Abracei os joelhos enquanto descansava meu queixo nestes, olhando fixamente para o chão enquanto ouvia os gritos vindos do andar de baixo. Mamãe estava desesperada e pedia para ele parar, mas eu sabia que não pararia enquanto não se sentisse satisfeito. Ele era esse tipo de pessoa.
Seus gritos eram incansáveis e agoniados e me faziam querer levantar e tentar impedi-lo, mas eu sabia muito bem o que aconteceria se eu saísse daqui. Sabia que ele iria me agredir também, tal como na primeira vez. Lembro deste dia como se fosse ontem, pois foi onde todo esse inferno começou. Mamãe nunca mais foi a mesma. Aos poucos ela perdeu toda a sua luz. E ver aquilo acontecer sem poder fazer nada me torturava.
Um barulho de vidro se chocando contra o chão soou, me fazendo apertar os braços em volta das minhas pernas. Eu queria poder ajuda-la. Queria poder tira-la deste sofrimento, mas sou apenas uma criança inútil. O que posso fazer para aquele homem parar de machucá-la? Ela está gritando e chorando tanto. Isso faz o meu coração se partir em mil pedacinhos.
Eu conseguia ouvir os tapas e os chutes que ele proferia e parecia que estes sons ficavam impregnados em minha cabeça, martelando nesta e me torturando.
Por que ninguém aciona a polícia? Todos os nossos vizinhos ouvem as brigas entre meus pais, mas por que ninguém sequer a ajuda?
Na segunda vez que ele a agrediu eu liguei para a polícia, e por conta disso acabei apanhando no lugar da mamãe. Ele me ouviu e veio até mim, mentindo para os policiais, dizendo que eu estava tentando passar um trote ou algo do tipo. Por algum motivo eles acreditaram e então, quando a chamada se encerrou, ele me socou até que eu perdesse a consciência. Fiquei sem ir para a escola por dias para esconder os meus hematomas, sendo que o que eu mais queria era sair e gritar por ajuda.
Faz 5 anos que as agressões começaram. Na época eu tinha 5 anos e atualmente tenho 10. Sinto que todos esses anos demoraram uma eternidade. A cada ano novo eu acreditava que ele iria parar, mas ele não parou. Pelo contrário, tudo apenas piorou.
Na escola vejo os mais velhos dizerem que as crianças devem ser felizes e amadas e que devem aproveitar a infância ao máximo, e eu me pergunto como é essa sensação. Como é ser feliz? Como é ser amado? Eu sei que mamãe da tudo dela para cuidar de mim. Sei que se preocupa comigo. Mas sei também que ela está cansada de toda a nossa situação. Às vezes tenho sonhos perturbadores, os quais ela vai embora e me deixa aqui. Quando a contei sobre esses sonhos, ela apenas sorriu tristonha e afagou a minha cabeça.
A risada sombria daquele homem soou, me puxando de volta para a realidade. Fechei as mãos em punhos, sentindo estas tremerem. Meus olhos começaram a arder, mas lutei contra a vontade de chorar. Eu precisava ser forte pela mamãe.
Ouvi todos os xingamentos que ele proferia a ela, sempre com um tom debochado. Aquilo aumentou a minha raiva, aquela que alimentei por anos. Eu podia dizer com todas as minhas forças que eu o odiava. Odiava a sua voz, o seu rosto, a sua maneira de falar. O odiava pelo simples fato de existir.
— Você nunca deveria ter nascido. — Sussurrei, sentindo o meu peito doer ao perceber que os gritos de minha mãe haviam cessado. Ele a agrediu até que ela perdesse a consciência.
Deitei a cabeça sobre meus joelhos, sentindo toda a tristeza me atingir. Estou tão cansada disso. Estou cansada de ver a mamãe sofrer. Eu quero vê-la sorrir novamente. Eu só quero que ela seja feliz. Por que esse homem simplesmente não desaparece?
Ergui lentamente a cabeça, piscando alguma vezes enquanto refletia a respeito de minhas palavras. Elas nunca fizeram tanto sentido como agora. Olhei para as minhas mãos, estas agora abertas, e percebi que precisava ser forte para aguentar todos os anos que estavam por vir. Eu precisava aguentar por mim e pela mamãe. Voltei a fechar as mãos em punhos, respirando fundo para tentar me acalmar.
Me levantei e caminhei até a minha penteadeira, o local onde se encontrava um porta-retrato de minha família virado para baixo. O peguei, sentindo o nojo e o desprezo tomarem conta do meu corpo enquanto observava aquele homem sorrir na foto. Aquele que, em algum momento, chamei de pai, mas que hoje não passa de um estranho para mim.
— Eu irei suportar todos esses anos apenas para me vingar de você. Eu irei crescer e guardarei comigo todas as coisas ruins que você nos fez. Irei fazê-lo sofrer e pagar por todos esses anos de tortura. Isso é uma promessa.
Me virei para a torradeira assim que esta apitou, levantando as torradas para avisar que estas estavam prontas. Com uma das mãos abri o armário e alcancei um prato. Com a outra, levei a xícara de café a boca. Estalei a língua em satisfação ao sentir a bebida forte e sem açúcar descer por minha garganta. Nada melhor do que um café forte para começar a semana.
Coloquei as torradas no prato e me sentei à mesa, ouvindo o noticiário enquanto continuava a beber minha bebida. Uma leve chuva caía do lado de fora, me fazendo resmungar mentalmente. Teria que providenciar um guarda-chuva, visto que o meu antigo foi esquecido em algum lugar. Talvez eu devesse comprar uma capa para chuva. Odiava carregar coisas, ainda mais um guarda-chuva. Era tão incômodo.
"Mais dois corpos foram encontrados nesta manhã a beira do Rio Tamisa. Assim como das outras vezes, os corpos pertencem a mulheres da mesma faixa etária. Ambas eram jovens, por volta de vinte e cinco anos, e trabalhavam em bares. A polícia investiga o caso juntamente com os anteriores e tenta juntar pistas que revelem alguma relação entre os casos. Suspeita-se que um possível serial killer esteja atrás dessas mulheres enquanto voltam para a casa à noite. A polícia recomenda que todos tomem o máximo de cuidado e evitem sair à noite enquanto o assassino esteja à solta."
Não pude evitar de revirar os olhos enquanto levava uma das torradas a boca, sentindo-me frustrada ao ouvir as palavras da apresentadora. Realmente, não há um segundo de paz enquanto idiotas como esse continuam a solta. Agora todos devem tomar cuidado porque um imbecil está matando pessoas por prazer.
— Psicopata de merda.
Era inevitável para mim, toda a vez que me deparava com situações como essa, ignorar os pensamentos que inundavam a minha mente. Esse tipo de coisa, embora um pouco diferente, me trazia lembranças da minha triste infância. Pensar no quanto aquelas duas mulheres devem ter sofrido na noite passada, gritando por socorro, me faziam lembrar dos berros desesperados de minha mãe.
Parei subitamente de mastigar, sentindo todo aquele meu apetite desaparecer. Larguei a torrada mordida no prato e me levantei, caminhando ate a televisão e a desligando. Por mais que fosse importante se atentar as notícias, estava farta de tanta porcaria. Farta de remoer todos aqueles acontecimentos. Talvez eu devesse dar um tempo dos jornais.
Depois de passar tantos anos sofrendo, eu consegui sair daquela casa e daquela cidade. Estava cansada dos dias monótonos e sofridos. Acordar, ir para a escola e voltar apenas para ouvir aquele homem espancar minha mãe era deprimente. Felizmente, depois de vinte e dois anos "vivendo" desta forma, consegui mudar para Londres. Eu morava em Ligonier, Pennsylvania, uma cidade com aproximadamente 1.500 habitantes. Conhecia praticamente todas as pessoas e vice-versa. E isso era um saco.
Todos acreditavam que aquele homem, vulgo meu pai, era uma boa pessoa. Ou pelo menos fingiam que acreditavam. Acho que a maioria sabia o tipo de desgraçado que ele era, mas pelo fato de ele ter muito dinheiro e muita influência na cidade, jogavam tudo para de baixo do tapete e ignoravam a nossa situação. Esse foi um dos motivos que me fizeram largar tudo para trás. O fato de passarem pano para aquele homem me enojava mais do que tudo.
Para ser honesta, me sentia extremamente mal e culpada por deixar minha mãe. Eu tentei a todo custo leva-la comigo, mas ele me ameaçou. Lembro-me perfeitamente quando me disse que não se importava comigo. Ele disse: "Você pode desaparecer e eu não darei a mínima, mas a vadia da sua mãe permanecerá ao meu lado. Se me desobedecer, pode ter certeza que farei de você a prisioneira desta casa."
Minha mãe temia que isso realmente acontecesse e então me mandou ir embora e construir a minha vida. Nós conversamos com frequência, porém, recentemente as suas ligações estão ficando raras e curtas. Não conversamos mais do que dez minutos, o que é pouco, visto que normalmente nos falamos por mais de uma hora. Não posso deixar de me preocupar. Tenho medo que ele a esteja ameaçando.
Fechei os olhos e suspirei em desaprovação, levando uma das mãos até a testa. Eu prometi que iria me vingar dele, mas como farei isso? Estou com vinte e cinco anos e até agora não consegui ajudar minha mãe a se livrar das garras daquele monstro. Tento não pensar nisso, mas às vezes, em momentos como esse, me pego me perguntando se realmente serei útil algum dia.
...|...|...
— O quê? Por que o café expresso aqui é tão caro? Na outra cafeteria está bem mais barato, sabia?
Ao ouvir tais palavras, todo o meu esforço para sorrir de maneira minimamente decente foram por água abaixo. Deixei que o meu sorriso forçado desaparecesse, dando lugar a minha habitual expressão de mau humor. Fechei os olhos por alguns segundos, sabendo o que estava por vir.
— Ah, é mesmo? — Encarei a mulher com desdém. — Então por que não vai comprar o seu maldito café na outra cafeteria?
— C-Como?
Eu sabia que deveria ficar quieta. Sabia que bem possivelmente eu estava encrencada, mas eu sinceramente não dava a mínima para isso.
— Está com algum problema de audição, senhora? — Enfatizei a palavra, erguendo as sobrancelhas no processo.
— Jesus, como pode alguém tão mau educado trabalhar aqui? Não lhe ensinaram que deve respeitar os clientes, menina?
— Ah, me ensinaram, sim. Mas que eu me lembre, devemos respeitar aqueles que nos respeitam. Não sou obrigada a ser educada com alguém que não tem o mínimo de senso.
— Vou reportar isso ao seu chefe! Pode ter certeza que será demitida, garota mau educada!
Dito isso, a mulher se virou e correu para a saída, deixando-me finalmente em paz ao sair. Bufei enquanto pegava um pano para limpar o balcão, sentindo-me um pouco aliviada por ter respondido as suas indelicadas palavras. Sabia que me culparia se tivesse ficado quieta. Já tinha feito isso uma dezena de vezes só hoje.
— Cara, você está ferrada!
Spencer, minha colega de trabalho, se aproximou e parou ao meu lado, encarando-me com os olhos azuis incrédulos e divertidos.
—É, eu sei.
— Ei, você deveria tomar cuidado. Sei que essa gente é um saco, mas você me disse que esse é o terceiro emprego neste mês, não é? — Assenti. — Se continuar com isso a Jean vai acabar te demitindo.
— Sim, eu sei, mas droga, Spencer, esta foi a décima vez que ouvi as mesmas palavras. Estou farta desses riquinhos exibidos que acham que podem mandar em tudo!
Spencer colocou uma mão em meu ombro e assentiu, murmurando um "eu entendo perfeitamente". Aquilo não ajudava muito, mas eu sabia que ela entendia. A questão era que Spencer conseguia ser paciente com esse tipo de pessoa. Talvez seja por isso que ela é a empregada mais velha de Jean, nossa chefe. Foi a única a aguentar ficar aqui mais de 2 meses. Eu me pergunto se conseguirei também.
Bom, com exceção dos clientes sem noção, aqui não era um local de trabalho ruim. A cafeteria era refinada e o salário também não era ruim. Jean era séria, mas conseguia ser compreensiva. Spencer me fazia companhia e acho que por causa dela eu consegui suportar algumas pessoas. Conversamos bastante e às vezes saímos para beber e jogar conversa fora. Ela é uma boa pessoa, apesar de também ser um pouco estressada. Acho que é por isso que nos demos bem. Ela meio que me entende.
— Ei, você viu o noticiário hoje? — Perguntou assim que terminou de atender um cliente.
— Infelizmente.
— Estão falando sobre um possível serial killer, não é? Viu a recomendação da polícia? — Bufou, indignada. — Talvez seja o certo a se fazer, por precaução, mas como posso evitar de sair à noite? Quer dizer, nós fechamos às oito!
— Não acho que seremos tão azaradas a ponto de isso acontecer com a gente. Mas que é uma situação complicada é. — Revirei os olhos, começando a lavar alguns copos. — Felizmente não moramos tão longe do trabalho.
— Bom, eu não moro tão longe, mas você precisa andar por um bom tempo.
Ela estava certa. Mas eu ainda acreditava que não seria tão azarada a ponto de algo deste tipo acontecer comigo. Não é que eu não estivesse preocupada, mas sejamos sinceros: quais são as chances? Uma em cem, talvez?
— As ruas que percorro são tranquilas. Vai ficar tudo bem. Logo a polícia irá pegar esse maluco.
Spencer pareceu pensativa por um momento, mas logo concordou com a cabeça e sorriu compreensiva.
— Hoje seria um dia perfeito para passar no bar depois do trabalho, não é? Esquecer um pouco dos clientes irritantes com a bebida. — Suspirou, desapontada. Ela adorava uma bebida.
— Hoje é segunda-feira. Como tem vontade de beber no início da semana?
— É justamente por ser segunda-feira! Nada melhor do que encerrar o pior dia da semana com um alcoolzinho. — Riu, dando de ombros.
— Tem certeza que é por isso mesmo? Não está querendo ver como a Nancy está?
Spencer fechou a boca imediatamente e, aos poucos, suas bochechas ficaram ruborizadas. Pude perceber que ficou levemente desajustada, como se eu tivesse atingido o seu ponto fraco. Chegava a ser engraçado a forma como ela reagia, mas eu não podia negar que sentia um pouco de pena. Spencer não lidava bem quando se tratava de falar sobre seus sentimentos.
Me aproximei, colocando uma mão em seu ombro como forma de "consola-la". Ela desviou o olhar, como se quisesse mostrar que não ligava para o que eu havia dito, mas eu sabia que não era bem assim.
— Podemos passar lá hoje, ok? Veja como ela está. Tenho certeza que ela gostará da sua visita.
— Para com isso, Brooke. Nós não... não temos esse tipo de relacionamento. — Ela corou ainda mais.
Me senti um pouco mal por ter tocado no assunto. Talvez eu devesse ter ficado de boca fechada. Com a culpa me envolvendo, engoli em seco enquanto me afastava, murmurando um pedido de desculpas.
— Não, não precisa se desculpar. A verdade é que... — Respirou fundo, tomando coragem para começar a falar. — É unilateral. Ela me vê como amiga, entende? Então não temos nada além de uma amizade.
— Você não tentou conversar?
— Não. Estava bem explícito, desde o começo, que seríamos apenas amigas. Mas está tudo bem, sério. — Ela sorriu, fechando os olhos no processo. Spencer era realmente muito bonita, tanto por dentro quanto por fora. Por algum motivo, eu sentia que Nancy estava perdendo uma ótima pessoa.
Permanecemos em silêncio depois disso. Clientes começaram a adentrar a cafeteria, nos deixando ocupadas demais para jogar conversa fora. Quando me dei conta já havia anoitecido e estava quase na hora de fecharmos. Antes de sairmos eu dei uma última olhada para Spencer, vendo esta encarar o nada, perdida em pensamentos com um olhar tristonho.
...|...| ...
Segurei a alça da minha bolsa com força, fechando os olhos por alguns segundos enquanto tentava me manter calma. Estava tudo bem. Não era nada demais. Não passava de coisas da minha cabeça. Talvez eu estivesse envolvida demais com as notícias ao ponto de estas começarem a me afetar. Sim, certamente é isso.
Minha mente está tentando pregar alguma peça.
Soltei o ar lentamente pela boca, olhando pela rua deserta à minha frente. Alguns postes de luz piscavam incansavelmente e eu sentia, por algum estranho motivo, que eventualmente iriam se apagar.
Pela primeira vez em muito tempo eu senti medo.
Arrisquei olhar para trás, sentindo um calafrio percorrer a minha espinha enquanto via a rua inteiramente escura. De repente, passos começaram a soar sobre o asfalto, causando ecos enquanto pareciam se aproximar. Estava escuro demais para que eu pudesse enxergar alguma coisa e aquilo me deixou ainda mais nervosa. Voltei a fitar a rua à minha frente, desta vez me certificando de apressar o passo.
Repentinamente pensamentos relacionados aos assassinatos começaram a surgir, me fazendo suar frio. Talvez eu estivesse errada, afinal. Talvez eu realmente seja azarada ao ponto de ser o próximo alvo. Como as chances foram de um a cem para oitenta a cem?
Como se não bastasse o som de passos, um assobio sombrio começou a soar pela rua. Era calmo, porém eu sabia que também era perigoso. Me transmitia uma sensação mortífera. Imediatamente abri a boca e inspirei com força, sentindo minhas pernas bambas devido ao nervosismo que aumentava a cada segundo. Essa maldita sensação de estar sendo seguida me aterrorizava dos pés a cabeça. Eu só queria acreditar que não passava de uma ilusão, mas a este ponto eu tinha consciência de que não era.
Arregalei os olhos assim que um poste de luz acima de mim repentinamente se apagou, fazendo o meu coração errar uma batida. Para piorar a situação, os passos pareceram se aproximar e, antes que eu percebesse, eu estava correndo. Não tardou para sentir as minhas pernas queimarem e implorarem por um descanso. Novamente arrisquei olhar para trás, e desta vez vi ao longe uma silhueta. Não consegui visualizar a cara do indivíduo, mas sabia que se tratava de um homem com roupas pretas.
Assim que percebeu que eu o vi, o homem começou a correr, fazendo-me soltar um grito enquanto sentia que meus pulmões iriam explodir. Se a situação continuasse nesse ritmo, eu sabia que não teria muito tempo. Se continuasse desta forma, em poucos minutos estaria morta.
O pensamento me assolava de uma forma assustadora.
Acabei por me assustar assim que faróis de um carro apareceram subitamente, iluminando-me por completo. Parei de correr imediatamente, temendo ser atingida pelo veículo em alta velocidade. Fechei os olhos e esperei pelo impacto, mas este nunca veio. Quando tornei a abrir as pálpebras, vi que o automóvel estava à minha frente. Levei as costas das mãos aos olhos, tentando tapar a visão por causa da forte luminosidade do farol.
Foi então que me lembrei da situação em que me encontrei e me virei rapidamente, apenas para ver que o homem que antes me perseguia havia desaparecido. Alivia inundou meu corpo enquanto eu me curvava e apoiava as mãos nos joelhos, respirando fortemente.
Fechei um dos olhos e tentei enxergar a pessoa atrás do para-brisa, aquele que havia me salvado, mas devido a luz dos faróis não consegui ver nada. Estava prestes a abrir a boca para agradecê-lo quando o carro subitamente se afastou e seguiu a direção direita, deixando-me sozinha novamente.
Felicidade preencheu o meu peito assim que vi a minha casa a poucos metros de distância. Não hesitei em correr até ela, destrancar a porta e adentrar. Estava tão desesperada que sequer reparei que estava perto de casa. Mas talvez, apenas talvez, eu não fosse ter a chance de chegar até a porta se não fosse pelo motorista misterioso.
Tranquei a porta e então escorreguei até o chão, passando as mãos no cabelo enquanto suspirava. Hoje havia sido um dia e tanto.
Não consegui dormir na noite passada. Nem sequer um mísero segundo. Mesmo que eu tentasse me forçar, minhas pálpebras não se mexiam. Como consequência eu me sentia extremamente cansada e parecia que a qualquer momento iria cair. Tomei a minha dose diária de café e esfreguei os olhos, tentando me manter acordada.
Senti uma mão segurar a minha e lembrei que Spencer estava aqui, olhando-me com demasiada preocupação. Já havia contado o ocorrido da noite passada e me surpreendi assim que a garota apareceu na minha porta as cinco horas da manhã, enchendo-me de perguntas.
— Por que não fica em casa hoje? Posso falar com a Jean e dizer que você não está se sentindo bem.
— Eu adoraria, mas já estou ferrada o suficiente. Jean certamente vai achar que é uma desculpa para não trabalhar.
— Mas, Brooke...
— Eu consigo, Spencer. Não é a primeira vez que fico uma noite sem dormir.
Spencer assentiu, ainda relutante. Esta me enviou um olhar solidário enquanto falava:
— Bom, de qualquer forma, hoje lhe farei companhia. Não quero que volte sozinha para casa.
— Você não precisa fazer isso.
— Preciso, sim. Não vou te deixar sozinha depois do ocorrido de ontem. Que tipo de amiga eu seria se fizesse isso?
Encarei Spencer com uma leve surpresa. Eu imaginava que ela seria esse tipo de pessoa, mas certamente com um amigo de longa data, não comigo. Não posso deixar de negar que a sua demonstração me deixou feliz e agradecida. Era bom saber que alguém, além de minha mãe, se preocupava com a minha segurança.
Cedendo a ela, sorri e assenti com a cabeça. Nós terminamos de tomar o café da manhã e então pegamos os nossos casacos e saímos para o trabalho.
...|...|...
A caminhada até a cafeteria havia sido silenciosa, exceto pelos momentos em que Spencer tentara puxar algum assunto, a fim de amenizar o clima. Mas por mais que tentasse focar no que a garota falava, algo me impedia. O medo que senti na noite passada ainda percorria meus ossos e me fazia estremecer toda a vez que me lembrava de como cada segundo pareceu uma eternidade.
Além de recordar do homem que me perseguia, eu também não conseguia evitar de pensar na pessoa que havia me salvado. Sentia meu corpo formigar sempre que tentava imaginar o que aquela pessoa estava pensando e o porquê de não me deixar visualizá-la para, ao menos, agradecer. De alguma forma, sentia que estava em dívida com ele ou com ela. Nem sequer conseguia saber se tratava-se de um homem ou uma mulher.
Comentei com Spencer sobre isso e pude notar que ela também havia ficado agradecida pela ajuda desconhecida. Eu disse a ela que, se tivesse a oportunidade, gostaria de encontrar esta pessoa novamente para poder me expressar devidamente. Sentia que, enquanto não fizesse isso, não estaria em paz. Mas, sendo realista, quais são as chances de encontrar esta pessoa novamente? Tamanha coincidência não aconteceria.
Não pude deixar de perceber o olhar preocupado de Spencer. Às vezes me perguntava se eu merecia toda a sua preocupação. Por mais que ela seja a minha amiga que mais tenho "intimidade" desde que cheguei aqui, sinto que não sou digna de sua confiança. Spencer parece ser sempre tão verdadeira e simplória comigo e eu simplesmente não consigo retribuir da mesma forma. Estou, na maioria das vezes, tentando ao máximo não dar detalhes sobre a minha vida. Ninguém precisa saber do meu inferno pessoal.
Aprendi a ser este tipo de pessoa. Aprendi a não confiar em ninguém, muito menos abaixar a guarda para qualquer um em qualquer situação. Entendi, por meio dos acontecimentos, que não importante a situação, eu jamais devo me deixar abater. Ninguém pode saber das minhas fraquezas.
Fechei as mãos em punhos, respirando com cautela de forma que tentava disfarçar como lembrar do passado me afetava. Eu estava nos fundos da cafeteria, encostada a uma parede. O local estava praticamente vazio, o que me dava espaço para "relaxar" um pouco. Estaria muito melhor relaxando em minha cama.
Peguei meu celular, verificando se havia uma nova mensagem de minha mãe. Meu peito se apertou ao ver que não possuía nem uma notificação. A saudade me preencheu e quase me fez apertar o botão que iniciava uma chamada, mas, por sorte, consegui me controlar. Sabia que poderia complicar a sua situação caso ligasse de repente. Aquele maldito a vigiava noite e dia.
Pensar nisso fez toda a minha raiva de anos surgir, lembrando-me também da perseguição. De repente, percebi que não poderia morrer, pelo menos não agora. Não posso morrer e permitir que minha mãe continue sofrendo nas mãos daquele maníaco. Antes de partir eu devo libertá-la e dar a ela a felicidade que lhe foi tirada.
Neste momento de reflexão eu percebo que nunca, de fato, dei muito valor a vida que tenho. Crescer vendo sua mãe sendo espancada, ouvindo os berros e pedidos desesperados de socorro fazem você perceber o quão difícil é permanecer neste mundo, com pessoas extremamente perversas. Não há vontade de viver.
— Sempre que a pego em momentos assim, tão séria e pensativa, me pergunto que tipo de acontecimentos a deixaram tão abatida.
A voz de Spencer me fez voltar a realidade e eu a encarei com indiferença, mandando embora todo o traço da raiva que sentia.
— Não estou abatida.
— Sua expressão dizia o contrário. E a forma como está segurando o seu celular com tanta força que parece que vai parti-lo ao meio também. — Me enviou um olhar solidário. — Eu não sei o seu passado, Brooke, e não sei também que pensamentos a assolam no presente, mas saiba que, se precisar de um ombro amigo, eu sempre estarei aqui.
Novamente senti o meu peito se apertar ao ouvir tais palavras. Não estava acostumada a ser tratada com tanto carinho por alguém, exceto minha mãe. É algo novo demais para mim.
— Eu... — Suspirei, balançando a cabeça sem saber o que dizer. — Eu agradeço pela preocupação, Spencer. Sei que às vezes tenho atitudes estranhas, mas está tudo bem. Não se preocupe.
O olhar que a garota me enviou não parecia nada convencido, mas, se ela realmente estava desconfiada, não falou mais nada. Apenas sorriu amigavelmente e concordou, encerrando o assunto.
Nos viramos em direção a frente da cafeteria e foi nesse momento que percebi que estava sendo observada. Um rapaz estava parado com uma das mãos sob o balcão, os olhos presos em mim de uma forma calma e calculada. As íris azuis que me fitavam eram hipnotizantes, mas, no fundo, me alertavam sobre um enigma. Algo que eu definitivamente não deveria tentar entender.
Arqueei as sobrancelhas assim que a expressão do rapaz mudou em um segundo, tornando-se gentil e sorridente. Este acenou enquanto dizia amigavelmente:
— Desculpe por bisbilhotar. Eu não queria atrapalhar a conversa.
— Não se desculpe. Nós fomos descuidadas e não percebemos a sua presença. — Spencer tomou as rédeas e se desculpou. — O que deseja, senhor?
— Ah, não me chame de senhor, por favor. Eu não sou tão velho assim. — O rapaz brincou, gargalhando. — Pode me chamar de Neo.
— Ok, Neo. Chamo-me Spencer.
— É um nome muito bonito, se me permite dizer.
Parei de prestar atenção na conversa, pois a maneira como Neo me olhava ainda estava impregnada em minha mente. Talvez eu estivesse sendo cética demais. Mas eu sentia que aquele não era um olhar comum. Era um olhar de alguém que sabia de algo.
Continuei encarando o rapaz com seriedade, fazendo-o me encarar de volta. Ele ainda estava com aquela expressão gentil e sem graça de alguém que havia sido pego no pulo. Parecia tão inocente e encantador aos olhos de qualquer um, menos dos meus.
Teorias começaram a e formar na minha mente, deixando-me em estado de alerta. Ele não trabalhava para Joseph, não é? Qual poderia ser a chance daquele maldito enviar alguém para me espiar tão descaradamente? Se Neo realmente for um de seus subordinados, o que devo fazer? Talvez eu esteja em perigo a partir de agora? E se Spencer estiver em perigo?
Senti minhas mãos começarem a tremer, mas as fechei com todas as minhas forças, me negando a demonstrar medo. Não posso deixá-lo perceber que estou desconfiada. Preciso ser cautelosa.
— Talvez seja melhor eu ir embora.
Pisquei algumas vezes, voltando a prestar atenção na conversa dos dois à minha frente.
— Por quê? — Spencer indagou, confusa.
— Sua amiga está me olhando como se quisesse me matar. Acho que não sou bem-vindo aqui.
Spencer se virou para me encarar, franzindo as sobrancelhas em uma confusão inocente que me fez repensar em minhas atitudes. Eu estou sendo cética demais? Talvez tudo tenha sido apenas a minha imaginação?
— Brooke? Está tudo bem?
— Sim, eu só... — Abri a boca e a fechei, não sabendo o que falar. — Preciso de um minuto.
Não esperei por uma resposta, apenas me dirigi para a porta dos fundos da cafeteria. Assim que saí, inspirei uma grande quantidade de ar enquanto me encostava a parede. Eu sentia que toda a minha desconfiança poderia me levar a loucura.
...|...|...
— Mas que merda!
Um grito involuntário escapou por meus lábios enquanto eu me permitia cair sentada no chão de meu quarto. Sabia que não deveria estar gritando a esta hora da noite, visto que já se passava das 22h, mas eu simplesmente não conseguia esconder a minha frustração. Me sentia tão sobrecarregada, tanto mentalmente quanto fisicamente.
Spencer estava no banho há mais ou menos 10 minutos, o que me dava tempo para pensar no que tanto me preocupava. Me perguntava por que não conseguia esquecer do olhar de Neo, muito menos da pessoa que havia me salvado na noite anterior. Meu cérebro estava a milhão e eu não conseguia simplesmente sentar e tentar me tranquilizar. Algo me preocupava, me deixava nervosa e frustrada.
Enquanto Spencer e eu voltávamos para casa, senti que estava sendo observada. Não pude evitar de olhar para trás algumas vezes, atraindo a atenção da garota ao meu lado. Me culpei por deixá-la preocupada, mas naquele momento eu sabia que não podia ser descuidada. Mesmo não avistando ninguém, sentia que algo não estava certo.
Em determinado momento da caminhada comecei a ouvir passos atrás de nós, tal como na noite passada. Meu coração disparou e, em um ato súbito, me virei e parei, observando tudo ao nosso redor cautelosamente, apenas para encontrar uma rua escura e vazia. Depois disso comecei a me perguntar se estava ficando louca.
Spencer disse que poderia ser culpa da falta de descanso. Talvez a exaustão estivesse me fazendo ouvir coisas. Um lado meu queria acreditar fielmente naquilo, mas outro me dizia que não poderia ser algo tão "simples" assim.
Respirei fundo e me levantei, caminhando até a escrivaninha que ficava em frente a janela do quarto. Fitei o frasco de comprimidos para insônia que havia encontrado há poucos minutos, por fim pegando-o e retirando a tampa. Joguei um comprido sob minha mão e então alcancei a jarra de água que sempre deixava ali, despejando um pouco do líquido no copo. Observei a rua deserta à minha frente enquanto engolia o comprimido, sentindo um repentino frio na barriga.
Pousei o copo vazio em cima da madeira e me inclinei para a janela, estreitando os olhos para um carro parado a certa distância. Por algum motivo sentia que o veículo era familiar. Sim, de fato eu já o tinha visto antes, mas quando e onde?
O frio na barriga se tornou mais intenso à medida que eu observava melhor o carro, percebendo que alguém se encontrava no banco do motorista. E por um estranho motivo, eu tinha a impressão de que esta pessoa estava olhando diretamente para mim.
Meu instinto me fez alcançar o meu celular e discar o número da polícia. Algo definitivamente não estava certo. E eu provavelmente deveria tomar alguma providência antes que seja tarde demais. Sendo assim, levei o telefone ao ouvido, mas fui pega de surpresa assim que o carro deu partida e saiu rapidamente, deixando-me encarando o nada.
Desliguei a chamada e joguei o celular sobre a escrivaninha, levando as mãos aos cabelos e os segurando com força. Eu odiava aquela maldita sensação de estar sendo observada. Odiava me sentir perseguida e abominava ainda mais a ideia de me sentir louca.
Cambaleei para trás e me permiti cair na cama, sentindo a sonolência me dominar. Encarei a luz da lua que adentrava pela janela, me perguntando o porque de toda essa merda estar acontecendo. Poderia, realmente, ser tudo obra da minha imaginação? Estou ficando maluca? Ou talvez tudo não passe de um jogo psicológico organizado por alguém?
Tentei manter as pálpebras abertas enquanto tentava me decidir quais das opções faziam mais sentido, mas não obtive sucesso. Lentamente meus olhos se fecharam e todas as minhas preocupações desapareceram.
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