Memento Mori
Dia 01 - Abra os olhos
“Escuridão. Bela por sua ausência de tudo. Calma pelo mesmo sentido de antes, mas acrescentemos o silêncio, uma vez que este é inquietante em sua maioria.”
“Ah… Estou divagando mais uma vez.”
“Me desculpe por estar interrompendo…”
“Infelizmente, não posso prometer que não farei isso de novo.”
“Certo, estou me alongando.”
“Por ora, apenas me ignore.”
“Mas… não se esqueça, nós nos veremos mais uma vez.”
“Esteja preparado para escolher…”
Sentado em uma cadeira azul, minimamente confortável, e a alguns centímetros do chão liso e cinza, estava uma pessoa.
Embora os cabelos longos e brancos pudessem criar alguma dúvida, era um jovem.
Sua cabeça, assim como os óculos de armação preta, pendia para a direita; os óculos, se descessem mais alguns centímetros pela curva do nariz dele, cairiam no chão.
Ele parece estar dormindo tranquilo.
Dormindo como se o mundo fosse irrelevante.
Em uma última definição, ele passa a imagem de um viciado em trabalho, voltando do emprego após um dia exaustivo, onde só teve o estagiário para lhe auxiliar.
Então, uma vibração incômoda o retira da escuridão, distanciando-o do confortável sono.
As pálpebras pesadas de seus olhos demoram a se abrir, como se quisessem mantê-lo no acolhedor estado de inexistência e solitude… talvez fosse o melhor.
Peculiarmente, suas arredondadas pupilas, imersas em íris de prata, expressam melancolia e astúcia…
Há uma certa intimidação também, mas o jovem parece sereno demais para violência.
Enquanto uma das mãos vai à têmpora, com o intuito de aliviar a repentina e crescente dor de cabeça, a outra vai à coxa direita.
Passados alguns segundos tateando desajeitadamente o bolso, enfim, ele consegue retirar o que vibrava incessantemente.
Consequentemente, ele fica mais cego do que já é.
No entanto, a súbita luz branca apenas o ofusca por um momento, uma vez que seus dedos, de modo automático, abaixam a claridade de algum modo.
Quando ele consegue ver novamente, ele vê algo que não reconhece: um objeto retangular, aberto em uma tela escura com balões azuis de mensagem.
Naturalmente, ele lê as últimas mensagens:
?
Você está recebendo isso?
Do outro lado de uma tela escura com balões de mensagens roxos, estava um garoto baixinho, que recostava as costas contra a madeira áspera de uma árvore.
Apenas seus olhos áureos, cabelos roxo-claro e a luz branca do celular eram visíveis no ambiente.
Usando ambas as mãos para escrever, ele pergunta:
Ainda massageando a testa com os dedos da mão esquerda, os olhos prateados do jovem de cabelos brancos percorrem o lugar…
Ele não faz a mínima ideia de onde está.
Parece levemente familiar.
Sua atenção vai para as janelas: cada uma arredondada nas bordas e com algo preto em seu entorno…
?
“Borracha?” murmura o jovem, tentando fazer as peças bagunçadas em sua cabeça se encaixarem.
A cadeira em que estava sentado era igual às outras presas na parede de metal, tendo até uma barra prateada de metal na lateral.
No entanto, quando os olhos dele se fixaram no túnel escuro por detrás das janelas, uma palavra surgiu em sua mente, completando o quebra-cabeça e respondendo à pergunta do garoto.
?
Metrô. Eu acho, pelo menos.
?
Cê não tá brincando, certo?
O garoto de cabelos roxos observou seu, infelizmente, costumeiro lugar, ou melhor, o breu. Nem lua, nem estrelas. Somente a ausência inquietante de tudo.
O silêncio ensurdecedor era interrompido apenas pela respiração dele.
?
Parece uma floresta, mas não é uma. Tenho certeza disso.
Repentinamente, quase fazendo o jovem de cabelos brancos derrubar o objeto brilhante de sua mão, o metrô, ou melhor, o vagão de metrô em que estava, começou a se mover para o lado.
Os ombros dele se ergueram pelo susto; mas, logo, ele viu as luzes brancas do lado de fora, iluminando sutilmente o túnel escuro, passarem como borrões devido ao movimento.
Quando o jovem voltou o olhar para a tela do objeto, ele pensou um pouco, tentando se lembrar o que era uma floresta e… o que ele estava fazendo naquele metrô.
No fim, apenas a imagem de um lugar cheio de coisas verdes e enormes veio à sua mente.
?
Floresta? É tipo um lugar muito verde, certo?
?
Exatamente, mas aqui não é uma.
?
Como você tem tanta certeza?
?
Acho que é algo como um instinto ou coisa parecida, mas não tenho total certeza sobre isso.
?
Parece que minha cabeça está meio vazia.
?
Às vezes, entendo o que penso, mas, outras vezes, não faço ideia do que se passa na minha cabeça…
Uma respiração profunda escapou pelo nariz do jovem no metrô.
Apesar de tentar muito, mais uma vez juntando peças na sua cabeça, sua mente era um abismo, cheia de absoluto nada.
Escreveu o garoto, após bater o punho contra o chão de folhas abaixo de si. Por sorte, não sujou a mão.
?
Você estava sendo a minha esperança.
?
Por que você está pedindo desculpas?
?
Não sei. Me pareceu natural dizer.
?
Esquisito, mas eu te perdoo.
Respirando profundamente, o garoto na “não-floresta” inclinou a cabeça para trás e tentou pensar na situação…
Dois minutos foram tempo suficiente para ele perceber o cansaço e o sono em seu corpo e que, em algum lugar longe do seu crânio, estava seu cérebro…
Talvez estivesse a alguns quilômetros, considerando o quanto ele teve que correr.
Com as pálpebras cansadas e íris exibindo apenas pesar, ele escreveu devagar:
?
Eu realmente não sei como continuar essa conversa. Estou muito cansado.
?
Eu também não sei como continuar
De repente, aparecendo novamente na parte superior, só que, desta vez, foi o garoto de cabelos roxos quem percebeu o surgimento da imagem de perfil de uma nova pessoa, enquanto era exibido:
Um par de All Stars vermelhos estava a alguns centímetros de distância de uma parede, ambos iluminados por uma luz amarelada vinda do teto.
De frente para as pontas arredondadas de cada tênis, íris escarlates, tão semelhantes a sangue pela cor, tornaram-se visíveis com o abrir lento de pálpebras pesadas.
Largada contra a parede de cor creme do corredor, a pintura mais branca do que amarela, estava uma jovem, com os braços flácidos jogados ao lado do corpo.
Da raiz do seu cabelo até um pouco das pontas, ele era pintado de rosa; porém, algumas mechas ciano se destacavam na curta imensidão de rosa, uma vez que seu cabelo nem chegava aos ombros.
Após algumas piscadelas, e mesmo com a crescente sensação de que alguém havia acertado sua cabeça com uma marreta, o rosto dela virou para os lados; o mundo ainda estava ganhando resolução.
Enfim, ela notou que, preso em torno de seu pulso esquerdo e também ao celular, estava uma corrente prateada.
Ela piscou os olhos duas vezes e depois ergueu o olhar para a luz amarelada no teto, murmurando baixinho para si:
“Onde caralhos voadores eu tô?”
Enquanto ela se levantava do chão — ou, detalhando melhor, enquanto apoiava as mãos na parede e quase caía de cara contra o chão diversas vezes por conta do peso do próprio corpo — indiscutivelmente, suas pernas dormentes não estavam ajudando.
Ela notou o vibrar do celular reverberando da corrente até seu pulso.
Segurando o celular na mão esquerda, sua mão direita se ocupava em mantê-la em pé e firme de alguma forma.
Semelhante aos outros celulares, a tela de mensagem estava escura, mas os balões de mensagem eram de uma cor vinho.
Ela leu a última mensagem, escrita rapidamente pelo garoto na floresta:
Antes que ela pudesse começar a escrever as inúmeras perguntas na ponta de sua língua, o garoto de cabelos roxos foi mais ágil:
?
Antes de tudo, onde você está?
Ela também queria saber isso.
Com um desvio de olhar para a direita e para a esquerda, ela viu… apenas escuridão.
A luz amarelada acima dela era a única coisa que a dividia da densidade obscura; qualquer coisa imersa na aparente ausência de tudo permanecia apenas na imaginação dela, visto a falta de formas e silhuetas.
Esse mesmo fato era presente no corredor, já que nenhum móvel ou porta se recostava nas paredes, além de não haver nenhuma janela visível, apesar de o ar circular perfeitamente pelo corredor.
Escreveu ela, abaixando os olhos para a tela do celular… Ter mantido o olhar por tanto tempo na completa escuridão a deixou um tanto inquieta demais.
?
Num corredor? Parece um, acredito.
Gradualmente, o vagão de metrô do jovem de cabelo branco diminuía a velocidade.
Comentou ele, enquanto via mais e mais gotas de água acertarem os vidros da janela…
Estranhamente, ele não achou isso tão estranho, mesmo que estivesse em um túnel e não em espaço aberto para chuva.
?
Espera, ele estava em movimento?
Perguntou a jovem no corredor, caminhando para a borda da luz e da escuridão no corredor, apesar de seu coração estar acelerado e sua visão fixa na luz do chão, longe da escuridão de propósito…
Ela queria testar se havia algo na escuridão e, quem não arrisca, não petisca, certo?
O garoto na floresta pensou bastante, mas ficou claro para si que.
?
Na verdade, eu também não faço ideia do que seja.
?
Complicado isso aí, hein.
Ao mesmo tempo que respondia, a garota pisou hesitante e devagar na escuridão, apenas para perceber que não havia muito mistério ou medo, só mais chão à frente.
Porém, a dor de cabeça piorou ainda mais, tornando-se insuportável.
?
A cabeça de vocês está doendo?
Respondeu o jovem no metrô, notando que não havia mais água batendo no vidro; no entanto, as luzes brancas das lâmpadas do túnel agora iluminavam o vagão de modo mais distorcido e ondulante, entrando como feixes claros em um ambiente que se escurecia cada vez mais para um azul-escuro.
?
A minha parou há muito tempo.
Enquanto escrevia a mensagem, o jovem na floresta achou ter ouvido algo, mas… não. “Aquilo” tinha o perseguido recentemente; ele não voltaria… certo?
Perguntou a jovem no corredor, ainda de frente para a escuridão, seus olhos vermelhos fixos na tela do celular.
?
Quanto tempo exatamente?
A dor de cabeça, embora intensa, não impediu o jovem de cabelos brancos de se perguntar: “o que são semanas?”
No entanto, antes que pudesse pensar mais um pouco ou perguntar algo, como no momento em que o vagão começou a se mover, de novo, embora mais fraco desta vez, seu corpo foi puxado para o lado.
O vagão de metrô parou completamente.
?
MERDA, NÃO MANDEM MENSAGEM
Entendendo que não havia ouvido errado desta vez, o jovem na floresta (ou “não-floresta”), desesperado e desastrado, levantou-se e correu para o breu ao seu redor, implorando para não haver galhos ou troncos caídos no caminho à sua frente.
O celular já estava enfiado no bolso do casaco.
“Na distância… um berro, um uivo? Não era possível discernir, parecia uma mistura de vozes e animais gritando.”
Antes que a garota no corredor fizesse a mesma pergunta, uma respiração ofegante e gelada acertou seu cabelo e um pouco do rosto.
Todos os pelos do corpo dela se arrepiaram, especialmente os da nuca.
O frio da respiração se espalhou por sua barriga, enquanto o suor escorria de sua testa até o queixo.
Embora todo o seu ser implorasse para não elevar os olhos… lentamente… ela olhou para cima.
Indo contra os padrões normais de um vagão, a cadeira na qual o jovem de cabelos se sentava, junto das outras óbvias, estava de frente para uma das portas duplas do metrô.
E, como se alguém derramasse água em um copo prestes a transbordar, o vagão de trem foi inundado com a rápida abertura de todas as portas.
O jovem de cabelos brancos só teve tempo de arregalar os olhos.
O impacto veio primeiro; logo depois, a pressão.
Ambas as forças empurraram sua cabeça com toda a força contra o vidro da janela atrás de si, deixando-o atordoado e criando rachaduras no vidro.
No entanto, seu tempo na inconsciência, dessa vez, foi mais curto.
Usando uma mão para firmar os óculos contra o rosto, após eles saírem do lugar, e a outra para agarrar o celular que havia escapado de seus dedos, ele começou a nadar para fora do vagão.
Ele nem ousou tentar respirar para ver se conseguiria; afinal, sua mente foi rápida em lhe informar que isso era uma péssima ideia.
Graças às luzes pálidas nas laterais das paredes, ele conseguiu se guiar nas águas azuladas até alcançar uma escadaria que levava para cima.
Poucos segundos antes da água invadir suas narinas, o jovem firmou as mãos contra o chão liso da escada e forçou o corpo para fora da água; o estalo alto dele saindo ecoou pelos corredores ao seu redor e em seus ouvidos.
Alguns segundos se passaram até ele finalmente se levantar e ver o enorme corredor que se estendia à sua frente.
No entanto, não foi o fato de o corredor também estar com água até, pelo menos, acima dos seus pés que o deixou aterrorizado.
Essa era a cor das flores; talvez fossem rosas.
Mas, normalmente, rosas não possuem seis pétalas.
E flores, habitualmente, também não nascem sobre tecido.
Elas precisam de solo para fixarem suas raízes. E a escuridão vazia e infinda abaixo do tecido não exibia nenhum sinal de ligação com as flores, nenhuma raiz.
Semelhante a um simples e vermelho lençol colocado para secar ao relento, provavelmente até o dia seguinte, um enorme e carmesim manto, quase chegando até o teto do corredor, pairava no ar à frente do jovem.
Apesar de não haver nada naquela escuridão.
No fundo da sua mente aterrorizada, o jovem de cabelos brancos conseguia, de alguma forma, desenhar onde estariam os olhos e a boca do “ser” medonho à sua frente.
Aquilo era alguma coisa, e não apenas um pano flutuando no ar. A certeza disso vinha dos olhos afiados e da boca sorridente imaginada por ele.
As lâmpadas brancas nos cantos das paredes, gradualmente, piscavam e escureciam para uma cor azulada, deixando o ambiente mais escuro, quase preto.
De repente, pelo canto do olho, o jovem viu o borrão de algo vermelho; um barulho de pedra sendo quebrada acompanhava o borrão.
Porém, outro ruído chamou ainda mais a atenção dele: o de algo se arrastando pela água, como se alguém tivesse dado um passo.
As flores não mais ficavam sobre o tecido do manto; elas haviam nascido nas paredes de concreto do corredor, e algumas até flutuavam sobre as águas acima do chão.
Uma delas bateu nas canelas trêmulas do jovem.
Se antes a figura encapuzada estava no fim do corredor, agora, ela estava na metade do caminho entre os dois.
O jovem deu um passo desajeitado para trás, quase caindo no chão encharcado sob seus pés.
A figura disparou enlouquecida em direção ao jovem de cabelos brancos.
Ele não precisou nem raciocinar para saber o que fazer; suas pernas já se moviam sozinhas para começar a correr pelo corredor à sua direita.
Dia 02 - Quem é você?
Branco. Azul-escuro. E um pouco de preto e cinza. Essas eram as cores principais da paleta do banheiro. Quatro portas brancas, com vasos sanitários atrás de cada uma delas, eram visíveis na lateral direita do lugar.
Porém, indo contra o usual, uma água sutilmente cristalina alagava o chão. Sua elevação chegava às canelas de um adulto.
E, de modo desconcertante, o ambiente estava estático.
As superfícies reflexivas de cada espelho preso na parede esquerda refletiam a imagem das portas brancas de cada cubículo do banheiro.
No entanto, havia um som repercutindo pelo lugar.
Levemente engasgada, reverberando exaustão e terror.
Após mais uma respiração profunda, o jovem de cabelos brancos apertou mais os joelhos contra o peito; suas costas encontravam apoio na caixa do assento sanitário.
Ele estava no último cubículo do banheiro.
?
“Que porra era aquela coisa?” murmurou baixinho para si.
Abruptamente, o retângulo brilhante em sua mão esquerda vibrou.
Apesar de todo o desespero e aflição que passou correndo por inúmeros corredores, o objeto não escapou do aperto firme de seus dedos.
Mesmo tentando limpar da melhor forma possível o rosto com as costas da mão livre, algumas gotas de suor caíram de seu queixo para a água abaixo de si; após isso, ele leu a mensagem que havia chegado.
Indagou o garoto na floresta, sentado sobre um galho de árvore.
Vários metros o separavam do chão.
Respondeu a jovem nos corredores, apesar de não estar mais em nenhum corredor.
No meio de sua correria atormentadora, havia encontrado um corredor com uma porta só; abriu-a sem pensar duas vezes e se enfiou no quarto, mais especificamente debaixo da cama que havia nele.
?
Pelo menos, eu acho que sim.
?
Pessoa do metrô, você está bem?
Demoraram longos e bons cinco segundos para o jovem de cabelos brancos entender que se tratava de si.
?
Sim, também acredito que estou bem.
Menos ofegante, mas ainda aterrorizado com a sua fuga, ele foi rápido em questionar:
?
Mas você sabe o que era aquele troço me perseguindo?
?
Como era a coisa atrás de você?
?
Parecia um bicho ou pessoa.
Apesar de tentar buscar nas memórias mais informações, ele não olhou muito para trás em sua corrida.
?
Tinha outras coisas, mas eu não queria olhar muito.
?
Mas, sério, não faço ideia do que seja aquela coisa.
?
Anyway, onde você tá? Não vi você correndo em nenhum momento.
Respondeu a jovem, ignorando o fato de não saber o que era uma “não-floresta” ou uma floresta em si, mas focando em um detalhe específico.
?
Então, essa coisa estava em três lugares ao mesmo tempo… Como exatamente isso seria possível?
O jovem no banheiro suspirou. O chão alagado abaixo de si não movia uma única onda. Seus ouvidos só ouviam a própria respiração. Tudo estava quieto e, ao mesmo tempo, inquieto também.
Talvez… só ele estivesse inquieto? Provavelmente, considerando o quanto ele não conseguia se acalmar.
A cada batida de seu coração e pulsar de seus pulmões, ele se sentia forçado a pensar ou fazer algo com os dedos, seja movê-los ou estalar algum.
Pelo menos, a ânsia dentro de si o ajudava a chegar a certas conclusões, apesar de a dor de cabeça tentar atrapalhar seu raciocínio:
?
Antes disso, não é melhor focarmos no que temos de concreto?
A jovem debaixo da cama se arrumou para ficar de barriga para cima.
?
Assim, conseguimos montar uma teoria ou linha do tempo.
O lento erguer do sol pintava o céu e as nuvens em diferentes cores: laranja em sua curva de aparição, roxo em esplendor no que deveria ser um céu azul; porém, a predominância de cor ainda era o preto.
Enquanto bocejava, o garoto de olhos dourados, que estava na “não-floresta”, perguntou:
?
Você sabe alguma coisa sobre o tempo?
O jovem de cabelos brancos piscou os olhos duas vezes.
Embora tenha pensado por alguns minutos, longos minutos, na verdade, o fato óbvio em seus pensamentos e conclusões era que ele não tinha a mínima noção do que “tempo” em si significava.
A jovem debaixo da cama apertou aleatoriamente o teclado do celular sem parar por um momento.
?
Melhor a gente ir devagar.
Questionou o garoto no galho de árvore, enquanto o vento balançava um pouco suas pernas, além de levar algumas folhas consigo.
?
Você não está falando nada.
?
É porque não sei o que falar.
?
Você também tá com a cabeça vazia, não é?
?
Sim… Mas também parece que alguém me deu um murro na cara.
?
Merda, por que tudo parece tão confuso?
?
Vocês estão voltando para as perguntas sem respostas.
?
Vamos voltar para o ponto inicial.
A jovem debaixo da cama continuaria a escrever sua linha de pensamento, mas o que quer que estivesse consumindo suas palavras e memórias a parou por um momento, fazendo-a apertar aleatoriamente o teclado virtual novamente.
Até que, enfim, ela chegou a uma linha de raciocínio viável e com algum sentido.
?
Mas não sei como definir vocês. Nem sei se definir é o certo a se dizer.
Instintivamente, o garoto na floresta estalou os dedos da mão direita; o barulho ecoou ao seu redor, e ele se xingou mentalmente.
Após alguns momentos preenchidos somente por sua respiração baixa e pela passagem do vento, nenhum sinal do bicho foi ouvido ou visto por ele, então prosseguiu escrevendo.
?
Você quer saber como nos chamar, certo?
?
Exato! Essa era a palavra na ponta da minha língua.
O jovem no banheiro estreitou os olhos para a tela do objeto à sua frente, enquanto a palavra “chamar” ressoava em sua mente vazia e confusa.
Havia algo no abismo intransponível de sua mente que o fazia recordar que ele era chamado por algo há muito tempo.
?
Bem, eu realmente não sei se tenho um nome.
?
É tudo o que está ao nosso redor.
Instigou o jovem de cabelos brancos, recostando-se na tampa fechada do vaso sanitário e colocando os pés contra a porta do banheiro; os ossos de seu corpo estalaram com o esticar das pernas.
?
Basicamente, o que estiver ao seu redor, e você também, tem alguma palavra específica para definir.
?
Tipo, o que estamos segurando e usando para falar um com o outro agora é chamado de celular.
?
Então, esse é o nome dessa coisa?
Enquanto perguntava, o jovem no banheiro avaliava o celular em sua mão…
Não demorou muito para ele chegar à conclusão de que parecia um nome apropriado para esse objeto em seus dedos.
Além disso, apesar de não ter muita ideia do que se tratava, a capinha de seu celular era simples e azulada, com desenhos de ondas em estilo aquarela.
?
Se tudo tem nome, nós também temos…
Divagou a jovem debaixo da cama, franzindo a testa para as próprias palavras escritas e a situação como um todo.
?
Então, por que sinto que não tenho um?
?
Porque estamos com as nossas cabeças ocas.
?
Provavelmente a gente tem nomes, mas esquecemos deles… eu acho.
?
Isso soa como uma explicação, apesar de ser meio absurda de alguma forma que não consigo colocar em palavras.
O jovem de cabelos brancos começou a juntar as informações na cabeça, fazendo uma lista mental.
?
Não temos as nossas memórias e estamos em três lugares diferentes, correto?
Escreveu o garoto na não-floresta, enquanto ficava de pé em cima do galho da árvore que estava sentado; seus olhos se estreitaram para o horizonte, pois algo na distância chamava sua atenção.
?
Como assim, mais ou menos?
?
Um segundo, preciso tirar uma dúvida…
?
Que horas aparecem em seus celulares?
?
No canto superior esquerdo
Ao terminar de escrever o agradecimento, os olhos prateados do jovem de cabelos brancos subiram dos balões de mensagem azuis para o relógio; no entanto, ao contrário da jovem ou do garoto, o horário no celular dele era...
?
O horário do seu celular é o único diferente
?
Okay, isso é bem estranho. Mas onde você quer chegar com isso?
?
Porque acredito que estou vendo onde você está.
Ainda na meia-escuridão da manhã, a uma distância considerável, os contornos retos e lisos de diversos prédios se destacavam na imensidão de árvores e folhagens que havia por toda a floresta ao redor do garoto.
?
Não sei ao certo, mas estou vendo alguns prédios.
?
E… pela minha memória, prédios geralmente têm corredores, certo?
?
Espera, você consegue ver janelas?
?
Muito longe, mas parece que não.
?
Corri pra caramba para fugir daquele troço que nos perseguiu e, no caminho, não vi nenhuma janela para tentar escapar.
?
De qualquer forma, talvez exista a possibilidade de nós dois estarmos próximos…
?
Outra coisa, em todas as minhas semanas nesta não-floresta, tenho certeza de que esses prédios só apareceram agora.
?
Você quer dizer que eles apareceram no momento em que ela começou a conversar aqui?
?
Isso não faz sentido nenhum…
?
Além de ser bem bizarro.
?
Se é isso mesmo, onde estou exatamente?
Perguntou o jovem de cabelos brancos, seu olhar percorrendo toda a cabine do banheiro, incluindo a água abaixo de si.
?
Não sei, mas parece ser o mais distante de tudo.
?
Ah, foi por isso que você pediu os horários?
Ajovem debaixo da cama perguntou, escrevendo rapidamente após montar a linha de raciocínio um tanto quebrada e confusa.
?
Para ter uma certeza das nossas localizações, certo?
?
O tempo parece a única coisa coesa entre todos os nossos lugares, apesar de que ainda tenho as minhas dúvidas.
?
Esperto, principalmente com a mínima informação que passamos um para o outro até agora.
As bochechas do garoto ganharam um rubor ao ler a mensagem.
?
Bem, agora sabemos que estamos mais ou menos próximos um do outro, porém em lugares totalmente diferentes…
O jovem de cabelos brancos bateu o pé contra a porta da cabine do banheiro; mesmo com o som do golpe sendo baixo, ecoou por todo o lugar.
?
Vamos voltar aos nossos nomes.
Escreveu a jovem, sentindo a dor na cabeça aumentar só de pensar um pouco…
Por que pensar tem que ser tão difícil? Ruminou ela, olhando por alguns segundos a cama acima de si.
Concordou o garoto em um primeiro momento, considerando que isso seria o natural a se seguir; no entanto, sua mente foi rápida em lembrá-lo onde estava e do silêncio ao seu redor.
?
Espera, não! Vou caminhar em direção aos prédios.
Indagou a jovem de cabelos rosados com mechas ciano debaixo da cama; suas sobrancelhas formando uma linha de questionamento, apesar de ninguém estar vendo a reação dela ativamente.
?
Eu não aguento mais ficar sozinho aqui.
A frase curta não conseguia mostrar toda a aflição no rosto do garoto.
Ele não suportava mais ficar na floresta.
Não suportava mais ser perseguido por aquele monstro.
Não suportava a possibilidade de ficar sozinho mais uma vez.
?
E, claro, é melhor nos juntarmos, não é?
?
Na verdade, acredito que não.
?
Porque estamos apenas supondo tudo aqui.
?
Sim, temos as nossas conclusões e um rumo para seguir, mas nada que seja, de verdade, a certeza absoluta
Respondeu a jovem, suspirando profundamente para a própria conclusão.
?
Além disso, eu corri por dezenas de corredores e não encontrei uma única saída deste lugar em que estou.
?
Quero dizer que essa situação em que estamos é estranha. Estranha demais
?
Honestamente, quando eu acordei, achei que tinha sido sequestrada ou alguma outra merda parecida…
?
No entanto, nada disso parece certo.
?
Estamos fudidos de uma forma que chega a ser medonha.
?
E aí? O que isso tem a ver com a gente se encontrar?
?
E aí que deve haver algum tipo de objetivo ou esquizofrenia insana por trás disso tudo.
?
Então, se estamos separados, é por algum motivo que não sabemos.
?
Você acha que essa situação é algum tipo de teste ou jogo?
Perguntou o jovem de cabelos brancos, divagando mais nas possibilidades fantasiosas do que nas céticas.
?
Agora que você falou, definitivamente parece algo assim.
?
Você quer dizer que alguém está controlando essa situação?
?
É o que mais aparenta para mim.
?
Merda, isso é loucura demais para a minha cabeça.
?
Claro, se formos pensar de maneira lógica, obviamente.
?
Não faço ideia, na verdade…
Respondeu a jovem, decepcionada com a própria resposta.
?
Ah… acho melhor só voltarmos aos nossos nomes.
?
Ou seja… tanto questionamento para, no fim, voltarmos ao completo nada de novo.
?
Yeah… Mas é muito melhor do que pensar em todos os problemas… certo?
O jovem de cabelos brancos bufou.
A dor de cabeça latente passou pelas frestas de seu crânio e chegou à carne maleável de sua testa; a frustração era sua acompanhante de luxo, e a raiva, apenas outra encontrada na rua.
O peito dele subiu e desceu pesadamente.
Então, seus sapatos sociais deslizaram pela parede branca da porta e caíram no chão encharcado.
Nem um segundo após isso, ele já havia saído da cabine do banheiro; a água entrava em suas meias e até embaixo da palmilha dos sapatos.
As íris prateadas de seus olhos, serenas e mergulhadas em algo como tranquilidade por trás das lentes de seus óculos, contrastavam com o brilho afiado que seu olhar refletia no espelho; além de sua pele negra, claro.
Certas olheiras estavam abaixo de seus cílios brancos.
Porém, ignorando a dor e o cansaço, ele voltou os olhos para a tela do celular e escreveu:
A jovem de cabelos rosa e mechas ciano saiu debaixo da cama com certo receio; afinal, aquele “ser” ainda poderia estar andando por aí.
Com cuidado para fazer o mínimo de silêncio, ela abriu um pouco a porta do quarto, tendo, assim, uma visão do corredor, além de uma abertura fácil caso fosse necessário fugir quarto.
Precaução. Algo nunca de menos, sempre demais…
?
“Alguém já me disse isso, não é?”
Perguntou ela para si mesma, enquanto o pensamento flutuava em sua cabeça.
Com menos de cinco passos, ela se deitou na cama.
O colchão macio a recebeu com um abraço, enquanto o travesseiro fez um cafuné em seus cabelos e bochecha.
Infelizmente, nenhum lençol para fazer alguma coisa, mas ela se contentou em usar a colcha da cama para se cobrir.
Seus olhos acarminados se fixariam nos balões vinho de mensagem, mas, ocasionalmente, eles olhariam para a fresta na porta, conferindo se estava tudo bem; todavia, isso é para o futuro.
No presente, ela pergunta:
?
Okay, como devemos lembrar de algo tão específico?
O jovem de cabelos roxos estreitou os olhos para os prédios no horizonte, pensando realmente se deveria ficar em seu lugar…
Menos de três minutos depois, ele já havia descido da árvore e começado a caminhar em direção a eles.
?
Na pior das hipóteses, é melhor do que ficar aqui.
Murmurou para si, como se isso fosse aliviar a culpa de ir contra o recomendado.
Ambos os dourados de seus olhos alternavam a atenção entre o celular e o chão de folhas; estas eram laranjas, marrons e brancas, todas secas ou recém-caídas pelo vento.
O cheiro de terra molhada nunca desaparecia de suas narinas.
Enfim, ele também escreveu uma mensagem:
?
Essa é uma boa pergunta.
Não se importava com o próprio cansaço ou sono.
Se necessário, caminharia até os pés sangrarem e o sangue transbordar de seus coturnos.
Dia 03 - Essa é uma boa pergunta
“A imagem no espelho é fiel. Não gera dúvida ou mal-entendido.
Então, por que muitos dos que observam seu reflexo têm dúvidas?
A resposta não poderia ser mais simples ou direta: realidade.
Encarar o espelho é ver sua própria beleza. Olhar para o espelho é ver sua própria estranheza e feiura. Ver a realidade nua e crua de ser apenas você, sem qualquer julgamento ou opinião de terceiros.
Somente você, olhando a si mesmo.
Só você, escolhendo se destruir por sua feiura ou viver mais uma vez por sua beleza.
Independentemente de qualquer reflexão ou pensamento intrusivo sobre seu próprio reflexo”, os olhos prateados do jovem de cabelos brancos estavam estreitados, ambos ardendo de tanto tempo abertos.
Após uma contagem infinita de segundos, suas narinas se dilataram com certo esforço, forçando-o a suspirar profundamente.
E, devagar, as pálpebras cansadas dos olhos dele se fecharam, formando, assim, dois montes de neve, dada a palidez de seus cílios.
Ao mesmo tempo, as linhas de neve, que eram suas sobrancelhas, quase formavam uma só pela força com que franzia o cenho.
Seu rosto, uma carranca de seriedade e sutil ódio… Apesar da situação desfavorável e completamente ruim, para se dizer o mínimo, o rosto do jovem estava fofo, talvez até um tanto cômico.
Porém, tudo isso foi irrelevante.
Porque nada veio à mente dele.
Esse nada, vazio e absoluto, prevalecia na massa de neurônios e linhas nervosas, a qual ele sabia ter o nome de cérebro, ficando, ao mesmo tempo, preso e protegido, mas também bombeando dores e mais dores para seu crânio e testa…
O jovem estava a um passo de abrir a própria cabeça para encontrar as respostas e parar com a dor constante.
Obviamente, talvez por falta de recursos para isso ou só porque doeria muito, ele não faz nada disso.
“Por uma misericórdia irônica, ele não era o único sofrendo para o nada.”
Com os olhos ainda fechados, num compasso familiar, os dedos dele pegam o celular sobre a pia.
Antes de abrir os olhos para a realidade mais uma vez, ele tenta se lembrar de algo, mas a resposta para tudo continua igual à anterior; ou seja, ele estava no caminho errado, afinal, duas respostas iguais em uma prova de múltipla escolha são muito suspeitas para estarem certas.
Após abrir as pesadas pálpebras de cada olho e fixar a atenção na tela do celular, ele aperta devagar cada tecla do alfabeto e escreve:
Justificou-se o garoto na floresta. Seus olhos áureos, de momento em momento, alternavam o olhar entre a tela do celular e o caminho à sua frente. Ele agora passava por um lago, que refletia sua imagem e algumas das folhas laranjas que o sobrevoavam.
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Nah, it's okay. Pelo menos foi mais uma tentativa.
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Por que você está sendo tão pessimista?
Escreveu a jovem. Talvez por costume, ela não se incomodava de ter o celular contra o rosto, mesmo com o brilho no 100.
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Ficar respondendo com tanta depreciação não tá ajudando em nada!
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Só estou sendo racional.
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Nada que pensamos até agora deu certo.
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Ok, mas ficar dizendo que não valeu de nada também não ajuda!
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Você está frustrando a gente com isso.
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Qual é a nossa próxima ideia?
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Acho que já esgotamos todas as nossas opções disponíveis.
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Realmente deveria ser tão difícil lembrar do próprio nome?
Embora tenha enviado a pergunta, o jovem de cabelos brancos a fez mais para si.
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Tenho certeza de que não.
Respondeu o garoto de cabelos roxos, parando por um momento de caminhar para beber um gole da água do lago…
Na verdade, como a água era limpa e ele já havia experimentado um pouco antes em outro lugar — um rio, para ser mais específico — enfiou a cabeça na água e bebeu até a barriga doer e inchar levemente pelo excesso de líquido em tão curto tempo.
Após retirar a cabeça da água e limpar o rosto encharcado com a mão, escreveu rapidamente:
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Mas, ainda assim, cá estamos nós, sem qualquer ideia de quais seriam eles.
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Você REALMENTE é um cabeça-dura, não é mesmo?
As bochechas brancas do garoto ganharam um rubor nítido, que qualquer pessoa veria se estivesse próxima dele.
Desculpou-se o garoto, abaixando a cabeça e os olhos do celular após escrever a mensagem.
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Anyway, será que não é melhor a gente esquecer os nossos nomes por ora e focar em outra pergunta?
Perguntou o garoto, após voltar a atenção para o celular.
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A de como viemos parar em cada lugar em que estamos ou como perdemos as nossas memórias?
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Espera, você não disse que isso tudo era meio irreal e que não fazia o menor sentido?
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Então, por que raios vamos tentar pensar nessas coisas?
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E, quanto mais conversamos aleatoriamente sobre qualquer coisa, maiores são as chances de lembrarmos de algo.
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Mas como você chegou a essa conclusão?
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Já repeti dezenas de vezes, NÃO SEI, CARALHO!
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Só parece que o meu cérebro tem todas as informações, mas aí esse desgraçado esquece tudo.
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E eu fico só no: só sei que nada sei e nada mais também saberei.
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Sério, a cabeça de vocês não está igual?
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Não tenho muita certeza.
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Hummm… agora que parei para pensar, você tem a cabeça mais ferrada entre nós.
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Será que existe algum motivo para isso?
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Bem, a minha resposta vocês já sabem qual é… mas…
Após o jovem de cabelos brancos marinar o próprio cérebro com o tempo que seu sangue passou circulando pelo mesmo, uma pergunta simples e direta veio à sua cabeça:
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Qual foi a primeira memória que você teve?
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Espera, você tá perguntando isso para quem?
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Ué, ele perguntou pra você mesmo
Respondeu a jovem na cama, um sorriso aparecendo em seus lábios.
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Não é que… ele não me chamou de nada… E… Ah, só fiquei confuso mesmo.
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Ehhhh, esqueçam o que disse sobre trocarmos de assunto, a gente precisa saber os nossos nomes.
Comentou o garoto, terminando de se levantar e caminhando mais uma vez em direção aos prédios.
Ele realmente espera que a jovem esteja lá mesmo…
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Menos pessimismo e mais conversa
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Qual foi a primeira memória que você teve?
O garoto começou a pensar em seus primeiros dias, lembrando de toda a confusão mental e do medo que teve ao abrir os olhos para a “não-floresta” ao seu redor.
O corpo dele estremeceu ao se lembrar da primeira noite, quando a coisa apareceu para persegui-lo.
Lentamente, rastejando para suas costas e pesando em seus ombros, o cansaço se fazia mais uma vez presente, sussurrando que sua exaustão era iminente…
Assim, quando já havia escapado e, necessitando descansar depois de toda a correria daquela noite, sua barriga roncou, e ele…
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Eu me lembrei de estar comendo um hambúrguer, um hambúrguer muito gostoso, devo admitir.
Indagou a jovem na cama, apertando os olhos para a resposta.
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Um minuto, vocês não estão com fome?
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Seja o que for isso, eu não estou
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Por que seria exatamente?
Indagou o jovem, apoiando o peso do corpo no pé esquerdo, descansando, assim, o pé direito, que não aguentava mais sustentá-lo por tanto tempo.
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Porque é o que mantém a gente funcionando!
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Todo mundo come alguma coisa para se manter vivo.
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Sério, a barriga de vocês não está fazendo nenhum barulho alto ou rugindo?
Atestou o jovem no espelho e também no banheiro; afinal, ainda estava nele e com a água, agora, perto dos joelhos…
Ter as meias molhadas era uma sensação péssima, mas ele estava ignorando.
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Quando fiquei com fome, estava igual a um cachorro quando ouve o dono colocar ração na tigela.
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Mas vocês estão totalmente tranquilos em relação a isso!!!
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Isso é um caralho pra cadinho, sabia!?
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Porque, se eu não me lembro de comer, com toda a certeza, comida não deve ser algo muito importante.
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Você faz parecer que é algo essencial, mas isso nem sequer aconteceu com a gente, só contigo…
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Então, se formos rever tudo o que sabemos, comida deve ser algo só seu. Igual a minha cabeça está mais vazia que a de vocês e a questão do tempo também.
Escreveu o garoto apressado, quase amassando os dedos na tela do celular.
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Comida é muito importante pra TODO MUNDO.
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Tipo, pessoas precisam comer, animais precisam comer, até células precisam comer, caramba!
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Tá, entendi! Mas eu não preciso.
O garoto na “não-floresta” queria arrancar os cabelos.
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Tirando a conversa sobre comida…
Divagou o jovem de cabelos brancos, escrevendo automaticamente.
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Um bichinho grande e agitado que não para quieto, mas é muito companheiro e peludo…
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Hum… É basicamente um serzinho que você cuida sem ser uma pessoa.
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Tô entendendo, tô entendendo…
Respondeu a jovem, lembrando-se vagamente da imagem de um cachorro em sua cabeça…
Na verdade, isso é uma meia-verdade, quase uma mentira.
A mente dela primeiro pensou em um fofinho, na sua opinião, claro, lagarto, especificamente um gecko-leopardo; logo depois, em um teiú.
Em segundo pensamento, a imagem de uma raposa, mas de pelagem dourada e olhos azuis cristalinos; esta estava de frente para um lobo que era o dobro de seu tamanho, com olhos vermelhos e pelo preto.
Enfim, ela viu um cachorro, mas também parecia com um lobo, visto que a espécie era um husky siberiano, com partes de sua pelagem branca, especialmente na parte superior do seu corpo, salpicadas de marrom…
Ele a olhou intensamente por alguns segundos
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Engraçado, tenho a impressão de que eu cuidava de algum bichinho, mas…
Os olhos afiados e de íris sanguíneas dela observaram a tela do celular à sua frente, examinando-a, enquanto as memórias em sua cabeça agitavam-se, desenhando imagens vívidas que eram, às vezes, pixelizadas ou com um realismo 4K nativo.
Enfim, a imagem em pixels de um adorável, novamente na opinião dela, polvo monstruoso surgiu… Infelizmente, ele estava expirando, ou adoecendo… mais sinceramente, morrendo mesmo.
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Ele não era exatamente muito vivo… Na verdade, ele ficava no meu celular, eu acho.
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Hmm… Você quer dizer que ele era virtual?
Indagou o jovem de cabelos brancos, também fixando atenção na tela…
Após demorados segundos, ele teve a impressão de que já teve algum bichinho que cuidava em seu celular… Talvez fosse uma… coruja? Ele não se recordava exatamente.
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Ele era virtual… Mas acho que deixei ele morrer…
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Seus esquisitos, vamos, por favor, esquecer esse assunto de família de estimação e voltar para o que importa?
Escreveu o garoto de cabelos roxos-claros na floresta, querendo interromper o rumo da conversa e evitar distrações sem sentido nas quais os três acabam indo sempre sem perceber.
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Tá bom… Onde a gente estava mesmo?
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Sério, vocês realmente não se lembram de comer alguma coisa muito boa?
Questionou o garoto na floresta, começando a erguer os dedos da mão livre, como se estivesse contando alguma coisa ou listando, enquanto escrevia mais uma pergunta.
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Sei lá. Tipo macarrão, bolo, churrasco, arroz ou qualquer outra coisa parecida?
No entanto, ao contrário da resposta vinda da jovem deitada na cama do quarto, quando os olhos prateados do jovem no banheiro leram a palavra “bolo”, ela foi instantaneamente… comum, trivial até… afetuosa?
Ele não sabe ao certo… Mas a atenção dele desvia da tela do celular e vai para o espelho mais uma vez…
Porém… a pessoa no espelho não é mais ele.
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“Ei, o que você está fazendo acordado, senhor Bellone?”
Pergunta a nova pessoa, ainda se olhando no espelho.
Sem as lentes dos óculos e muitos centímetros mais próximo do chão, os olhos cinzentos do jovem, ou melhor caracterizando, do pequenino menino coberto por seu manto protetor — que é apenas um edredom — observam a enorme pessoa à sua frente.
As palavras saem da boca do menino, mas também do confuso jovem de cabelos brancos, sem qualquer restrição ou vontade dele, naturais apenas…
Um pouco saudosas em sua língua e lábios.
A pessoa enorme pergunta, um suspiro profundo escapando dela…
O menino consegue perceber, por um curto momento, talvez segundos, uma expressão de descontentamento no rosto da pessoa.
Porém, a expressão desaparece na mesma velocidade com que apareceu, dando lugar a um sorriso sutil e…
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“Ok. Vamos fazer o seguinte…”
Começa a pessoa enorme, pegando algo na pia do banheiro e levando ao rosto.
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“Se você voltar para sua cama e dormir, eu juro que faço um bolo inteiro para você comer sozinho…”
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“E aí, que tal a proposta?”
Murmura o menino, seus minúsculos dedos apertam o tecido felpudo e macio do edredom enrolado em seu corpo.
“Com recheio e granulado?”
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“De chocolate ainda por cima”
Responde à pessoa, soltando uma risada.
Uma onda de empolgação percorreu o pequeno corpo do menino, transbordando-o de alegria, o sabor do chocolate já em sua boca…
No entanto, ao se lembrar de um detalhe importante e do que o levou até a pessoa, ele sussurra, quase inaudível:
“Mas eu não quero ficar sozinho aqui.”
A pessoa enorme para o que estava fazendo e, enfim, olha para o menino.
Porém, o jovem, ou melhor dizendo, Bellone, não consegue discernir nenhum detalhe da pessoa à sua frente, quem seja; para si, é apenas uma silhueta.
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“Pensei que você não tivesse mais medo disso, Bell…”
Responde docemente à pessoa enorme, sua voz capaz de acalmar as ondas mais tormentosas.
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“Mas não precisa se preocupar, eu já chamei Kayê para cuidar de você.”
Em um piscar de olhos, Bellone estava frente ao espelho novamente…
No entanto, algo estava errado.
Uma dor, que só pode ser adjetivada como desumana, irrompeu por toda a extensão da coluna vertebral dele.
O celular em sua mão caiu com um baque mudo na água.
As mãos dele imediatamente agarraram a borda da pia.
Algo estava triturando cada uma das vértebras de sua coluna e devorando qualquer suculenta articulação no meio do caminho.
Embora não quisesse, as costas dele arquearam para cima em uma curva anormal.
E, se antes a respiração dele era leve e sutil, agora tornara-se um arquejar doloroso, que fazia seu peito se elevar e cair num ritmo frenético.
Porém, o pior veio no momento em que ele ergueu os olhos mais uma vez para a superfície reflexiva do espelho…
Na lateral direita de seu pescoço, um buraco estava rasgando sua pele, abrindo espaço e transbordando gotas de sangue; essas eram acompanhadas por uma cor distinta do carmesim aguado, mas que era similar à tonalidade azul do banheiro, porém mais clara que a gola alta que Bellone usava.
A mão trêmula e sem forças dele ergueu-se em direção ao buraco no pescoço; e a boca dele, igualmente trêmula, com a mandíbula tentando se abrir para um berro, foi inundada por um sabor férrico e viscoso; sua laringe e cordas vocais haviam sido destruídas e comidas, impedindo-o de agir em reflexo à dor por meio de sua voz.
Então, enfim, uma, duas e mais três pétalas azuladas desabrocharam do buraco em seu pescoço.
Uma única flor havia nascido, e a hemoglobina ardente que pingava e pintava ainda mais sua cor distinta e bela vinha da torrente de sangue que transbordava da boca de Bellone.
Como um borrão de segundos, seus olhos prateados nem tiveram forças para se arregalar ao ver o nascimento da flor pelo reflexo no espelho, ou para mostrar qualquer reação a mais, visto que ele apenas pôde se ver desabando para o chão encharcado abaixo de si.
Disse a jovem no quarto, enquanto virava o olhar para a porta do mesmo.
Na distância, novamente, um grito distorcido e misto de humano com animal ecoou pela “não-floresta” ao redor do garoto.
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Não mandem mensagens. Conversamos depois.
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