Campos do Sul.
Daniele caminhava devagar pela estradinha de pedras que dava acesso à casa, era noite e ela não conseguia enxergar muita coisa, de repente deu de cara com um pequeno portão que estava encostado.
- Que bom, não está trancado! Ela falou baixo para si mesma comemorando a pequena vitória.
Entrou no quintal da pequena casa de madeira e observou o ambiente, precisava saber se a amiga estava mesmo ali. Como estava escuro, não conseguia enxergar direito pelas janelas, mas de longe conseguiu ver a ponta dos pés de alguém, bateu na janela chamando a pessoa, mas os pés não se moviam.
O medo tomou conta de seu corpo e angustiada ela voltou a bater na janela.
Olhou em volta para ver se achava um jeito de entrar. Tentou abrir as primeiras janelas sem sucesso. Fez uma pequena prece pedindo a Deus que tivesse sorte com a última. Quando forçou a tranca, a janela abriu e ela pulou para dentro de um quarto com cheiro de mofo.
-Obrigada, meu Deus! Ela agradeceu andando rápido pelo lugar atrás da pessoa que tinha visto, de repente deu de cara com o corpo de uma mulher inconsciente.
- Amiga, por favor, acorda! Sou eu a Dani, eu te achei, eu te achei, por favor acorda! Ela dizia balançando a mulher pelos ombros. De repente viu um filete de sangue começando a escorrer do nariz da amiga, se desesperou e pegou o celular ligando para a emergência.
- Por favor, ajuda a minha amiga! Ela não está acordando! Daniele falava chorando no telefone com a atendente de emergência.
- Calma moça, me diga o que aconteceu para eu poder entender e te ajudar.
- Minha amiga está desacordada no chão, não sei o que aconteceu, começou a sair sangue do nariz dela, ajuda ela, por favor!
- Certo, olhe em volta, por favor, e veja se tem algo próximo a ela como drogas ou medicamentos. A atendente orientava com calma.
- Tem uma porção de embalagens de comprimidos aqui, ela deve ter tomado todos, meu Deus! Daniele chorava enquanto falava.
- Qual a sua localização, já estou deslocando uma ambulância, a sua amiga tentou suicídio e precisa ser socorrida logo.
- Estou no bairro Country, na mansão que fica no final da Rua Barão, ela está fechada e precisam entrar pelo portão do lado. Estou com a minha amiga na casinha que fica nos fundos. Ela dizia tremendo segurando a mão da amiga.
- Peguei sua localização, já mandei uma ambulância eles estavam perto, devem estar chegando. Por favor, se acalme para seguir minhas instruções.
- Tá bom, me fala que eu vou fazer, me ajuda moça, por favor, ela não está respirando! Daniele estava desesperada.
- Ela está em parada cardiorrespiratória, precisa começar a massagem cardíaca, vamos lá. Coloque as suas mãos uma em cima da outra bem no centro do peito dela, vá pressionando usando o peso do seu corpo está conseguindo?
- Sim, estou pressionando, ela chorava enquanto fazia a massagem.
- O movimento de sobe e desce deve ser contínuo. Não pare de pressionar, a vida dela depende disso! O socorro está chegando!
Daniele continuou repetidamente o movimento, estava extremamente concentrada, não podia deixar a amiga partir dessa forma tão desumana.
De repente a porta da casa se abre e os socorristas chegam rápido com várias maletas, pedem que Daniele deixe a amiga, mas ela está em choque parece que não ouve os homens.
- Moça você precisa sair, nós assumimos daqui. Um deles a tirou devagar e a deixou sentada no chão.
Um dos socorristas continuou a massagem enquanto o outro colocava uma máscara com oxigênio na mulher desacordada.
- Estamos perdendo ela, pega o desfibrilador! O outro começou a preparar o equipamento colocando gel nas duas pás, pegou uma tesoura e abriu a blusa da mulher colocando as pás em seu peito.
- Está pronto! Se afasta! E deu o primeiro choque! Tirou e o outro continuou a massagem. – Se afasta! E deu o segundo choque! – Droga, ela não responde!
- Continua, não podemos perdê-la, é muito jovem!! Disse um deles enquanto continuava a massagear.
- Se afasta! E deu mais um choque! Vamos lá moça, reaja! – Afasta, e deu o quarto choque! Ela está desistindo.
Daniele começou a chorar convulsivamente, andava de um lado para o outro não podia acreditar no que estava acontecendo. Se ela não tivesse chegado naquele momento e encontrado a amiga naquela casa ela já estaria morta, sem chance alguma de sobreviver.
- Ela quis partir, não aguentou mais. Todas aquelas embalagens de remédios, como ela conseguiu aquilo tudo? Como ela deve ter sofrido todo esse tempo sozinha nas mãos daquele monstro! Pensava Daniele com as lágrimas escorrendo pelo rosto.
A mulher estava toda marcada, dava para ver os roxos nos braços e embaixo do olho. Uma das mãos enfaixada. Os cabelos sujos. Estava bastante magra, o rosto muito fino. Era nítido que sofreu abusos físicos e psicológicos. Essa deve ter sido a causa para tentar o suicídio. Tomou vários comprimidos que achou na casa.
- Aquele desgraçado vai pagar por isso!! Daniele falou em voz alta.
Ela abaixou o corpo se aproximando da cabeça da amiga.
- Por favor, amiga não desiste. Eu estou aqui com você, eu te achei, eu não te deixei, ninguém te deixou, ele mentiu para você todo esse tempo. Por favor, reage, não desiste. Estou com você!
- Fica longe moça, precisamos de espaço para ajudá-la. O socorrista disse. – Ela não está reagindo. Se afasta, e deu o sexto choque. Qual o nome dela?
- O nome dela é Christina. Daniele respondeu.
Campos do Sul, 1999.
- Droga, atrasada de novo e na aula da Leni! Tomara que ela não me note, já é a terceira vez essa semana. Pensava ela, enquanto corria em seus saltos em direção à sala de aula.
Christina tinha uma dificuldade enorme em chegar na hora no colégio. Estava no último ano do Ensino Médio, no Colégio Cristo Rei, uma das escolas mais tradicionais de Campos do Sul. Estudava lá desde pequena e agora no final, queria fechar com chave de ouro. Precisava da indicação da professora de Português, Leni, para um estágio no jornal Campos Diário. Um dos seus sonhos era trabalhar na Redação do jornal, e no estágio seria assistente pessoal do Editor.
Ela amava escrever, ler, tudo relacionado ao universo das letras e queria seguir carreira nisso. Precisava conseguir o estágio de qualquer jeito, poderia ser efetivada no final e iria até o fim por ele!
Bateu de leve duas vezes na porta e abriu com a cabeça baixa. Foi rápido para a carteira, sentou-se na frente, ficou olhando para o caderno com o lápis na mão, sentiu o olhar da professora enquanto ela continuava a aula.
Christina era uma aluna na média. Estudava com paixão as matérias que gostava, se dedicava também às outras, mas nunca foi uma das melhores da turma e estava bem com isso. Tinha uma facilidade absurda em se comunicar, nunca "fechava a matraca". Virou para o lado para falar com Ronald, que jogou uma bola de papel em sua mesa.
- Sério mesmo, Chris? De novo atrasada? Isso que mandei mensagem cedo avisando que a primeira aula seria com ela, pare de vacilar se quiser aquele estágio! Se liga!
- Amigo, não me abandona, por favor? Hoje foi o trânsito mesmo!
Ronald, suspirou e olhou para frente. Os dois eram amigos desde o pré-escolar. Alto para seus 18 anos, era magro, tinha os cabelos encaracolados, adorava música clássica e cinema antigo. Ele conhecia o Editor do jornal, era amigo de seu filho. Chegou apresentar Chris para o editor em um churrasco e conversaram do interesse dela em estagiar. Ele torcia por ela.
No fundo da sala outros dois alunos, Antony e Leonardo, olhavam a moça sem desviar. No final da aula, Antony se adiantou para falar com Christina que saía logo para o corredor atrás de Ronald. Ele a segurou pelo ombro e deu um lindo sorriso.
- Sempre correndo não é, linda? Vamos tomar um sorvete no final da aula?
- Te disse que você é um querido hoje? Preciso alcançar o Ronald, a comissão de formatura vai se reunir para finalizar umas coisas e depois vou com você.
Saiu correndo, depois de dar um selinho na boca do rapaz. Antony era um dos melhores alunos, com profundos olhos azuis e cabelos loiros curtos, um pedaço de mal caminho, as alunas costumavam dizer. Ficou olhando com cara de bobo para a moça que saiu correndo.
- Tá com cara de idiota de novo, Tony. Leonardo chegava devagar atrás do amigo caçoando.
- Não enche, Leo. Vamos comer alguma coisa, estou com fome. Preciso passar na biblioteca pegar um livro e depois esperar a Chris para irmos.
Quando chegou na sala de reuniões, Christina encontrou Ronald, Daniele, Samira, Rodrigo e a coordenadora Marian. Estavam lendo o contrato da empresa de formatura.
- Certo, o que acharam? Pelo que Ronald leu está tudo no contrato. Jantar, baile e fotos da colação e do baile, o valor ficou dentro do orçamento e é isso. Christina, onde estava? Vem, vamos assinar o contrato logo, falou Marian.
- Confirmando, os mestres homenageados serão: Leni de Português, Max de Física e o treinador Filipe, paraninfa serei eu, ela deu pulinhos feliz, e Ronald o orador da turma.
- Fechamos! Quem não concorda fale agora ou cale-se até o baile! Venham, assinem aqui embaixo. Agora sobre as fotos da festa na Associação, Daniele assume como fotógrafa oficial mesmo? Perguntou Marian.
- Estou super preparada!! Minha primeira festa como fotógrafa!! Que glória, já vai entrar para o meu portfólio! Vai ser incrível! Daniele falava empolgadíssima.
- Gente, quanto trabalho teremos ainda até lá, quase me arrependo de entrar na comissão, espero que valha a pena! disse Samira já sofrendo.
A turma do último ano do Ensino Médio do Colégio Cristo Rei era especial, muito empenhados e unidos, mesmo com as diferenças, no final sempre entravam em acordo, foram inúmeras reuniões com todos os alunos e pais até entrarem em consenso sobre as festas e os valores. Para os que não puderam arcar com os custos, alguns pais se juntaram para colaborar, ninguém ficou de fora. Rodrigo era um desses alunos, não gostava de se sentir diminuído por não ser de família abastada como a maioria dos amigos, mas teve que aceitar. De alguma forma sempre acabava sentindo uma ponta de inveja. Com Samira ele se sentia bem, ela sempre o incentivava nos planos profissionais, principalmente quando ele disse que poderia trabalhar com o pai dela depois de formado. Samira ficou encantada com a ideia, isso mostrava que ele desejava um futuro com ela. Rodrigo a amava, mas também era um rapaz esperto e ambicioso.
- Samira! Não começa, vai dar certo amiga. Vamos dar conta de organizar tudinho! Daniele disse animada pegando nas mãos da amiga.
- Gente, estamos acabando o mês de abril, vocês têm noção de que faltam 8 meses para terminarmos a escola? Que demais! disse Christina balançando as mãos no alto.
Estavam todos eufóricos, menos Rodrigo. Estava preocupado com Samira. Conseguiram passar na mesma universidade para não se distanciarem, mas sentia que ela escondia algo.
- Porque está com essa cara, Habib? Samira o chamou pelo apelido quando estavam do lado de fora da escola.
- Seus pais falaram algo mais sobre nós dois Samira? Você sabe que aquela última conversa que tiveram com você me deixou preocupado. Rodrigo estava tenso.
- Não se preocupe, meus pais falaram aquilo, mas nunca me proibiriam de estudar. Vai dar tudo certo! Samira tentava tranquilizá-lo, mas ela mesma já estava agoniada com as conversas de seu pai. Ele pressionava Samira sobre o namoro, ela estava com medo e não poderia contar isso para Rodrigo. O que faria?
Christina
Daniele
Antony
Leonardo
-Quero duas bolas de pistache, por favor. Pediu Christina na sorveteria. - Amo sorvete de pistache!
-Sorvetinho sem graça esse seu viu! Leonardo revirou os olhos.
-Ainda bem que sou eu quem gosta e come né, querido! Ela devolveu e encostou sua cabeça no ombro de Antony que olhava para os dois enquanto tomava seu sorvete.
Estavam os três na sorveteria. Leonardo estava de carona com Antony. Christina não ficava nada confortável nesses momentos.
Leonardo teve uma queda por ela há alguns anos, quando estavam no 1° ano do EM. Eram muito amigos e um belo dia ele trouxe flores e se declarou deixando Christina chocada. Ela não imaginava que ele nutria algo a mais além de amizade. Talvez tenha sido muito ingênua no final das contas.
Naquela época estavam sempre juntos, Leonardo era muito protetor. Ele tinha uma irmã falecida, também chamada Christina, e ele "transferiu" a proteção, como ele mesmo dizia na época.
Estudavam juntos, ele gravava clipes das bandas que ela gostava que passavam no Canal de Música da TV à cabo para que ela visse depois. Ele sempre a acompanhava até em casa depois da aula. Ajudava nos trabalhos e sempre estava por perto quando algum carinha tentava algo com ela. Normalmente eles não conseguiam nada, porque Chris não era de dar bola para qualquer um, mas, muitas vezes, ela foi influenciada pelo seu “irmão” mais velho.
É, realmente ela foi ingênua demais.
Depois da declaração dele, ela se afastou completamente, um corte certeiro. Não queria que ele nutrisse esperança, era um amigo muito querido e seria só isso. Leonardo a procurou inúmeras vezes pedindo desculpas, dizendo que tinha confundido as coisas e que a amava somente como amiga, mas Christina conseguiu ver claramente. Não podia continuar com aquilo.
Ela estava com Antony há alguns meses, ele era lindo e muito inteligente. Isso a conquistou. Podia dizer que ele era seu primeiro amor, era um cavalheiro e romântico, estavam sempre juntos. Gostava de ouvir ele falando sobre a carreira que queria construir como médico, ambos tinham muitos planos e adoravam conversar sobre isso. Ela queria trabalhar em um jornal, ser uma editora de sucesso e ele queria ser um grande neurocirurgião. Inevitavelmente se separariam quando fossem para a faculdade, mas estavam dispostos a enfrentar a distância, pelo menos era o que Christina achava.
- Vamos? Preciso trocar de roupa antes de ir treinar, Antony. Cobrou Leonardo.
- Cara, não amole, estamos tranquilos aqui tomando o sorvete, foi você que dispensou a carona do Rodrigo, não apresse a gente, ok?
Christina teve um baque quando ouviu o que Antony disse. Foi Leonardo que decidiu ficar ali com ela e Antony? Como assim? Não acredito que ele tá aqui me vigiando? Ela pensava sem parar.
- Vamos para casa, Antony. Lembrei que preciso fazer uma coisa e você tem que levar o Leonardo. Ah, e por favor, não prometa dar caronas quando marca algo comigo, somos namorados e quero ficar com você. Disse ela olhando para Antony. Ela sentiu o olhar de Leonardo sobre ela.
Quando chegou em casa, as luzes estavam apagadas e um silêncio, Christina estava sozinha. Tomaria um banho e esperaria sua mãe e irmão para jantarem.
Sua cabeça estava a mil, Leonardo não tinha desistido. Droga! Foi clara quando disse que eram só amigos. Achou que todo o distanciamento seria o suficiente, mas pelo jeito não foi. Depois do corte dela, nada foi como antes. Leonardo mudou muito seu comportamento. Na verdade, soube por Daniele que ele não era tudo aquilo que demonstrava. Ele já tinha tido problemas com álcool e brigas quando andava com amigos de fora do colégio. Ela não o conhecia de verdade.
Depois do corte, a mãe de Leonardo ligou para Chris para saber o que tinha acontecido entre os dois já que ela achava que estavam namorando. Essa foi a gota d’água para ela se afastar de vez.
Leonardo tinha 19 anos, era mais velho porque perdeu um ano devido ao falecimento da irmã, a família ficou muito abalada. Tinha cabelos castanhos bem curtos, olhos escuros, era magro para os seus 1,85 de altura. Tinha um ar impassível o tempo todo. Não estava preocupado com a faculdade, como todos, era indiferente a esse caos. Sua família era rica, muito presente na alta sociedade de Campos do Sul, mas ele não ligava, fugia disso.
De repente o telefone de Chris toca e ela não podia acreditar. O nome de Leonardo estava na tela.
- Não acredito! O que esse cara quer comigo? Atendeu logo. – Oi, o que quer? Disse de supetão.
- Oi, tá ocupada? Parece que estou atrapalhando.
- Estou bem ocupada mesmo, estou arrumando umas coisas, o que você precisa? Soou até um pouco mal-educada.
- Certo, é jogo rápido. Quero me desculpar pela sorveteria, eu vi que você ficou chateada por eu estar lá. Eu precisava conversar com o Antony por isso pedi a carona.
- Olha, Leonardo, eu não me importo que meu namorado dê caronas, vocês são amigos, se entendam. Só tem algo que está tirando a minha paz, vamos aproveitar essa conversa e colocar em pratos limpos. Você está de alguma forma me vigiando? Já conversamos sobre isso, eu disse que você não é meu irmão, guarde seu instinto protetor para a Sofia que é sua irmã de verdade. Ela falava rápido, visivelmente irritada.
- Você está enganada, é como eu disse, eu precisava falar com ele. Se quer saber é sobre garotas, satisfeita? Nem tudo gira ao seu redor Christina. Bom, era isso que eu precisava falar. Já pedi desculpas, espero que esteja tudo certo porque da minha parte está. Tchau. E desligou, sem esperar que Christina respondesse.
Ela ficou olhando para o telefone em suas mãos um longo tempo, e pensou que foi injusta e talvez tenha imaginado coisas. Ficou feliz que ele estivesse com alguém. Resolveu esquecer Leonardo e foi tomar banho, precisava começar a sondar sua mãe. Tinha algo para contar e não tinha ideia de como ela reagiria, esperava o pior. Com certeza, estava prestes a comprar uma briga enorme, talvez a maior de sua vida. Mas para alcançar seus sonhos e objetivos faria de tudo. Ela encarou o espelho e respirou fundo. Ligou o rádio que ficava no seu banheiro e se deixou levar pela voz de Bon Jovi cantando It's my life. Para relaxar, nada melhor que isso.
Christina
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