preferido. Embora assistir as aulas impactantes e carismáticas do Sr. Aneton, meu professor de mitologia, fossem uma das coisas que eu mais gostava naquela escola, ainda assim não se comparava com finalmente poder voltar para casa.
Arrumei a minha mochila de forma apressada e esperei Kaio estar pronto para irmos embora. Kaio era meu melhor amigo desde sempre, moramos perto e sempre estudamos nas mesmas escolas.
Sentado no fundão da sala, o moreno levantou o polegar em confirmação e juntou-se a mim para sairmos da sala.
— Você é lento demais, Kaio. — repreendi quando ele chegou bem perto da minha carteira.
Ele bufou, um sorriso tranquilo nos seus lábios.
— Você que é apressada demais. — murmurou de volta — Vamos para casa. — disse, recebendo a minha mochila e a colocando no ombro oposto a sua.
Apenas assenti, estava mortinha para me deitar na minha cama e dormir o resto do dia.
Estávamos a sair da sala quando alguém chamou o meu nome:
— Srta. Varyneus. — me virei para trás, me esquivando de alguns adolescentes que assim como eu, corriam apressados para fora daquele lugar.
— Sim — respondi ao homem conhecido — Em que posso ajudá-lo, Sr. Aneton? — perguntei ao homem mais velho.
Lucas Aneton, era um homem por volta dos 45 anos, de estatura baixa e um corpo rechonchudo. Ele era um bom professor, aparentava ser gentil e eu gostava muito das suas aulas, mas havia algo nele que sempre me deixava alerta. Ou era porque simplesmente não gostava da maneira que ele olhava para mim. Era repulsiva.
— Nada de mais. Como vai o clube de jornalismo?
Achei estranha a sua pergunta, não a pergunta em si, como presidente do clube de jornalismo era comum fazerem-me essa mesma questão por parte dos professores e até alguns alunos, mas o Sr. Aneton pelo que eu conhecia dele, não era o tipo de professor que se envolvia nesse tipo de assunto.
— Muito bem, obrigada. — foi tudo que eu respondi, eu realmente estava com pressa de ir para casa, mas não queria ser grosseira.
— Eu vejo. Vi a machete que você escreveu sobre o festival de boas-vindas dos novos alunos. Estava muito bom. — disse, se sentando na sua cadeira.
— Obrigada, professor.
Sr. Aneton estava prestes a dizer mais algo, mas a presença de Kaio cortou todo o seu raciocínio.
— Thara? — chamou o meu amigo, ancorado na porta da sala e com um olhar estranho direcionado para o nosso professor — Vamos embora. — Kaio simplesmente pegou a minha mão e puxou-me para longe do nosso professor.
Segui os seus passos largos para que eu não escorregasse nos meus próprios pés e desse de cara no chão.
— Ei, Kaio!
— O que foi? — perguntou ainda me puxando para o estacionamento da escola.
— Eu é quem pergunto. O que foi isso? — perguntei, quando chegamos perto do seu carro.
Kaio soltou o meu braço lentamente e passou as mãos nos fios revoltos da sua cabeleireira escura. Os seus olhos se voltaram aos meus, e eu não os reconheci por um momento.
— Fique longe daquele homem, Asthara — alertou — Tem algo de muito estranho com ele. Não confio nele.
Assenti, pois, algo também não me cheirava muito bem na história de Lucas Aneton. Mas, o que mais foi estranho foi a reação de Kaio. Ele só reagia assim quando sabia de alguma coisa, mas não falei nada porque eu sabia que ele não ia responder, não agora. E, porque eu confiava na sua capacidade de ler pessoas tanto como no meu instinto.
— Não se preocupe. Eu também não confio nele, bebezinho Del Rey. — brinquei, o chamando pelo apelido que eu sabia que ele tanto odiava.
Kaio revirou os olhos, um sorriso tranquilo no rosto em que ele lutava tanto para fazer uma carranca, sem sucesso.
— Não começa, Tara Varinha. — rebateu, entrando no carro.
Abri a porta de passageiro e entrei logo a atrás.
— É Varyneus! — contestei, ele sempre conseguia me tirar do sério com esse apelido.
Kaio riu, fechando o cinto de segurança assim como eu. Ele virou-se para mim, o sorriso zombeteiro brilhando nos seus lábios.
— Oh, então você admite que o seu nome é Tara? — foi a minha vez que revirar os olhos e dar um tapa no seu ombro.
— Idiota. — murmurei embirrada, mas logo dando um sorriso — Você pode me levar ao Nycolas primeiro? — perguntei assim que ele deu a partida.
O Nycolas é um pequeno restaurante no centro da cidade em que servem as melhores comidas de sempre, o motivo que me fazia ir tanto para aquele local além da boa comida é a dona. Nona, uma amiga de longa data do meu pai e a minha madrinha e a sua filha, Nora Nycolas, minha amiga e a de Kaio.
— Você tem ido muito ao Nycolas, ultimamente. — Kaio ponderou, focado nas ruas a nossa frente.
Dei de ombros, relaxando na cadeira.
— Eu gosto de lá. — falei — Você também tem ido muito lá que eu sei, não tente negar.
Kaio sorriu malicioso, curvando uma das poucas ruas antes do restaurante.
— Claro que eu tenho ido. Eu não vivo sem a comida da Nona. — o seu rosto se iluminou nesse segundo, como se apenas falar de comida o iluminasse por completo.
Mas embora nós gostássemos muito da comida de Nona, eu sabia que aquela não era o único motivo.
— Seu mentiroso — apontei assim que ele parou o carro do outro lado da rua do Nycolas — Você tem ido ver a Elise! — como se fosse apanhado no flagra meu amigo congelou.
Eu soltei uma gargalhada saindo da sua, BMW série 1 e fechando a porta logo em seguida.
— Não esquenta, Kaio — entrelacei o meu braço ao seu quando atravessamos a rua — Eu sei que você gosta da Elise já a um tempo.
Não parecendo nada surpreso, ele soltou um riso contido, e um suspiro resignado.
— Parece que eu sou um livro aberto para você, Asthara. — disse.
Eu sorri confiante, andando a passos largos.
— Claro que sim. Eu te conheço a minha vida inteira, bebezinho Del Rey. — falei de forma confiante.
— Se você me chamar assim mais uma vez, eu te bato. — gargalhei alto fugindo dele. Nunca que eu pararia de o chamar bebezinho Del Rey.
— É mais provável eu te bater, do que o contrário. — falei assim que abri a porta de vidro do restaurante.
O sininho no alto da porta tilintou assim que nós adentramos o ambiente, anunciando a nossa chegada.
O Nycolas estava especialmente cheio naquela tarde de segunda-feira. Alguns estudantes e fregueses conversavam animados enquanto apreciavam as suas próprias refeições.
Atravessamos todas as outras mesas e nos sentamos nas poucas, das cadeiras restantes do enorme balcão castanho.
— Asthara! Que bom ver você. — Nora gritou do outro lado do balcão, segurando as minhas mãos animada.
— Também é bom ver você, Nora. O final de semana sem você, foi tedioso. — falei a observando andar apressada entre o pequeno espaço servindo bebidas e anotando pedidos.
— Desculpe por isso amiga — o semblante da loira tornou-se culpado — Podemos ficar esse fim de semana todinho juntas.
Sorri agradecida quando ela dispôs um copo de suco de limão a minha frente, já sabendo que seria o que eu provavelmente pedia.
— Não precisa se desculpar. Como está o Matthew? — Nora sorriu para um novo cliente o atendendo logo em seguida. — Como sempre, está uma delícia.
Matthew era o namorado dela, com quem ela foi passar um divertido final de semana nas praias de Miami.
— Muito bem! Mas teve que voltar para a universidade. Acho que só nos veremos no próximo mês. — me senti mal por ela, ter o namorado estudando em outra cidade deveria ser difícil.
Kaio coçou a garganta forçadamente do meu lado, chamando atenção da garota de olhos castanhos.
— Eu também estou aqui, Nora. Machuca o meu coração ser ignorado dessa forma, sabia? — perguntou com a mão no coração, uma falsa expressão de choro no seu olhar azul.
Nora olhou surpresa para o nosso amigo de infância, como se realmente só o tivesse notado agora.
— Oh, meu deus, Kaio. Quando você chegou? — perguntou abobada, agarrando o seu rosto com as duas mãos e os olhos brilhando.
— Eu... cheguei com a Thara. — se esforçou a dizer, com as mãos de Nora esmagando as suas bochechas.
— Sério? — perguntou o soltando — Não é para menos, Asthara é uma figura notável demais. Ela ofusca qualquer um ao seu redor. — a loira disse confiante voltando a servir os seus clientes.
Kaio bufou uma risada, mas logo ficando sério e comendo o arroz com bife que havia pedido antes.
— Não culpem o meu cabelo de novo. — murmurei bebendo da minha bebida.
Os dois riram cúmplices, me olhando divertidos.
— Claro que é o seu cabelo! — disseram juntos e eu revirei os olhos — E os olhos! — continuaram.
Eles sempre diziam que o meu cabelo chamava atenção demais. Eu sabia que o meu cabelo vermelho sangue revolto de cachos chamava a atenção em contraste com a minha pele negra e os meus olhos dourados, mas eles exageravam. Não era tão chamativo assim, eu acho.
— Por que só tem você e o Nolan atendendo? — perguntei apontando ao rapaz clarinho que apontava os pedidos e levava a cozinha — Onde estão Nona e Elise?
Nora estava servindo um refri para uma garota morena que havia chegado a pouco quando respondeu:
— Mamãe e Ellie foram fazer compras. Temos tido muita clientela ultimamente e as compras estão acabando mais rápido do que o esperado. — respondeu feliz, sabendo que o negócio da família estava prosperando.
Eu gostava de a ver feliz, e ficava ainda mais feliz que o sonho de Nona estava finalmente se realizando.
Ficamos mais tempo no Nycolas do que esperado. O sol já estava quase se pondo quando decidimos ir para casa.
— Até amanhã, Nora. Eu te ligo assim que chegar em casa. — me despedi, com Kaio perto da porta de vidro.
— Até amanhã, Tha...— a minha amiga parou a fala no meio e me olhou com uma expressão séria — Tenha cuidado esses dias e não ande sozinha.
O olhar sério no seu rosto não contrastava nada com o seu estado de humor de sempre, me deixando apreensiva.
— Por quê? Aconteceu alguma coisa? — perguntei apertando a alça da minha mochila.
— Parece que tem um animal selvagem a solta na cidade. — disse, ainda com a expressão séria.
— Animal selvagem? — Kaio perguntou entrando na conversa. Nora assentiu.
— Parece que o Sr. Moris, foi atacado ontem a noite na sua oficina e ainda continua desaparecido. A polícia só encontrou um rastro de sangue e o que pareceu ser o osso de um dos seus braços.
Um arrepio passou pelo meu corpo, suor se acomodando na minha testa. Eu morei em Screamsville a minha vida toda e nunca se ouviu casos de desaparecimentos, animais selvagens e nem nada atacando moradores do dia para a noite.
Os únicos registos que se tinham de animais selvagens atacando pessoas eram retratados como monstros que apareciam em noites de lua cheia e comiam humanos. Tudo isso eram apenas rumores, mas numa cidade coberta por florestas e esquecida do mundo tudo era possível.
Embora eu tentasse, não conseguia tirar da mente as palavras de Nora e os ‘flashs’ do pesadelo que eu tive na noite anterior.
Havia algo de muito estranho acontecendo comigo e com essa cidade e a notícia de um animal selvagem atacando pessoas só me deixava mais alerta.
Algo me dizia que não era apenas um animal selvagem, o meu instinto gritava isso. Parece que há mistérios sombrios batendo nas portas de Screamsville!
Asthara Varyneus ( 19 anos)
Asthara Varyneus
...***...
O dia de aulas passou correndo e mesmo eu tentando, não consegui me focar em nada que os professores diziam. A minha mente estava nos acontecimentos estranhos e na aura sombria que tem circulado Screamsville a dias.
O desaparecimento de Daniel Moris, afetou a cidade toda. Não se ouvia falar de outro assunto que não fosse esse, e mesmo não querendo tocar no assunto mais tarde ou mais cedo eu tocaria. Não era por medo, eu só não sabia o que pensar.
Se observar na história da cidade verão que tem vários registros de mortes por "animais selvagens" que surgiram em noites de lua cheia, e Daniel Moris desapareceu ou foi morto numa noite de lua cheia. Isso já era suspeito o suficiente.
Lobisomens? Muitos se perguntavam e deixavam a questão de lado, porque parecia algo inacreditável demais para as suas mentes limitadas se quer cogitarem. Mas, e se for? E se realmente existirem? E se eles estiverem a solta?
Existem muitas coisas no desconhecido que os humanos não sabem e talvez, lobisomens seja uma delas. Talvez eu só esteja pensando demais ou só precise de dormir mais. Dormir definitivamente não seria fácil devido aos pesadelos que me têm visitado a cada noite.
— Você parece cansada. — Kaio falou quando as nossas aulas acabaram — Não dormiu o suficiente?
Neguei com a cabeça soltando um bocejo involuntário.
— Bem que eu queria — murmurei, arrumando meu caderno e livro de economia na mochila — Mas eu não estou conseguindo.
O meu melhor amigo me analisou em silêncio antes de chegar a sua própria conclusão.
— Pesadelos, Asthara? — perguntou me acompanhando pelos corredores da escola Destiny.
— Pesadelos, Kaio. — confirmei, a minha cabeça latejando.
Kaio segurou a minha mão, apertando os seus dedos nos meus em sinal de conforto.
— Achei que haviam parado. — sussurrou, a sua frase quase se perdendo aos passos e vozes de alunos barulhentos.
Apertei os meus dedos nos seus, necessitando daquele calor amigável.
— Eu também. Mas parece que eles não vão me largar tão cedo. — o enviei um meio sorriso resignado.
Quando eu era mais nova, passei por uma situação perigosa e estava a beira da morte, aconteceram tantas coisas naquela noite que me traumatizou até hoje. Eu demorei um ano mais que outras crianças para começar a estudar porque tinha que ir ao psiquiatra todo santo dia, ou ficar simplesmente presa numa cama de hospital por surtos e pesadelos que não me deixavam dormir.
Foi um tempo difícil. Mas eu achava que estava a superar, já fazia mais de um ano que os pesadelos não vinham, eu estava bem e pensava que estaria melhor, mas desde o desaparecimento do Sr. Moris, eles voltaram e têm-me atacado com força.
Kaio sempre esteve lá para mim, mesmo quando criança, ele foi a minha luzinha no fim do túnel e ainda é. Quando criança ele atrasou um ano na escola só para ficar comigo e me fazer sentir melhor. Ele era um ótimo amigo, o melhor dos melhores e eu não podia pedir melhor.
— Eu estou aqui contigo Thara. Sempre vou estar, não importa para o que seja, sabe que pode contar comigo sempre. — os seus olhos não encontraram os meus quando sussurraram verdadeiros.
Os meus lábios se curvaram num sorriso discreto, feliz e agradecida.
— Eu sei, bebezinho Del Rey. — nós dois rimos, relaxados. Eu sabia que podia contar sempre com ele, do mesmo jeito que ele podia contar comigo.
Eu podia ligar para ele as três da manhã dizendo que eu precisava dele que ele viria no segundo seguinte. E ele sempre viria, o meu melhor amigo Kaio Del Rey era um verdadeiro herói, embora não tenha um cavalo branco, uma armadura dourada e uma capa vermelha. Ele seria sempre o meu herói.
***
Folheei as páginas do pesado livro de registros da cidade pela milésima vez. As páginas antigas e desgastadas com o tempo me faziam gastar os únicos resquícios de paciência e cuidado que eu tinha para não as rasgar em descuido.
O desaparecimento de Daniel Moris fez-me perceber que eu precisava me inteirar sobre casos como estes, por isso mesmo aqui estava eu, numa bela quinta-feira presa na biblioteca da cidade pesquisando sobre tudo que pudesse me ajudar e me dar alguma pista do que está acontecendo.
Mas, para a minha infelicidade e total perda de tempo, não havia muito naqueles livros cobertos de poeira que pudessem me ajudar. Além de que eu já havia lido a maioria dos registros sobre mortes e desaparecimentos estranhos de Screamsville.
Levantei da cadeira esticando os meus braços doloridos, aquela cadeira dura quase que roubava a pouca bunda que me restava. Fechei todos os livros que havia pegado e os levei para as suas devidas prateleiras. Quando estava a colocar o último livro no lugar, outro chamou a minha atenção.
Estiquei o meu braço para cima puxando o livro de capa vermelha e dura.
Os demônios de Screamsville
Era o título do livro. As letras estavam desenhadas em um dourado chamativo, letras bonitas e bem detalhadas, mas nada do nome do autor. Ponderei em ficar mais algum tempo na biblioteca, mas já eram quase cinco da tarde, e eu não queria chegar tarde em casa, muito menos com um animal selvagem a solta.
Decidida, arrumei o meu bloco de notas e as minhas canetas na pasta. Segurei o livro nas mãos e me dirigi até o balcão da bibliotecária.
— Senhora Margot — chamei pela idosa de pele enrugada que dormia de forma confortável no seu horário de trabalho.
Ela abriu um olho preguiçosamente por trás das lentes redondas e depois o outro, me olhando entediada.
— Ashara. — ela disse, me chamando da mesma forma errada desde o fundamental.
— É Asthara, senhora Margot. — corrigi pela milésima vez na minha existência, a senhora de idade pareceu não se importar e deu de ombros.
— É a mesma coisa. — claro que não era, mas eu não disse isso.
— Eu quero levar esse livro, duas semanas é possível? — apontei para o livro com o título nada criativo.
Senhora Margot, olhou para mim e depois para o livro umas sete vezes, como se ponderasse e soltando um suspiro, me olhou daquela mesma forma estranha que me olhava desde que eu comecei a visitar a biblioteca a uns anos atrás.
— Você pode ficar com ele até para o resto da sua vida. Não é como se as pessoas fossem tão estranhas que levariam um livro com um título desses em casa. — apenas sorri, porque se não, eu xingaria essa velha desmiolada.
Não acredito que ela me chamou estranha assim, na lata. Sem se importar com o meu conflito interno, ela apenas pôs o livro numa sacola e entregou-me, nem me dando tempo para assinar no registro da biblioteca. Ela praticamente me expulsou, como se estivesse feliz de se livrar do livro com título macabro.
— Que velha maluca. — murmurei comigo mesma, ainda analisando o livro peculiar e que por ironia do destino eu nunca havia visto.
O que de facto era inusitado, porque eu já li a maioria dos livros daquela biblioteca. Lá é como se fosse praticamente a minha segunda casa, as vezes eu passava mais tempo lá do que na minha própria casa.
Tão fascinada com o livro novo ou talvez antigo e estranho, não prestei atenção por onde eu andava e acabei tombando com algo ou alguém.
O impacto impulsionou o meu corpo para trás, tentei me equilibrar, mas acabei me enroscando nos meus próprios pés, fechei os meus olhos e estava prestes a me dar a maior queda do ano quando alguém me segurou e impediu que eu caísse.
As mãos do desconhecido envolveram a minha cintura e a minha nuca me prendendo ao seu corpo anormalmente quente. Engolindo em seco, abri os olhos e deparei-me com o que pareceu um olhar estrelado. Olhos violetas.
Os olhos mais lindos e claros que eu já havia visto. Eram como estrelas na noite, belos. Me perdi naquele olhar, na sensualidade escondida entre eles que quase me esqueci como se respirava.
— Tudo bem?
Porra!
Que ser humano tinha aquele tipo de voz, tão másculo e aveludadamente rouca?
Demorei a raciocinar que era comigo que ele falava. O desconhecido demorou a me soltar, o que evidentemente eu não queria que acontecesse, o seu olhar percorrendo o meu corpo de forma lenta.
— Ah... Tudo, estou bem. Obrigada — finalmente a minha voz saiu, me livrando de um constrangimento maior — E, me desculpe por tombar em você, eu estava com a cabeça nas nuvens.
Finalmente ergui os meus olhos aos seus, de novo, e pude notar o quão alto e forte o seu corpo era em relação ao meu. A sua pele era branca, muito branca, tão pálida e o seu cabelo... Branco, como a mais pura neve. A porra de um albino gostosão.
A linha do seu maxilar era forte, a sua mão era desenhada por veias, um nariz fino e longo e os seus músculos se desenhavam na camisa preta que ele usava.
— Deveria ter mais cuidado — alertou, se abaixando e pegando o meu livro do chão, ele olhou a capa e depois o nome e deu um sorriso de lado — Que gosto peculiar, não sabia que as mulheres de agora são fãs de histórias de terror antigas.
Recebi o livro das suas mãos, agradecendo com um aceno de cabeça.
— Nem todas. — comentei simplesmente, ainda o observando.
A sua cabeça se curvou levemente para o lado, em curiosidade.
— Então, você é uma exceção srta.? — deu uma pausa, esperando que eu me apresentasse.
Estendi a minha mão, dizendo o meu nome:
— Varyneus — eu disse — Asthara Varyneus.— os seus dedos envolveram os meus de forma leve e cuidadosa como se temesse quebrar algum osso.
— É um prazer conhecê-la, srta. Varyneus — ele se curvou levemente deixando um beijo no dorso da minha mão, galantemente — Pode me chamar de Viktor. Viktor Bestlin. — elegantemente ele soltou a minha mão.
Bestlin. Um nome com uma pronúncia tão forte que enviou arrepios ao longo da minha coluna e uma sensação avassaladora de... Familiaridade.
— Você é novo na cidade, Sr. Bestlin? — perguntei curiosa, eu nunca havia o visto antes. E numa cidade pequena como Screamsville, todo o mundo conhece todo o mundo.
E o facto de eu nunca ter o visto era um mistério, ainda mais com a sua figura tão... notável.
— Novo não seria a palavra certa para descrever — as suas mãos foram aos bolsos da calça jeans preta que usava — Mas, creio que pode se dizer que sim.
Fiquei confusa com a sua resposta, mas não tive tempo de dizer nada, aquele homem misterioso simplesmente passou por mim e começou a andar na direção oposta.
— Sinto que ainda a verei muitas vezes, srta. Varyneus — disse misteriosamente, o seu tom se tornou quase um sussurrar — Mal posso esperar. — e sem mais nem menos ele virou a esquina e desapareceu do meu canto de visão, a sola de suas botas em nenhum momento emitiram som algum.
Fiquei um bom tempo observando onde ele havia ido até me virar e seguir o meu próprio caminho. Assim que dei o primeiro passo, senti que pisei em alguma coisa.
Levantei a sola do meu all star preto e encontrei uma pulseira de prata com o pingente de um lobo e o nome Bestlin encravado nele. Viktor Bestlin havia deixado cair a sua pulseira.
Corri o mais rápido que pude até a esquina onde ele curvou para o devolver a sua pulseira, mas tudo que encontrei assim que curvei a mesma esquina, foi uma rua vazia, sem nenhum vestígio de que um homem acabou de a curvar a apenas alguns segundos.
Perguntei a qualquer um que passasse para saber se alguém o viu, mas tudo que havia sobrado da sua presença era a pulseira e a forte impressão que ele causou em mim
Asthara Varyneus
...***...
Depois do meu pequeno encontro com o homem chamado Viktor Bestlin, não consegui o tirar da minha cabeça. Ainda tentei o procurar pelas ruas a seguir, mas era como se ele tivesse desaparecido como fumaça ao vento, o que era estranho. Ou ele andava rápido demais, ou simplesmente desapareceu, o que talvez fosse improvável.
Depois de quase meia hora o procurando, desisti e decidi voltar para casa. As ruas estavam vazias e isoladas, como se todos temessem a atravessar. Pouquíssimas pessoas estavam circulando, o que não era normal naquele horário. Screamsville podia ser uma cidade pequena, mas isolada não era.
Observei mais uma vez a pulseira de prata tentando pensar numa forma de a devolver ao dono. Eu não o conhecia, mas seu sobrenome não era estranho, talvez papai o conheça e fale-me onde fica a sua casa.
Tendo isso em mente, apressei os meus passos para chegar em casa o quanto antes. A minha casa não era tão longe da biblioteca, o que facilitava ir e vir a qualquer horário do dia e por isso mesmo foi possível ver a casa pintada em tons de branco e marrom ao virar a próxima esquina.
As casas da avenida mors seguiam o mesmo padrão, uma vivenda primeiro andar, com um pequeno jardim em frente a casa, uma varanda, um quintal na parte de trás e uma garagem acoplada a casa. Alguns meninos brincavam em frente as casas do outro lado da rua entusiasmados enquanto corriam e gritavam nomes e festividades com a sua bola de futebol bailando nos seus pés.
A minha casa era um das poucas que fugia a esse padrão, uma cerca cobria a propriedade e algumas câmeras de vigilância estavam dispostas a lugares estratégicos. O meu pai era alguém que levava a segurança a sério e muito, não era para tanto já que ele era o delegado da cidade.
Girei a chave na fechadura do portão a abrindo num clique silencioso, fechando a porta atrás de mim, subi os pequenos degraus que davam a varanda de casa e abri a porta branca, fechei a porta atrás de mim e suspirei satisfeita por finalmente estar no conforto do meu lar.
— Finalmente em casa! — festejei comigo mesma.
Não demorou até que uma bola de pelo surgisse a correr da cozinha e se jogasse nos meus braços, a sua cauda se movendo de forma animada, enquanto os seus latidos preenchiam o ambiente.
— Lenon! — sorri animada, fazendo carinho nas suas orelhas felpudas e castanhas.
O golden retriever castanho tinha mais energia do que eu poderia aguentar.
— Quem é o cachorrinho mais fofo? Quem é? — usei um tom mais brincalhão o ouvindo latir em resposta — Claro que é você, o meu neném. — deixei um beijo na sua cabeça.
Lenon era um cachorro adulto e pesado, ele está comigo desde os meus onze anos e nunca mais nos separamos. Era parte do meu coração.
— Asthara? — a voz conhecida chamou.
Ergui os meus olhos para o homem da minha vida. O meu pai estava saindo da cozinha, a calça azul que vestia era coberto pelo seu avental rosa de bolinhas brancas que ele insistiu em comprar um ano atrás e não larga mais.
Sorri com a cena, não conseguia ficar seria sempre que eu o via com aquele "inovador" como ele diz, avental.
— Não ria de mim, garota. — alertou, apontando a espátula na minha direção, ergui as mãos no ar em sinal de rendição.
Cheguei perto o suficiente e o dei um abraço forte, os nossos braços envolvendo o corpo do outro.
— Boa tarde, papai. — na ponta dos pés, deixei um beijo estalado na sua bochecha, o sujando um pouco com o meu gloss.
Papai riu, limpando o brilho labial no seu rosto.
— Boa tarde meu amor — respondeu — Como foi a escola? — perguntou, seguindo para a cozinha e eu segui-o.
Quase revirei os olhos para a sua pergunta, mas meu semblante já foi resposta o suficiente.
— Deixa eu adivinhar — levantou as mãos em frente ao meu rosto me parando — Tedioso. — imitou-me, dizendo a palavra de forma arrastada e proposital.
Nós dois rimos, achando graça. Assenti em resposta e me sentei em uma das cadeiras dispostas ao balcão observando os seus movimentos sincronizados naquele espaço que ele tanto conhecia.
Lenon se juntou a mim, brincando no meio das minhas pernas enquanto eu fazia carinho na sua cabeça.
— Foi sim. O que você está a cozinhar, Sr. Varyneus? — brinquei, apoiando um dos meus braços no balcão de mármore.
O homem de pele negra obsidiana, apenas sorriu, me olhando pelo canto dos olhos.
— Adivinhe. — foi tudo que ele disse, atiçando a minha curiosidade e o meu estômago.
Observei os ingredientes dispostos pela cozinha, alguns que já foram utilizados. Tinha alguns legumes, carne e frascos de tempero.
— Macarrão com almôndegas? — tentei, mas tão logo não vi nada que indicasse que houvesse macarrão.
E a minha resposta chegou em confirmação:
— Não. — o meu pai riu da minha cara, se apoiando do outro lado do balcão com só cotovelos — Tente de novo. Observe ao redor e veja o que possa te ajudar a chegar a uma conclusão de forma calma.
Assenti a analisar os ingredientes dispostos na mesa e no balcão. Pimenta, batata-rena, couve e mais outra diversidade de ingredientes. Um macarrão com almôndegas não levava todos aqueles ingredientes.
Então respirei fundo e observei mais uma vez, uma luzinha se acendendo no final do túnel.
— Carne de panela! — tentei outra vez, dessa vez mais confiante e não no pim, pam, pum.
— Está certo. Mais dois pontos para a Varyneus júnior. — papai deu aquele típico sorriso brilhante dele.
Ele sempre parecia sério, mas ficava deslumbrante quando ria, as suas feições brilhavam. E no jogo do "ache e descobre" que nós inventamos eu via-o rir muitas vezes, quando eu estava ou ele errava algo que eu o mandava descobrir. Esses eram os nossos melhores momentos.
— Agora, senhorita, vá tomar um banho e venha jantar com o seu velhote. — eu sorri com o seu exagero, me levantando da cadeira.
— Você nem é velho papai. — retorqui, pegando a minha mochila no braço da cadeira e sendo seguida por Lenon.
— Ah não? — perguntou.
Eu neguei, subindo as escadas.
— Não. Você é um jovem bonito e ‘sexy’ que todas as policiais da delegacia querem pegar. — a sua gargalhada explodiu divertida, e eu juntei-me a ele.
— Vá tomar logo o seu banho, Asthara.
— Sim, chefe! — imitei os seus companheiros de trabalho, subindo as escadas correndo com Lenon.
Ainda pude ouvir a sua voz murmurar e depois soltar uma risada.
Onde já se ouviu, a sua filha te chamar ‘sexy’?
Sorri, me infiltrando nos corredores da casa. Fui directo para o meu quarto e atirei a minha mochila na cama onde Lenon foi deitar e retirei os meus sapatos, indo me trancar no banheiro logo em seguida.
Retirei a roupa e a pus no cesto da roupa suja, prendi o meu cabelo num coque mal feito e pus-me debaixo do box. Um suspiro relaxado saiu por entre os meus lábios quando a água morna tocou a minha pele. Banhei-me de forma preguiçosa, aproveitando ao máximo a sensação gostosa da água em contacto com o meu corpo.
Quando sai do banheiro, envolta a toalha branca, Lenon olhava fixo para a minha mochila tentando a abrir ouvindo o som de notificação caindo.
— Você vai acabar rasgando a minha mochila, Lenon. — comentei, retirando a mochila das suas patas curiosas e a abri tirando de lá o meu celular.
Havia algumas mensagens de Kaio e de Nora, os dois estavam perguntando se eu estava bem e se já estou em casa. Eu havia esquecido completamente de os avisar.
Enviei uma rápida mensagem aos dois, e desculpando-me por os preocupar, porque conhecendo os meus amigos e do jeito que são já estavam quase entrando em desespero.
Coloquei o celular a carregar, vesti-me e desci as escadas seguida de um Lenon brincalhão que brincava a todo o momento com as amarras da calça do meu pijama.
— Voltamos — avisei, chamando a atenção de papai, ele estava distraído, a expressão distante enquanto lia alguma coisa no celular — Aconteceu alguma coisa, pai?
Preocupei-me com a expressão no seu rosto, mas ele logo deu um sorriso tentando tranquilizar-me.
— Nada com que tens que se preocupar — então havia acontecido algo — São apenas algumas coisas do trabalho. Agora vamos comer.
Chamou-me com as mãos, seguindo para a sala. O segui, mas não antes de servir um pouco de ração e água para Lenon e o desejar uma boa apetite.
Segui os seus passos e sentei-me na cadeira a sua frente. A mesa de seis lugares sempre me parecia grande demais quando havia só nós dois sentados nela.
Papai abriu a travessa com o nosso jantar, o cheiro de carne, legumes e vegetais enchendo o ambiente e dando-me água na boca.
Como sempre o teimoso senhor Martin Varyneus não deixou eu servir-me, e ele próprio o fez, como fazia quando eu era pequena. Mesmo não querendo admitir, eu gostava muito desses miminhos dele.
— Está uma delícia, papai! — exclamei quando comi a primeira colherada de carne e batatas.
— Eu sei disso, fui eu quem cozinhou — se enalteceu, convicto das suas ótimas habilidades culinárias — Agora coma e não fale de boca cheia. — assenti, devorando o meu jantar.
Enquanto o jantar transcorria, conversamos de vários assuntos bobos e aleatórios do nosso dia, nossas risadas, conversas jogadas fora e os latidos de Lenon preencheram o ambiente aconchegante.
— Amanhã, você tem trabalho, pai? — perguntei assim que terminamos de arrumar a loiça que havíamos lavado.
O meu pai assentiu, os seus olhos negros em mim.
— Só no período da tarde, estarei livre a manhã toda. — agora foi minha vez de assentir — Algum problema, filha? — neguei.
— Eu só quero conversar, faz um tempo que você não tem vindo em casa. — esse era o principal motivo, mas eu também queria saber quem são os Bestlin's e porque aquele nome parece tão familiar para mim.
Ele soltou um suspiro pesado, e eu sabia que ele estava se preocupando. Mas não devia.
— Eu sinto muito, querida — falou, agarrando o meu rosto com as duas mãos — Esses dias não têm sido nada fáceis.
— Eu sei pai, não precisa se preocupar. — mostrei-lhe o meu melhor sorriso — Eu vou dormir, tenho aulas logo cedo. — me despedi, dando um beijo na sua bochecha.
Ele devolveu, dando um beijo na minha testa.
— Durma bem, princesa.
— Bons sonhos, meu rei. — me despedi com um sorriso e subi as escadas rumo ao meu quarto.
Fechei a porta atrás de mim e joguei-me na cama, os meus músculos relaxando instantaneamente. Levantei só para arrumar a minha mochila e dar uma ajeitada nas dezenas de livros que estavam jogados pelos cantos do quarto.
Um latido e o arranhar de unhas na madeira chamaram a minha atenção, abri a porta do quarto e Lenon entrou, subindo se esticando, se preparando para dormir.
— Não era suposto você dormir na sua cama? Sabe, lá em baixo? — o folgado apenas bocejou, entrando debaixo dos meus cobertores — Cachorro folgado. Me merece, quem mandou te mimar? Bem que papai me alertou.
Desliguei a luz, me deitando ao lado de Lenon na enorme cama de casal. O golden retriever se aproximou de mim, trazendo o calor dos seus pelos fofos para o meu corpo.
Sorri, percebendo porque eu gostava de dormir tanto com ele quando pequena, ele é bem quentinho. Sonolenta, entreguei-me ao sono, o que foi uma má ideia, porque os pesadelos se arrastaram para a minha mente, impedindo o meu corpo de relaxar a noite toda.
Lenon ( 8 anos)
Martin Varyneus (39 anos)
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