Termino de arrumar minha cama, cuidadosamente alisando os lençóis, e desço em direção à mesa do café. A luz matinal entra pelas janelas da cozinha, banhando o ambiente com um brilho suave. Percebo que, mais uma vez, minha mãe dormiu no sofá. Para ser honesto, não me lembro de tê-la visto dormir em sua própria cama nos meus 14 anos de vida. Talvez seja pelo trabalho exaustivo como professora ou pela preocupação constante em garantir que nada nos falte. Como sempre, a mesa do café está perfeitamente arrumada, com tudo no lugar: pão fresco, geleia, manteiga, frutas cortadas e um bule de café fumegante.
— Bom dia, meu príncipe! — ela diz, dando um beijo suave na minha cabeça, e eu sorrio automaticamente, sentindo o carinho no gesto.
— Bom dia, mãe — respondo.
— Dormiu bem? Não se esqueça de que tem prova hoje. Deve sempre descansar bem — ela diz, enquanto coloca café no copo e dá um longo gole, o aroma forte do café espalhando-se pela cozinha.
— Dormi super bem. E a senhora? — pergunto, já sabendo que ela vai mentir na resposta.
— Super bem.
Por que mães mentem? Elas vivem dizendo que nunca devemos mentir, porque é feio e devemos sempre ter um compromisso com a verdade, mas na primeira oportunidade, elas mentem sem pensar duas vezes. Mesmo que minha mãe tente disfarçar, eu também não dormi bem ontem. Fiquei ouvindo a discussão dela com o senhor Dorvan. Ele é meu treinador de futebol e hóquei, e para todos os outros meninos, ele é um cara legal. Menos comigo.
Ele vive dando em cima da minha mãe, convidando-a para sair quase todo fim de semana, sempre dizendo que é para lembrar os velhos tempos. Quando eu tinha uns dez anos, cheguei a suspeitar que ele fosse meu pai, mas minha tia Nanda garantiu várias vezes que a relação dele com minha mãe só existe na cabeça dele.
Ontem, ele veio aqui completamente bêbado, e como sempre, ficou lá fora quebrando tudo. Chutou a porta algumas vezes e só parou quando minha mãe ligou para o meu tio Alan, que veio expulsá-lo. Fingi estar dormindo o tempo todo. Até mesmo quando a ouvi chorar, eu odeio ouvir minha mãe chorar.
— Bryan! — Sua voz se torna mais alta. — Você ouviu o que eu disse?
— Desculpa, mãe! Eu estava repassando a matéria de química — minto, tentando soar convincente.
— Ok, pega sua bolsa. Vamos, senão vamos nos atrasar.
Ela diz “vamos”, mas na verdade é só ela quem vai se atrasar, por ser professora e ter que chegar mais cedo. Isso me faz passar horas esperando, mas como meu primo Bruce também tem que esperar, ficamos juntos a maior parte do tempo. Enquanto pego minha bolsa, penso em como minha mãe é forte, sempre se mantendo firme, apesar de tudo.
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Converso um pouco com meu primo, que só fala do time de hóquei. Ele realmente gosta muito, assim como meu tio Alan. Eu também gosto, mas tento não comentar com a minha mãe, pois ela não gosta nada desse esporte. Talvez por causa dos riscos de lesões ou por alguma experiência negativa do passado, que ela nunca compartilhou comigo.
Assim que nossos amigos chegam, corremos para o rinque. Ainda temos alguns minutos para jogar antes que o sinal toque. Entre hóquei e futebol, eu prefiro hóquei, mesmo sendo o quarterback do time da escola, posição que todos querem. Amo esportes, marcar gols, fazer touchdowns e correr com a bola ou com o puck. Há algo sobre a adrenalina no gelo que me atrai mais do que qualquer outra coisa. A sensação de deslizar sobre o gelo, o som das lâminas dos patins cortando a superfície, é simplesmente indescritível.
Infelizmente, o sinal toca e temos que correr para a aula. Normalmente, não tenho pressa, mas hoje faz diferença. A primeira aula é com minha mãe, e nunca posso me atrasar com ela na sala. Além de levar bronca na frente dos meus colegas, também levo uma pior em casa.
Corremos pelo corredor, onde ela já está caminhando lentamente para nossa sala. Ela me encara e faz um leve gesto de negação com a cabeça, mas mantém o sorriso. Entro na sala e me jogo na cadeira. Meu primo senta ao lado e minha mãe analisa o suor em nossos rostos.
— Devo lembrá-los, senhores Hart, que a utilização de qualquer campo esportivo do colégio, antes do início das aulas e sem a supervisão de um professor, é veementemente proibida — ela diz, assinando duas detenções. — E como o professor Dorvan ainda não chegou, ambos estão de detenção ao final do dia.
Ela coloca os papéis em nossas mesas e nos entreolhamos. Minha mãe é bem severa como professora. Sei que ela deve ser ainda mais rigorosa por dar aula para o próprio filho, então não pode deixar passar nenhuma gracinha.
— Guardem os celulares. Em cima das mesas, apenas duas canetas pretas — ela diz, e todos na sala obedecem, o som de mochilas sendo abertas e canetas sendo colocadas sobre as mesas ecoando pela sala.
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Eu odeio fazer prova, e o pior dia para mim de todo o semestre é o provão. São sete aulas de prova, com um intervalo de apenas 15 minutos, além de não poder usar nenhuma das áreas esportivas do colégio. É um teste de resistência mental tanto quanto é de conhecimento.
— Acha que foi bem? — ela me pergunta, enquanto sento no banco amarelo da cafeteria do meu tio, o ambiente aconchegante e familiar me proporcionando um alívio temporário.
— Mais ou menos — respondo, e minha mãe dá um beijo na minha cabeça.
— Pode almoçar. E não se esqueça de voltar para o colégio para cumprir a detenção. Ai de você se eu souber que não foi, Bryan.
— Eu prometo ir, mãe.
Assim que ela sai, meu tio coloca o almoço na minha frente e sorri. Ele é a figura paterna mais próxima que eu tenho. Sempre está comigo quando preciso, seu apoio inabalável me dá forças.
— O Bruce me contou sobre as ofensas que o menino Dantas dirigiu a você — ele diz, sua voz cheia de preocupação.
— Tá tranquilo, já me acostumei — digo, dando uma bela garfada no prato.
Realmente me acostumei. Não me lembro de uma única semana na minha vida em que não fui ofendido ou alvo de piadas sem graça por não ter um pai. Sei que tenho um pai, ele está em algum lugar por aí.
Quando eu tinha uns 5 ou 7 anos, achava que ele tinha morrido, e vivi um tempo pensando assim: "Meu pai morreu, por isso não está aqui comigo". Mas, ao crescer, entendi que não era isso. Porque se fosse, minha mãe teria me contado. Morrer é bem melhor do que abandonar.
— Bateu no técnico Dorvan? — pergunto, deixando claro para ele que ouvi tudo.
— Bem que eu queria, mas não — tio Alan coloca um pedaço de torta holandesa na minha frente. — Já estou de saco cheio desse cara. Sua mãe tem dito "não" para ele há 16 anos, e ele continua insistindo. Não sei dizer se é um ato de burrice sem tamanho ou amor da mais pura forma.
— Burrice, sem qualquer dúvida.
— Burrice, sem qualquer dúvida — respondo, observando meu tio enquanto ele limpa uma mesa próxima. A cafeteria está tranquila nesse começo de tarde, com apenas alguns clientes regulares saboreando seus cafés e lendo jornais. - Mas eu queria que ele deixa-se minha mãe em paz.
Meu tio balança a cabeça, parecendo concordar comigo. Ele sempre foi um grande apoio para mim e minha mãe, especialmente nos momentos difíceis.
— Sabe, Bryan, sua mãe é uma mulher forte, mas até os fortes têm seus limites — diz ele, voltando-se para mim. — O Dorvan está testando a paciência dela há muito tempo. Ela aguenta firme por você, mas eu me preocupo com o quanto mais ela pode suportar.
Eu olho para o meu tio e vejo a seriedade em seus olhos. Ele realmente se preocupa com a gente, mais do que eu consigo expressar em palavras.
— Eu sei, tio Alan. Tento fazer o meu melhor para ajudar, mas às vezes sinto que não é suficiente — admito, mexendo na comida no meu prato.
— Você já faz muito, Bryan. E só de estar aqui para a sua mãe, você já é uma grande ajuda. Só precisamos encontrar uma maneira de lidar com o Dorvan de uma vez por todas.
Eu aceno com a cabeça, sabendo que ele tem razão. Termino o meu almoço e agradeço ao meu tio pela comida. Com a promessa de voltar para o colégio para a detenção ainda pairando sobre mim, eu me despeço e saio da cafeteria, sentindo o calor do sol do meio-dia sobre a minha pele.
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Caminhando de volta para a escola, meus pensamentos voltam as ofensas que o Dantas, desferio contra mim, o Willian Dantas, sempre pego no meu pé, quase todos dias são uma , mas sempre dou o meu melhor. E, claro, há a questão do Dorvan, que continua a incomodar minha mãe. Algo precisa ser feito, mas o quê?
Quando chego à escola, encontro Bruce esperando por mim no portão. Ele sorri e me dá um tapinha nas costas.
— Pronto para a detenção? — pergunta, com um sorriso travesso no rosto.
— Nem tanto, mas fazer o quê? — respondo, revirando os olhos.
Caminhamos juntos pelo corredor, até a sala de detenção. O professor Dorvan ainda não chegou, o que nos dá um pouco de tempo para conversar.
— Ouvi o tio Alan falar sobre o Dorvan — Bruce diz, enquanto nos sentamos. — Ele realmente precisa de um basta. Se ele continuar assim, quem sabe o que pode acontecer.
— Eu sei. Estou pensando em como podemos resolver isso — digo, olhando ao redor da sala. — Talvez possamos falar com a direção da escola. Eles devem saber o que está acontecendo.
— Pode ser uma boa ideia. Temos que proteger sua mãe, e também você. Ninguém merece passar por isso.
A sala de detenção começa a encher com outros alunos, e logo o professor Dorvan entra. Ele nos lança um olhar severo antes de se sentar em sua mesa. A tensão no ar é palpável, mas Bruce e eu trocamos um olhar determinado. Vamos descobrir uma maneira de lidar com isso, de uma vez por todas.
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Depois da detenção, volto para casa, exausto. Minha mãe já está lá, preparando o jantar. O cheiro de macarrão com molho de tomate enche a cozinha, me fazendo lembrar de tempos mais simples.
— Como foi a detenção? — ela pergunta, sem tirar os olhos do fogão.
— Foi o de sempre. Nada de novo — respondo, tentando soar despreocupado.
Ela se vira e me olha, os olhos cheios de preocupação e carinho.
— Sabe, Bryan, eu sei que tudo isso é difícil para você. Quero que saiba que estou aqui para você, sempre.
— Eu sei, mãe. E eu também estou aqui para você — digo, caminhando até ela e a abraçando. — Nós vamos passar por isso juntos.
Enquanto jantamos, conversamos sobre o dia e faço questão de contar sobre minhas provas, os amigos e até algumas piadas que ouvi. Tentamos manter a leveza, mesmo sabendo que há desafios à frente. No fundo, sei que o verdadeiro teste ainda está por vir, mas com minha mãe e meu tio Alan ao meu lado, sinto-me mais forte e preparado para enfrentá-lo.
Acordo com um feixe de luz na minha cara. Olho para a janela e vejo o sol brilhando intensamente. Meus olhos se voltam para a cômoda ao meu lado, onde o despertador marca 10:40, piscando na cor verde.
Hoje é sábado, um dia sem aula, sem colégio, sem bullying e sem qualquer outra coisa que tire meu sorriso. Para melhorar, hoje também é dia de hóquei. Mesmo que minha mãe não goste muito, meu tio sempre leva a mim e ao Bruce para o rinque da cidade, onde ficamos jogando por horas. Enquanto isso, ela e minha tia ficam na cafeteria do tio Alan.
Isso é a única coisa que me irrita no sábado, o fato de minha mãe trabalhar tanto. Não sei exatamente por que ela faz isso, mas sei que deve ter um motivo. Talvez seja para garantir que não nos falte nada, ou talvez para manter a mente ocupada.
Desço as escadas correndo, já com meu equipamento de hóquei pronto, ansioso para jogar contra meu primo e mostrar minhas habilidades. Encontro minha mãe na cozinha, preparando o café da manhã.
— Bom dia, meu príncipe. — Como sempre, ganho um beijo na testa. — Hóquei? — Ela diz, claramente sem muita animação.
— Sim, hóquei — respondo com um sorriso.
Meu tio Alan aparece na porta, acompanhado de sua esposa.
— Só tomem cuidado, ok? Não quero meu filho todo machucado. — Minha mãe diz, dando-me um beijo na bochecha.
— Pode deixar, vou cuidar do Bryan — meu tio responde, piscando para mim.
Apenas pego uma maçã e corro para o rinque com meu tio e primo. Ao longo do caminho, passamos pela casa do meu avô.
Minha relação com meu avô é complicada. Sei que ele nunca foi a favor de minha mãe me ter, além de ter alguns problemas com meu pai. Quando ele fica bêbado, acaba falando demais. E considerando a garrafa de whisky em suas mãos, hoje vai ser um daqueles dias puxados.
— Bryan! — Ele chama, a voz rouca e arrastada.
Paro e olho para ele, hesitante. Meu tio Alan coloca a mão no meu ombro, como se me dando força.
— Vamos lá, Bryan. Não temos o dia todo — diz Bruce, impaciente.
— Só um minuto — respondo, caminhando até meu avô.
— Oi, vovô. Tudo bem? — pergunto, tentando soar casual.
— Tudo, tudo. Sabe, garoto, você me lembra tanto o seu pai... — Ele começa, os olhos vidrados. — Dylan, eu cheguei a gostar dele.
Sinto meu coração acelerar ao ouvir o nome de meu pai. Dylan, é um nome legal.Não muitas pessoas falam sobre ele, e as poucas vezes que mencionam, é sempre um mistério.
— Ele... ele poderia ter sido uma lenda, sabe? Mas.....a família.....Ele... — a voz dele vacila, e ele parece perdido em suas memórias. — Ele era um bom menino.
— Bryan! - o Bruce me puxa beavo.- Deixa, o vovô ai, ta bêbado de novo.
Volto para junto do meu tio e primo, e seguimos nosso caminho para o rinque.
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Chegamos ao rinque, e o ambiente é eletrizante. O som dos patins cortando o gelo, as risadas e os gritos dos jogadores me fazem sentir vivo. O tio Alan nos guia através de uma série de exercícios, aprimorando nossas habilidades.
Bruce e eu nos enfrentamos em várias partidas, e a competição é acirrada. Ele é naturalmente talentoso, e embora eu também seja bom, não consigo evitar sentir uma pontada de inveja. Bruce tem um pai que o apoia e o treina, algo que eu só posso sonhar.
Mesmo que eu tente evitar, meu avô voltou a despertar em mim, essa dor de não ter ninguém, normalmente eu não ligaria, em ver meu tio brincando e rindo com meu primo.
Depois de algumas horas, voltamos para a casa do tio Alan. O cheiro de churrasco vindo do quintal me faz sorrir. O tio Alan sempre faz um churrasco delicioso depois dos nossos treinos.
Sentados ao redor da mesa no quintal, comendo hambúrgueres e cachorros-quentes, conversamos sobre o treino. Bruce fala animadamente sobre suas jogadas favoritas, e eu escuto, rindo de suas histórias. Apesar da pequena pontada de inveja, realmente gosto desses momentos.
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Volto para casa. Minha mãe está na sala, lendo um livro, e sorri quando me vê.
— Como foi o treino? — ela pergunta.
— Foi ótimo! O tio Alan disse que estou melhorando no ataque — respondo com orgulho.
— Fico feliz em ouvir isso, meu amor. Descanse um pouco, você merece — ela diz, voltando ao seu livro.
A noite cai rapidamente, e decido sair para dar uma volta. Caminho pelo bairro, as luzes da rua iluminando o caminho. Encontro meu avô sentado na varanda de sua casa, a garrafa de whisky agora quase vazia. Ele parece ainda mais velho e cansado.
— Oi, vovô — digo, aproximando-me.
— Bryan! — ele exclama, a voz um pouco arrastada pelo álcool. — O que faz aqui?! Veio encher meu saco.
ㅡ Que isso vô. - Bruce duz saindo de dentro da casa.- Meu pai pediu para ver se ele estava bem.
Sento ao seu lado do meu primo, o silêncio preenchido apenas pelo som dos grilos e o ocasional carro passando.
— Sabia que seu pai era um grande jogador de hóquei? — O velho ao nosso lado diz de repente, com a voz carregada de nostalgia.
Minha respiração se prende. Meu pai nunca foi um assunto aberto em nossa casa. Tudo que sei é que ele nos deixou antes de eu nascer.
— O quê? — O meu primo questiona.- Um jogador de hóquei?
— Sim, Dylan Keer. O grande Dylan Keer. — Ele balança a cabeça, como se estivesse lembrando de algo distante. O Bruce parece chocado.
Eu não sei muito sobre os jogadores em sim, sei dos times, minha mãe não me ver nada sobre hóquei muito afundo, agora sem o motivo.
ㅡ Impossível, o Dylan Keer é o maior do mundo. - O Bruce diz incrédulo.
Eu fico em silêncio, processando a informação. Dylan Keer. A revelação me atinge com força, e sinto uma mistura de raiva e curiosidade crescendo dentro de mim.
— Aqui a prova! — Meu avô, joga ao chão uma foto de minha mãe beijando i tal Dylan.
ㅡ Meu deus é ele mesmo. - O Bruce diz sorrindo feliz.
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Eu fico em silêncio, virando de um lado para o outro tentando dormir, mas me perdido em meus pensamentos. Meu pai, Dylan Keer, um jogador de hóquei famoso. As peças do quebra-cabeça começam a se encaixar, mas ainda há tantas perguntas sem resposta.
— Eu preciso encontrá-lo — digo, finalmente.
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