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A Bailarina Da Perna De Pau

Prólogo

Quando as luzes da arena se apagaram pela segunda vez, Letícia sentiu seu coração vibrar de emoção e expectativa, segurando inconscientemente a mão de Julho Cezar, que retribuiu o gesto em uma forma de conforto. Embora ela não tenha tido a chance de conhecer a moça que dançava no centro daquela arena, estava feliz em vê-la. Maria Teresa era linda e graciosa, ela dançava melhor do que qualquer outra bailarina, deslizando através do palco com tanto poder e naturalidade que até parecia fazer parte dele, e o mais incrível de tudo era que ela também usava uma prótese de perna, elas eram iguais, mas quando encerrou-se um ato, e os refletores foram delegados, Letícia se viu perdida. A escuridão que cobria todo o local, junto aos murmúrios que viam da multidão, despertavam todos os tipos de lembranças embaraçosas em sua mente; ela detestava o escuro mais do que qualquer coisa, porque o escuro a fazia se lembrar do quartinho do respeito, local onde ela era trancada de tempos em tempos. Se a senhora Fernanda não existisse, se ela não trabalhasse em um orfanato, haveriam muitas crianças órfãs que não teriam traumas com o escuro, talvez sua infância tivesse sido um pouco mais fácil. Fernanda não era o tipo de pessoa que aceitava ser provocada por uma criança, mesmo quando ela coava o café em um coador sujo, quando roubava a comida das crianças, ou quando batia em seus braços e pernas com o cabo da vassoura. Sempre que uma criança erguia a voz, sempre que uma criança fazia sujeira, sempre que uma criança era malcriada, ela iniciava o seu macabro processo de “correção"; Fernada a agarrava pelo braço, com aquela mão cheia de calos, enquanto suas unhas grandes e quadradas, como pequenos cutelos, pareciam querer cortar a carne de Letícia. Ela a arrastava por todo o saguão (às vezes, aos berros), levando-a até o corredor e jogando-a, sozinha, no quarto onde ficavam as tralhas e ferramentas do orfanato, todas jogadas pelo chão, formando uma pequena montanha de bagunça; a poeira fazia com que seus pulmões ardessem, e sua garganta coçava de dentro para fora. Naquela época, aos dez anos, Letícia ainda tinha as duas pernas, ela escalava o monte de bagunça e conseguia espremer o seu rosto pela fresta do telhado, onde podia ver um pouco da luz alaranjada do pátio, e ouvir o burburinho distante das outras crianças; mas havia uma sensação sufocante que ficava para trás, uma sensação que trazia um arrepio à sua nuca, como se alguma coisa espiasse das trevas, esperando o momento certo de dar-lhe o bote. Essa sensação foi se tornando mais pertinente no decorrer dos anos, de modo que, em qualquer lugar escuro que ela estivesse, ali estava o par de olhos, espiando-a dos cantos da sala, esperando o momento certo de lhe abocanhar.

Foi em uma manhã nublada de 1992, que Letícia decidiu que era hora de fugir do orfanato de Santa Luzia, que ficava localizado na Praça Seca, em Florianópolis. Ela fugia de Fernanda, depois de passar correndo com os pés sujos pelo refeitório. Como Fernanda era responsável pela limpeza do orfanato, nada a irritava mais do que sujeira e bagunça.

— Letícia, sua vagabunda, quando eu pegar você, eu vou fazer você limpar esse chão com a língua, cê tá ouvindo?! — ela dizia, conforme se aproximava com o seu corpo largo e corcunda, deformado pelas decepções da vida.

— Não, foi sem querer, foi sem querer — ela berrava, conforme corria para longe, deixando suas pegadas de lama pelo piso molhado. Seu desespero vinha, principalmente, da ideia de ter que enfrentar, mais uma vez, o quartinho do respeito, ela não se importava em receber mais algumas pancadas com o cabo da vassoura, nem de ter a sua orelha puxada até que ficasse inchada e vermelha, seu medo real era daquele quarto.

— Sem querer? Você sabe muito bem, não venha com essa, não — Fernanda disse, enquanto elas passavam pela cozinha.

— É sério, eu não vi que tava molhado — ela gritou com a voz chorosa, correndo para a saia Fátima, a senhora que cozinhava para as crianças do orfanato, que, ao contrário de Fernanda, sabia ser amável às vezes.

— Fernanda, deixa a menina, por favor, ela já disse que foi sem querer — Fátima disse, não como quem estava disposta a enfrenta-la, mas com um tom de súplica. Ninguém ousava enfrentar Fernanda, porque ela era louca, havia um brilho doentio em seus olhos verdes, um brilho que se manifestava todas as vezes que alguém a tirava do sério.

— Nem vem, Fátima, não defende essa moleca, não, por favor — Fernanda disse, agarrando no braço de Letícia e arrancando-a de Fátima. Letícia gritou e lutou contra o puxão, mas seu esforço foi inútil, e enquanto era arrastada, tudo que ela podia fazer era gritar pela intervenção de Fátima; mas ela não o fez, apenas ficou lá, olhando-a com uma expressão penosa e resignada no rosto.

— Fernanda, por favor, eu prometo que nunca mais faço isso — ela implorava, chorando e se esperneando, enquanto Fernanda a arrastava para dentro do quarto.

— Não, não, você sempre promete e sempre faz de novo — Fernanda disse, apática, empurrando ela para o meio das ferramentas e se movendo com agilidade para fora do quarto. Letícia correu para tentar alcançar a saída, correu para a fresta de luz que lhe restava, mas a porta foi rapidamente fechada, e seu estrondo seco ecoou pelas paredes do quarto.

— Não! — Letícia gritou, batendo na porta repetidas vezes, os passos de Fernanda foram se afastando, pesados, furiosos, e ela estava novamente sozinha naquela escuridão congelante, sem nada, sem ninguém. O cheiro de graxa logo alcançou as suas narinas, e a fez querer vomitar; não havia saída dali, não havia trégua. Quando sua visão se acostumava com o escuro do depósito, as coisas ficavam ainda mais aterrorizantes, uma vez que as ferramentas e móveis que foram esquecidos por Deus ali, ganhavam formas fantasmagóricas em meio às trevas, visíveis, mas indescritíveis. Letícia chorou, batendo na porta, com medo de olhar sobre o ombro e dar de cara com o que quer que estivesse espiando-a dos cantos inexplorados das trevas. Em todo o seu medo, naquele abandono, ela amaldiçoou, pela  milésima vez, a sua mãe e o seu pai, ou quem quer que a tenha deixado naquele orfanato quando ela ainda era um bebê. Todas as outras crianças que cresceram com ela foram adotadas, Paula, sua melhor amiga, que brincava de boneca com ela quando elas ainda eram crianças, foi levada por uma família que morava em Barra da Tijuca; Joãozinho, que sempre roubava flores do Jardim para presenteá-la em seus aniversários, foi adotado duas semanas antes, e até o cachorro do orfanato, Guga, um vira lata que sempre passava por lá para comer os restos de seu almoço, aparecera morto recentemente, na calçada. Ninguém sabia o motivo, mas o coração de Letícia lhe dizia que aquilo era obra de Fernanda, isso e o fato de ela o ter jurado de morte umas trintas vezes no decorrer do ano.

Cerca de meia hora depois de ela ter sido trancada no depósito, Letícia ouviu o som da porta sendo destrancada. Ela enxugou as lágrimas (que estiveram escorrendo esse tempo todo) e se levantou, sabendo que não era Fernanda do outro lado, ela sempre a deixava ali por umas três ou quatro horas, quando voltava, Fernanda simplesmente a olhava, como se soubesse que fez algo que não devia, e dizia, com uma voz quase branda: Eu espero que isso não se repita, ouviu? Mas "isso" sempre se repetia. Quem estava do outro lado era a senhora Fátima, com a saia toda molhada pela louça que lavou, e os olhos baixos e penosos.

— Silêncio — Fátima sussurrou, pondo um indicador à frente dos lábios; Letícia apenas assentiu em resposta.

O expediente de Fernanda acabava às seis da noite, mas os dormitórios eram limpos pela manhã, por tanto, eram um local seguro depois do meio dia, quando ela estaria limpando os pátios e refeitórios. Assim que Fátima a libertou de sua prisão, Letícia correu para o quarto de número quatro, que ela dividia com mais três garotas, Maria, Socorro e Lídia (seus nomes estavam gravados na porta). Letícia abriu a porta rapidamente e se jogou em sua cama, ficando ali, coberta, enquanto esperava pacientemente que o dia acabasse para ela poder circular normalmente sem ter que se preocupar com aquela bruxa; mas enquanto ficava ali, ponderando sobre a sua vida, ela se lembrou de sua infância, de como nunca fora adotada pelas famílias que passavam por ali, muitas, muitas famílias; alguns até chegavam a conversar com ela, fazendo perguntas sobre sua vida cotidiana, e ela se esforçava para parecer apresentável, mas no fim das contas, acabavam escolhendo outra garota. Letícia sempre achou que havia algo de errado nela, que aquele ali não era o seu lugar, e, em devaneios, ela chegou à pior decisão de todas, Letícia decidiu que fugiria do orfanato.

Assim que chegou a noite, e Fernanda foi embora dali, ela pôs o seu plano em ação, furtando dois pães franceses, um bolinho de cenoura, um quebra cabeças manchado e uma revista de verão, e colocando tudo junto em uma sacola. Ela atravessou o pátio, deixando o burburinho das outras crianças para trás, e atravessando os portões no momento em que o porteiro Jurandir saiu para o banheiro (ele saía a cada uma hora, e ficava uns dez minutos fora, o resto do tempo, ele passava cochilando). Quando saiu daquelas grades negras, respirando o ar da liberdade, Letícia não tinha ideia de qual seria o seu destino, ou se ela ainda voltaria para aquele orfanato algum dia, ela estava com a cabeça cheia de planos, e o coração cheio de ressentimento; mas a sua fuga teve pernas curtas, porque, no momento em que atravessava a praça da seca, beirando o asfalto, em frente da padaria São Tiago (local de onde vieram os pães e o bolo que ela pegou), um Volkswagen Gol vermelho surgiu em seu campo de visão, desgovernado, e subiu encima da praça. Letícia viu o olhar desesperado no rosto do motorista, viu as pessoas correndo para todos os lados, e viu quando o carro passou ao lado de uma das árvores, perdendo o espelho retrovisor esquerdo. Dias mais tarde, ela pensou que se ele estivesse uns trinta centímetros mais para esquerda, teria ficado no caule na árvore, e uma tragédia não teria acontecido, mas ele passou direto por ela, atingindo Letícia. Uma explosão de dor atravessou a sua perna no momento em que o impacto aconteceu, sua mente ficou nublada, como se alguém tivesse apagado o interruptor de seu cérebro, e ela bolou por cima do capô, caindo ao outro lado e vendo as pessoas correrem para todas as direções, ela ouviu os estrondos deixados pelos outros impactos que o gol encontrou em seu caminho. Letícia se arrastou pelo chão, tentando se levantar, mas quando olhou para a sua perna direita, viu que a única coisa que prendia a canela ao que restou do joelho, era um nervo esbranquiçado, os músculos de sua panturrilha haviam sido esmagados, e se assemelhavam a carne moída, seu sangue escorria caudalosamente, formando uma poça enegrecida sob seu corpo. Letícia sentiu sede, tontura e enjoo, mas não sentiu dor. As pessoas se juntaram ao seu redor, com olhares e vozes preocupadas. Apesar da agonia que era grande o bastante para fazê-la desejar a morte, Letícia sentiu que aquela foi a primeira vez que haviam pessoas preocupadas com ela, e aquilo a deixou um pouco feliz. Depois disso, tudo se apagou.

A sensação de morte era uma coisa curiosa, como um abraço gélido, um mergulho para as profundezas do oceano, muito além de onde a luz do sol era capaz de alcançar. Quando abriu os seus olhos, Letícia estava em um quarto de hospital, com paredes brancas e maquinas cinzentas, as coisas ainda estavam um pouco borradas em sua mente, seus pensamentos estavam desfocados, ela apagou novamente em questão de segundos. Quando acordou pela segunda vez, ela não sabia por quanto tempo esteve no vazio, mas havia se lembrado, em sonhos, da figura de sua perna, toda estraçalhada naquela praça, das pessoas a cercando com olhares preocupados. Ela ainda estava sozinha no quarto, mas podia ouvir um burburinho vindo dos corredores, havia uma agulha na articulação de seu cotovelo, ligada, por um pequeno tubo, à uma bolsa de sangue, preso em um cabide, haviam várias letrinhas miúdas na bolsa, mas ela só conseguiu ver a maior, em destaque: "B+". Letícia olhou para os lençóis que cobriam o seu corpo, sentindo uma pontada de ansiedade e desespero latente que a fizeram sentir vontade de urinar, e ela quase não segurou, no momento em que, em uma lufada de coragem, puxou-os para o lado. Sua perna direita já não existia, de alguma forma, fora ceifada de seu corpo, e o seu grito de desespero ecoou pelas paredes do quarto e corredor, atraindo os enfermeiros, que vieram como um enxame de abelhas para perto dela.

— Minha perna, m-minha perna!! — ela gritava.

Letícia recebeu uma prótese da Brasilegs, uma empresa especializada em próteses de pernas, e foi aí que ela conheceu o doutor Julho Cezar. Sua estadia no hospital de Florianópolis durou pouco mais de um mês, ela passou por duas cirurgias nesse período, uma para remover os fragmentos de ossos dos músculos de sua coxa, e a outra para corrigir o formato de seu coto, que se via completamente deformado. Quando voltou ao orfanato, uma semana antes de receber a prótese, Letícia usava duas muletas para caminhar, e toda a sua alegria, toda a sua vontade de viver, pareceram se esvair dela. Aos finais das tardes, Letícia se sentava na calçada do pátio, deixando suas muletas de lado, e ficava observando as outras crianças brincando, desejando nunca ter tido a ideia de fugir. Ela olhava para as crianças correndo e se machucando, e desejava estar com elas, mas não havia nada para ela ali, agora, ainda menos do que antes. Até mesmo Fernanda deixou de incomoda-la depois do acidente, no fundo, ela sabia que tinha culpa no cartório. Às vezes, ela apenas chegava onde Letícia estava sentada, balançando a vassoura e arrastando a poeira (fosse no pátio, nos dormitórios ou no refeitório).

— Eu vou varrer aí, dá licença — Fernanda disse, sem muita suavidade, mas também não havia a agressividade habitual em sua fala.

— Tá — Letícia dizia, pegando as muletas e se arrastando para fora do caminho.

— Tá doendo alguma coisa? — Fernanda perguntava secamente, tentando demonstrar preocupação.

— Não — Letícia respondia, indo para o mais longe possível dela.

Aquele foi o último diálogo que elas tiveram, cerca de uma semana depois, Letícia foi até o consultório do doutor Julho Cezar, acompanhada por Diane Souza, a diretora do orfanato, uma mulher que só dava as caras por ali uma vez por mês, ou em ocasiões especiais. Ela sempre usava vestidos formais, e seus cabelos já estavam ficando grisalhos. O orfanato havia conseguido uma doação e encomendado uma prótese por meio de uma corporação privada, o que a impedia de esperar por meses pelo atendimento público. O Doutor Julho Cezar era um homem alto, calvo, com olhos castanhos e a barba bem aparada. Quando ela entrou no consultório, junto de Diane Souza, ele sorriu gentilmente e indicou os pufes que haviam em frente ao seu gabinete. Letícia se sentou desconsertadamente no pufe vermelho, recolhendo suas muletas e as deixando de lado, e Diane se sentou no branco.

— Bom dia, Letícia, tudo bem? — Julho Cezar a cumprimentou com um sorriso bobo no rosto, como se falasse com uma criança.

— Tudo — ela respondeu, um pouco resignada.

— Olha, eu sei que isso é difícil no começo, você se sente um pouco perdida, parece que as coisas não vão mais voltar a ser como eram, mas você vai treinar com a prótese, vai ter o acompanhamento de uma fisioterapeuta, e você vai voltar a andar normalmente, tá bom? — ele disse, e ela viu algo além de sinceridade e gentileza nos olhos dele, algo que ela jamais tinha visto nos olhos de um adulto. Nos olhos dele, haviam uma estranha e (ao menos para ela) desconhecida disposição. Letícia assentiu com um ar sonhador.

— Certo — ela disse.

— Certo, então... — ele fez uma pausa, inclinando o corpo abaixo do balcão, ficando ali por alguns segundos, procurando alguma coisa, e, por fim, ele se ergueu, segurando um embrulho de plástico bolha com o formato de uma perna. Letícia conseguia ver a cor rosa que formava a coxa, e uma haste metálica representando uma canela. Não era tão parecida com uma perna humana, mas parecia ser relativamente funcional.

— Ela vai poder caminhar normalmente com isso? — Diane perguntou de forma apática, e ao desviar os olhos de Julho Cezar para ela, Letícia sentiu o contraste dos tipos de adultos completamente diferentes que eles eram.

— A prótese transfemural tem algumas limitações, porque o joelho dela é feito de fibra metálica, e não tem o movimento perfeito de um joelho, mas olha, tem muita gente que consegue levar uma vida normal com isso — ele disse, ganhando um brilho no olhar, enquanto sua mente provavelmente se enchia de exemplos. Julho Cezar levou um tempo até escolher o seu modelo, e quando falou, Letícia não pôde acreditar — Tem uma menina, Maria Teresa, que usa uma prótese igual a essa, e ela dança ballet. Ela vai se apresentar esse fim de semana, lá na Arena Carioca, conhece?

— Não conheço, não — Diane disse, sem muito interesse.

— Que dia vai ser? — Letícia perguntou, se inclinando em direção a Julho Cezar, que sorriu para ela, entregando a prótese nas mãos de Diane.

— Vai ser no sábado, dia dez — Julho Cezar disse — Você quer assistir? Eu posso te levar — ele emendou, pondo as mãos sobre o gabinete e se inclinando de forma sonhadora em sua direção. Havia uma questão muito forte em jogo naquele momento, porque uma bailarina que usava uma prótese de perna, sem dúvidas, era algo surreal em sua mente, mas ao mesmo tempo, a ideia de que alguém assim poderia existir, por si só, gerava uma espécie de atração em seu coração, como se vê-la dançar, vê-la rodopiar e pular em um palco, fosse tudo que Letícia precisava para se sentir inteira novamente, para se sentir capaz.

— O nome dela é Maria Teresa, né? — ela perguntou, e ele assentiu. Maria Teresa, uma bailarina de prótese, que tipo de pessoa ela deveria ser?

Onde os gatos miam

Gustavo estacionou o seu Mitsubishi eclipse em frente à sua casa, na avenida Princesa Isabel, depois de dirigir por pouco mais de um quilômetro. Ele desceu do carro, deu a volta pela frente e abriu a porta para ela. Ao sair do carro, se equilibrando nos saltos altos, ela ajustou o vestido e a jaqueta, e o acompanhou para dentro de casa, não deixando de reparar em como a avenida estava calma naquela noite, os únicos sons que reverberavam, além de o distante rugir dos motores dos carros, eram as lamúrias dos gatos nos telhados.

— Só pra lembrar, ela não é muito simpática, não, tá? Seja boazinha — Gustavo disse em um tom autoritário que ela desconhecia.

— É, e nem eu, é melhor ela ser boazinha — Teresa respondeu com um ar impassível.

— Comparada com minha vó, você é um anjo — ele disse, e ela estranhou o uso da palavra anjo para se referir a alguém simpática. Saber que a avó dele era toda essa simpatia em pessoa, só fazia com que Teresa desejasse ainda menos estar ali.

— Já to até vendo, Gustavo, eu vou logo avisando que não vou ficar aguentando mau humor dos outros, não, se ela me tratar mal, eu vou corresponder — Teresa disse, resoluta.

— Fica tranquila...

Quando eles entraram, e Teresa olhou nos olhos finos e julgadores de Luíza, ela teve certeza que elas não se dariam bem, a mulher tinha uma aura de mau humor que irradiava de sua pele, como uma usina nuclear em atividade, derretendo e destruindo qualquer partícula de bom humor que pudesse existir nos arredores. Teresa assentiu para ela, sorrindo, tentando soar natural, apenas para que não tivesse que aguentar a cara de tatu que Gustavo faria mais tarde, acusando-a novamente de não ter se esforçado para simpatizar com a sua família. Luíza respondeu ao seu gesto com um simples mover de olhos, como se estivesse estudando-a e decidindo se ela era boa o bastante para o seu netinho. Os Fonsecas tinham um lema bizarro e assustador, se você se casa com alguém, se casa com a família dele também; Teresa discordava completamente disso (e pensava seriamente se esse relacionamento com Gustavo tinha mesmo futuro), porque ela realmente não queria ter uma mulher como aquela fitando-a com aqueles olhos maldosos em todos os dias de sua vida, olhos cheios de má vontade e antipatia, não queria ter esse compromisso, não, muito obrigada. Quando foram se sentar à mesa, o jantar ainda não estava servido, Lúcia trabalhava em tempo integral em casa, para cuidar dos pequenos detalhes do lar, e da bebezinha chorona que eles tinham. O pai de Gustavo era advogado, e trabalhava fora o dia inteiro. Nos poucos momentos que ele via Teresa, apenas assentia, dizendo algum monossílabo como oi, ou opa, e saindo o mais rápido possível do ambiente. Uns quatro anos atrás, sua mãe tinha lhe dito que homens velhos ficam desconfortáveis perto de mulheres jovens, e se não ficam, é bom ter cuidado com eles. Quando veio a entender o que ela queria dizer, Teresa passou a ter a ligeira impressão que ele (o pai do seu namorado) sentia algum tipo de atração por ela, e esse era o motivo de ele evita-la, homens velhos se sentem desconfortáveis perto de meninas jovens, mas o pensamento era tão esquisito, tão repugnante, que ela, para evitar pesadelos, simplesmente o afastava de sua mente.

— Ah, aqui, amor, a cadeira da borda é da vó — Gustavo disse, no momento em que Teresa foi se sentar à mesa, puxando uma cadeira na lateral para ela.

— Isso não é tão importante assim, não — Luíza disse, mas não recusou a cadeira da borda, puxando-a por conta própria e se sentando com destreza e facilidade. Ela tinha razão, aquilo não era tão importante, mas foi irritante ver como Gustavo fazia tanta questão de agradá-la.

Quando ele disse que sua avó tinha sessenta e cinco anos, Teresa imaginou que veria uma senhora mais debilitada, que o mal humor ao qual ele se referiu, era fruto da rabugem que vem com a idade, mas não era o caso de Luíza, ela estava em ótima forma física, quem a olhava sem saber de sua idade, lhe daria uns cinquenta anos, talvez menos (se você não fosse do tipo que repara nas linhas de expressão abaixo dos olhos, elas eram um fator determinante); Luíza ainda tinha o corpo e a mente de uma bailarina, mas os seus olhos eram os de um lobo, o seu mal humor não era rabugem de gente velha, era um mal puro e genuíno.

— Pois é — Gustavo murmurou, tentando quebrar o silêncio — Maria Teresa, essa é Luíza Fonseca, Luíza Fonseca, essa é Maria Teresa.

— Oi — Luíza disse secamente.

— Oi — ela respondeu.

— Então... Vó, a Teresa dançava ballet também.

— Ah, era dessa menina que você tava falando? — Luíza disse, arqueando as sobrancelhas por um instante e lhe oferecendo o que devia ser a sua versão de um sorriso de deboche — Eu achei que era a mesma namorada do ano passado, você já terminou outro namoro?

— Vó... — ele sussurrou, um pouco sem graça, enquanto olhava diretamente para Teresa, como se quisesse ver se ela já estava se enchendo daquilo, e ela correspondeu com um olhar que dizia que sim, ela estava se enchendo.

— Você vai passar pela vida trocando de parceiro a cada ano? — Luíza prosseguiu, sem a menor consideração — Eu espero que dessa vez seja de verdade, pelo amor de Deus.

Teresa não pôde evitar de revirar os olhos, era quase uma reação natural. Pessoas velhas sempre tinham o dogma doentio e obsessivo daquilo que chamavam de relacionamento sólido, mas ela sabia, melhor do que eles, que suas terríveis relações só duravam uma vida inteira porque eles tinham um medo congelante de ficarem sozinhos, o que os limitava a infelicidade eterna da junção de duas personalidades repulsivas, ao menos, foi isso que sua mãe lhe disse quando deixou o seu pai.

— Tá bom, vó — Gustavo disse, rindo da situação, em uma tentativa de amenizar as coisas.

— E você, dançava ballet, né? — Luíza perguntou, lhe apontando o indicador em forma de cobrança.

— Sim — Teresa disse.

— E por que não dança mais? — Luíza perguntou.

— Eu ... Não sei, eu abusei — ela respondeu de forma impassível, sem fazer muita questão de parecer interessada no assunto, ou de se aprofundar em seus motivos (ela tinha motivos, mas eles não eram da conta de ninguém). Luíza riu de leve, não por achar aquilo engraçado, mas como uma espécie de afronta, seu riso era grave e baixo, como um motor entalado.

— Esse é o problema dessa geração de vocês, vocês não tem consistência em nada que fazem, nadinha — ela disse ao fim do riso.

— Pronto, saiu o rango — Lúcia veio da cozinha, salvando-os daquela situação constrangedora, com dois panos de prato fazendo o trabalho de luvas de cozinheiro, e uma panela grande entre ambos — Desculpa a demora, gente, a Mariana tava chorando de novo, eu nem sei mais o que eu faço com essa menina.

— E por que você não me avisou? Eu ficava com ela — Luíza disse em tom absurdo.

— Você não ouviu ela chorando? A menina parece um apito gaiato! Meus Deus — indagou Lúcia, pondo a panela sobre a mesa e voltando para a cozinha para guardar os panos de prato, mas o choro pertinente de bebê voltou logo em seguida.

— Eu pensei que fosse a tevê, ou a filha do vizinho — Luíza respondeu, se levantando e indo atrás do bebê. Ficando apenas os dois na mesa, Teresa instintivamente desviou o olhar para Gustavo, erguendo as sobrancelhas através da franja fina, apenas para vê-lo retesar a feição e balançar a cabeça negativamente; ela fez o mesmo. Teresa sabia que ele odiava esse joguinho de linguagem corporal, e ele sabia que ela sabia, mas não importava, o motivo de Gustavo odiar esse jogo, sendo um jogo onde quem perdia era o primeiro a se afobar e começar a falar, é que ele sempre era o perdedor, sempre o primeiro a ficar de saco cheio e entregar os pontos. Parte disso, é porque Teresa sempre fazia o truque de erguer as sobrancelhas com um olhar de cobrança, sem que estivesse claro exatamente o que ela queria dele.

"O que foi?" Gustavo sussurrou, ou apenas moveu os lábios, o choro recém iniciado da bebê, acabou omitindo qualquer outro resquício de som; a mãe dela tinha toda razão, sua choradeira aguda e desafinada era quase como um apito gaiato.

"Queria ir pra casa" ela sussurrou de volta, vendo-o se retesar ainda mais, suspirar e balançar a cabeça negativamente pela segunda vez; ela fez o mesmo, de novo.

"Você acabou de chegar" ele sussurrou, mais alto dessa vez, de forma que foi audível apesar do apito gaiato que era a sua irmãzinha.

"Mas sua avó é um saco", ela respondeu, tão alto que quase excedeu o limite estabelecido para se caracterizar um som como sussurro.

"Não é, não, você é um saco", ele sussurrou de volta.

"Não tô brincando, ela é um saco", Teresa respondeu.

— Isso aí é sobre mim? — a voz de Luíza veio de trás de sua nuca, fazendo-a arrepiar por completo por um instante, e olhar de volta para o assento da borda, onde Luíza já havia retornado e se sentado, com a garotinha no colo, finalmente silenciando com o chororô. Mariana gemeu e murmurou alguma coisa no idioma abstruso dos bebês, antes de se aquietar de vez.

— Não — Teresa disse com falsa veemência.

— Eu tô brincando — Luíza disse, sorrindo pela primeira vez, tentando dissipar a tensão que ela mesma causou no ambiente. Lúcia se juntou a eles um segundo depois, trazendo uma pequena pilha de pratos de porcelana e talheres para a mesa, sentando-se ao lado de Gustavo.

— Podem se servir, o Pedro vai chegar tarde hoje — ela disse, o que era ótimo, porque Pedro ficava desconfortável em sua presença, o que fazia com que Teresa se sentisse desconfortável na presença dele. Lúcia pegou o prato de cima para si e abriu a panela. Uma esfera de vapor subiu dela e se dissipou nos ares, o cheiro de sua sopa de abóbora se espalhou pela sala de refeições. Gustavo foi o primeiro a ir em direção da panela para encher o prato, ele era sempre o mais afoito quando se tratava de comer e beber, era quase um mistério da ciência que ainda não tinha desenvolvido a barriguinha saliente de seu pai. Teresa o conheceu justamente por conta de um purê de abóbora, em uma noite de 1991; uma boa lembrança...

Reflexos do passado

Depois que finalmente se livrou da igreja católica, a qual sua mãe a forçou a frequentar durante toda a infância, Teresa saía com algumas amigas aos domingos. A rua Paula Freitas era agradável na maior parte do tempo, mas, às vezes, suas paredes altas a faziam se parecer com uma gaiola gigante. Natália era uma de suas melhores amigas, ela já tinha vinte anos, carteira de motorista e um Fiat uno, buscava Teresa em sua casa assim que a noite caía, depois elas passavam na casa de Darlene (que também era uma de suas melhores amigas), na rua Siqueira Campos, e as três desciam para a avenida Atlântica, ouvindo a rádio X e cantando juntas, a partir dali, a noite era toda delas. As boates estavam abertas todas noites, e em festas quentes de carnaval, você podia tomar um banho de espuma e se amontoar com um monte de desconhecidos naquela branquidão gelada.

Na noite em que conheceu Gustavo, era uma sexta feira, elas haviam descido para a rua Santa Clara, para o que seria a festa de aniversário de uma prima de terceiro grau de Natália, em um clube de festas.

— Ah, mas eu nem conheço essa menina, não vou, não — ela tinha dito para Natália mais cedo, enquanto elas faziam uma corrida matinal no calçadão de Copacabana.

— O nome dela é Bruna, agora você conhece — Natália insistiu — Ela disse pra eu levar as amigas, eu só tenho vocês de amigas, vai ter que servir.

— Ih, não faz drama, não, eu sei que você viajou pra Salvador não tem nem um mês — Teresa respondeu — Eu tive que ir pra danceteria de ônibus sem você aqui.

— Ué, sua mãe não tem dois carros?

— Tem, mas quem vai pra danceteria com a mãe? — Teresa perguntou, desviando de uma idosa no caminho.

— É, é doidice mesmo — Natália concordou, meneando a cabeça — Mas vocês vão comigo mesmo assim, não vai arrancar pedaço nenhum se você interagir com gente nova.

— Ih, olha lá, desde quando você toma decisões por mim? — ela questionou em um tom descontraído.

— A partir de agora? — Natália disse, jogando o corpo em sua direção e usando de seu tamanho avantajado para "subjuga-la". Natália era a mais alta de sua panelinha, quase tão alta quanto um homem, o que, somado com suas pernas grossas e braços definidos, faziam dela um mulherão, ninguém chamava tanta atenção no carnaval quanto ela.

— Tá, tá bom, chatice, eu vou, mas só vou ficar um pouquinho lá, e fala pra sua prima que eu não gosto de fogos de artifício — Teresa disse, se dando por vencida.

Ela vestiu um macacão jeans da Fido-Dido sobre uma camisa branca de mangas compridas. Algumas pessoas sofriam para escolher suas roupas na hora de sair, mas, sem falsa modéstia, tudo costumava ficar bem em Teresa; ela só costumava trocar de roupa umas três ou quatro vezes para achar o estilo que mais combinava com a ocasião, como esse era um aniversário de quinze anos de uma garota em Barra da Tijuca, não precisava de nada muito chamativo. Ela só veio se arrepender de sua escolha mais à frente, no momento em que conheceu Gustavo; ele era um dos parentes distantes de Natália, um lindo rapaz de cabelos castanhos e olhos verdes.

A festa ocorreu em um grande clube à céu aberto; começou às sete, mas elas só chegaram às oito. Uma bandinha local tocava algumas músicas do Roberto Carlos no palco, o vocalista tinha cabelos compridos e usava calças de couro. Algumas crianças pulavam em camas elásticas e os adultos estavam divididos entre os que bebiam e conversavam nas mesas de plástico, e aqueles que estavam levando aquela história de show realmente a sério, dançando coladinhos na pista de dança. Teresa se sentou em uma mesa mais isolada, junto a Natália e Darlene.

— Quem é a aniversariante mesmo? — Darlene perguntou, esticando o pescoço à procura da mocinha que fazia seus quinze anos.

— Ali, ó — Natália apontou para uma mesa mais distante, onde uma garota, com um grande vestido de princesa, interagia com os membros da família, uma mulher idosa de bigode e o rapaz que, mais a frente, ela veio a conhecer; Gustavo usava uma camisa xadrez sobre uma outra camisa negra, e uma calça esporte fino de um azul marinho profundo. Teresa não costumava se sentir insegura a respeito de sua aparência, mas, nessa noite, se sentiu ridícula, parecia que seu guarda roupas não possuía opções suficientes para deixa-la apresentável o suficiente, primeiro Gustavo a olhou e sorriu, acenando; Teresa retribuiu o gesto, quase como uma criança acenando para um adulto bonito, mas viu que Darlene fez o mesmo, e se sentiu ridícula de novo, talvez o aceno nem fosse para ela afinal, e nesse caso, ela estaria pagando mico em dobro.

— E aquele ali, você conhece? — Darlene perguntou, dando duas cotoveladas no flanco de Natália. Darlene era o tipo de pessoa assanhada e imperativa, para piorar, ela não era do tipo que esperava seus interesses românticos tomarem a iniciativa, Teresa até sentia que ela não se dava o devido respeito às vezes, mas essa falta de auto respeito acabava caindo bem nela, isso combinava com a sua personalidade.

— Gustavo, é meu primo também, de segundo ou terceiro grau — Natália respondeu — Você gostou dele, foi?

— É, eu achei ele gatinho — Darlene, assanhada e imperativa, respondeu sem a menor hesitação.

— Quer que eu apresente você pra ele? Eu acho que ele tá solteiro — Natália disse.

— Mais tarde, mais tarde.

— Teresa? — Natália a tocou no ombro, tirando-a de seu transe.

— Oi? — ela respondeu, um pouco mais sobressaltada do que deveria, chegando a assusta-las um pouco.

— Tudo bem com você? Tá com dor de barriga?

— Ué, só tô com um pouco de sono, não posso nem ficar quieta? — Teresa disse.

Embora tivesse uma opinião bem negativa a respeito das festas infantis (toda aquela coisa de palhaço Bozo e balões coloridos já eram chatos na sua infância, além de estarem atrelados a algumas das suas piores lembranças), Teresa até achava aquela festa minimamente decente, ao menos, não tinha um palhaço dançando pela pista. Mais tarde ela veio a conhecer a Bruna pessoalmente, e a achou fascinante, mas seu encontro mais importante ocorreu depois das dez da noite, bem além do horário que ela havia estabelecido para ir embora. Teresa foi até a mesa de guloseimas, no final do clube, pegar um pouco de purê de abóbora para Darlene, que costumava usar seu problema de pressão baixa para fazer as amigas de empregadas. A banda tocava O gosto de tudo, do Roberto Carlos. Quando Teresa pegou o último pote de purê da mesa, Gustavo surgiu subitamente em seu campo de visão, freando sua correria e praguejando.

— Ah, merda, eu achei que, se fosse rápido, ia conseguir pegar primeiro que você — ele disse, lhe oferecendo um sorriso cheio de dentes perfeitos. Teresa riu, e, depois de ambos hesitarem um pouco, seus olhos se encontraram.

— Foi mal, minha amiga tem pressão baixa, ela precisa mais do que você — ela respondeu, tentando não parecer muito boba, ao menos, não mais do que já parecia.

— Ela teve um ataque de pressão baixa? Nossa, a festa tá tão ruim assim, é? — Gustavo perguntou descontraidamente.

— Não, até que não, mas enquanto ela puder fazer alguém de empregada... Você sabe.

— Ah, entendi — ele disse, balançando as mãos como um garoto nervoso e tomando um fôlego profundo — Então, qual o seu nome? Eu vi que você tava com a minha prima, Natália, cês são amigas?

— Teresa, Maria Teresa — ela respondeu — É um prazer.

— Gustavo, só... Gustavo mesmo — ele disse.

— É um nome bonitinho, dá pra te chamar de Gusta.

— Não, por favor, não — ele disse, rindo, e ela riu também.

— Tudo bem, tudo bem, esquece o Gusta — Teresa disse — Foi péssimo mesmo — ela emendou.

— Então... Você tem que entregar isso aí, né? Mas se você estiver livre, a gente pode dançar um pouco, depois.

— Você quer dançar uma música do Roberto Carlos comigo? — Teresa perguntou de forma pretensiosa — Bom, a gente tá naquela mesa ali, no final, você pode me chamar lá daqui a alguns minutos, vou só ver se a Darlene vai precisar de alguma coisa ainda.

— Beleza, eu passo lá — ele deu um joinha, ponto as mãos nos bolsos e voltando para o local de onde veio. Teresa não pode deixar de reparar em como Gustavo tinha costas largas, e em como os pelinhos claros de seu antebraço eram charmosos de uma forma estranha. Eles foram em direções opostas, mas Teresa olhou sobre o ombro umas duas vezes enquanto voltava para a sua mesa.

— Aqui — ela pôs o potinho de purê de abóbora sobre a mesa.

— Ah, obrigada, Tê, você é tudo de bom — Darlene sorriu com gratidão, como se não soubesse bem que Teresa tinha ido buscar a contragosto.

— Pois é, e você é a encarnação da preguiça — Teresa respondeu com descaso. Ela se dirigiu para Natália logo em seguida — Ah, e eu acabei conhecendo o seu primo lá.

— Foi? Sério? E então? — Natália perguntou, sorrindo e arqueando uma sobrancelha.

— É, ele parece ser gente fina ... Tinha os dentes limpos, olhos claros, e é até bonitinho — Teresa disse, fingindo desinteresse, assim como fez quando conversou com ele, a ideia de "vá me buscar na minha mesa" era uma espécie de truque para saber o quão longe ele estava disposto a ir por ela, além de determinar quem estava no comando ali, ela estava no comando.

— Se eu soubesse disso, eu tinha ido pegar o purê sozinha — Darlene disse, culpando-se com veemência pela sua falta de ação, a atitude de dar encima de alguém não seria um problema para ela, se estivesse por perto, mas a diferença entre Darlene e Teresa era claramente o seu nível classe.

Alguns minutos depois, ao som de Coisas que não se esquece, Gustavo realmente apareceu em sua mesa (tinha arrumado o cabelo e ajeitado as mangas da camisa xadrez), ele mostrou um sorriso, um pouco mais superficial do que antes, como se não quisesse parecer muito escancarado.

— Opa, e aí Natália — ele cumprimentou a sua prima primeiro — Oi — disse para Darlene e, por fim, se dirigiu a Teresa — E então, eu posso roubar você um pouquinho?

— Ah, sim, claro — ela fingiu indiferença, estendendo a mão para ele, com a palma virada para baixo — Ei, meninas, eu acho que vou dançar um pouco.

— Certo, vai lá — Natália disse

— Não acredito nisso! — Darlene vociferou. Teresa podia até imaginar a cara que ela estava fazendo enquanto se afastava, mas isso não importava muito para ela, classes diferentes, classes diferentes.

Gustavo a levou até a pista de dança, onde vários outros casais já se uniam e moviam-se suavemente ao ritmo da música. Teresa sabia que acabaria exibindo seus dotes novamente. Ela foi bem sortuda na loteria dos talentos, uma vez que era boa para conversar, era boa para fazer joguinhos de interesse e até mandava bem em algumas matérias como matemática e álgebra, mas era na dança que ela brilhava de verdade, ela tinha feito aula de ballet dos onze anos até os dezessete. A pista de dança era como um palco para ambos naquela noite, ela pisava tão suavemente que mal sentia o chão sob seus pés, Gustavo correspondia, segurando em sua cintura e deixando que ela fosse livre, mas não o suficiente para que saísse de perto dele, não o suficiente para deixar de senti-la, e Teresa gostava que fosse assim, gostava tanto, que até perdeu a noção do tempo, e quando foram perceber, já tinham dançado umas três músicas, ficando para trás enquanto a maioria dos casais já haviam parado, chamando mais atenção do que queria, mas não se importando o suficiente para acabar com sua diversão. Naquela noite, eles se encaixavam como duas peças de um quebra-cabeça.

Mais tarde, quando se sentaram para beber um pouco, ele sorria sem um motivo claro, sorria apenas de olhar para ela, o que até soaria bobo se seus dentes não fossem tão perfeitos.

— Pois é, você... Dança pra caramba, hein? – Gustavo disse, bebendo um grande gole do ponche de maçã.

— Pois é — Teresa repetiu em resposta — Você também, deve ser uma das melhores pessoas que já dançaram comigo — ela emendou, sabendo que ele era, definitivamente, a melhor pessoa com quem ela já dançou, mas não estando disposta a entregar o jogo dessa maneira.

— Ah, que nada — ele disse, fazendo um gesto de falsa modéstia com a mão.

— Eu fiz aula de ballet até os dezessete anos — ela disse.

— Sério? Você é bailarina? Por isso! — Gustavo disse, estranhamente empolgado, se inclinando em sua direção — Minha vó também é, sabia?

— Sua vó? — Teresa sorriu, mas seu sorriso logo se transformou um riso — Você olha pra mim e enxerga a sua vó, é isso?

— O que? Não, nada a ver! — Gustavo riu também. Eles riram juntos por um tempo, embora nem soubessem o motivo daquilo ser tão engraçado naquela época.

— Você aprendeu alguma coisa com ela? — Teresa perguntou — Você é tipo um bailarino também?

— Não — ele respondeu, reduzindo seu sorriso até esconder novamente os dentes — Deve ser alguma coisa com a genética, minha vó tem o dom de dançar, e passou o dom pra mim.

Naquela noite, ele definitivamente disse que sabia dançar tão bem por conta de sua genética, que herdou a habilidade de sua avó, então, foi uma surpresa para Teresa quando viu que Luíza não se parecia em nada com Gustavo, nem em comportamento, nem em postuta, nem mesmo a etnia era a mesma. Apenas alguns minutos depois, ela veio a notar algumas semelhanças na forma como ambos moviam as sobrancelhas, mas não sabia ao certo se um movimento de sobrancelhas era algo genético ou um hábito que se adquire com a convivência.

— Que clima de velório, ninguém fala nada nessa cozinha — Luíza disse, como se não fosse ela a culpada por isso.

— Eu tô meio sem assunto hoje — Gustavo disse, tão concentrado na sopa que sequer olhava para elas.

Teresa mexia a colher para lá e para cá no prato de sopa, estava com fome, não comia nada desde o meio dia, mas algo lhe embrulhava o estômago nessa noite, algo como um mal presságio.

— A sopa tá ruim, Teresa? — Lúcia a perguntou.

— Não, eu só tô sem fome hoje — ela disse, não era bem mentira, mas o olhar acusador que Gustavo lhe lançou, foi como se ele achasse que ela estava inventando isso só para fazer drama, o que a deixou ainda mais irritada com toda a situação.

— Sem fome? E você comeu antes de vir pra cá? — Luíza perguntou de forma seca.

— Não — ela respondeu com mais sequidão ainda.

— Então... Eu soube que vocês querem ir pra Paris no fim do ano — Luíza disse, calma e sutilmente, como se plantasse uma semente da discórdia. Gustavo largou a colher no prato, fazendo um barulho metálico que acordou novamente a bebê no colo de Luíza; ela começou a chorar de novo.

— A gente falou disso mais cedo, vó! — ele disse.

— Eu só quero saber se ela concorda com isso, mesmo sabendo do desperdício de dinheiro que isso vai ser — Luíza prosseguiu, implacável.

— Se eu concordo? — Teresa arqueou as sobrancelhas, a ideia de ir para Paris nem foi exatamente dela, Gustavo quem havia mencionado isso há um tempo, mas Teresa realmente deu forças a ele, e por que não?

— É, você concorda com todo esse gasto de dinheiro? — Luíza perguntou, com um ar tão agressivo, que quase era possível ver a sua fúria sendo exalada do corpo.

— Bom, eu concordo, não é  desperdício de dinheiro, e a gente não vai falir só por causa disso — Teresa respondeu, sem se intimidar pelo tom de voz dela.

— É, talvez você não, né? Você não vai pagar nada — Luíza respondeu, com um sorriso que sequer omitia o veneno nas palavras.

— Vó, dá pra gente jantar em paz hoje? — Gustavo elevou a voz acima do choro de Mariana.

— E você, baixe o tom pra falar comigo! — Luíza o repreendeu, e ele encolheu os ombros como um garotinho.

— Mãe, me dá a Mariana aqui, por favor — Lúcia pediu, enquanto eles brigavam por cima daquele som de apito gaiato.

— Espera aí, essa viagem é o motivo de você ficar me olhando com essa cara de tatu desde a hora que eu cheguei aqui? — Teresa a perguntou, colocando seu melhor sorriso irônico no rosto.

— Cara de tatu? Menina, eu tô olhando pra você da forma que eu olho pra qualquer pessoa — Luíza disse, sua voz se tornando mais aguda.

— Então você olha pra todo mundo assim? Me admira que você tenha se casado — Teresa retrucou. Luíza sorriu, embora os seus olhos ardessem de ódio.

— E fui muito bem casada — disse Luíza — Sabe o que eu acho? Que você gosta muito de se aproveitar do Gustavo, e que ele é um idiota por não ver isso — ela emendou — Eu conheço a sua mãe, menina, sei bem o tipo de gente que vocês são!

— Mãe! — Lúcia tentou repreende-la, enquanto pegava Mariana à força, mas a essas alturas, ninguém mais estava dando atenção a ela.

— Vó, pelo amor de Deus, isso não é coisa que se fale! — Gustavo disse, mais desesperado do que realmente irritado, e aquilo foi o cúmulo do patético.

— O que você quer dizer com o "tipo de gente" que a gente é? Você tá chamando a minha mãe do quê? Fala! — Teresa ficou subitamente de pé, espalmando a mesa.

— Eu só falei o que todo mundo da família queria falar, menina — Luíza respondeu — Você é uma... interesseira — ela concluiu, e esse foi, definitivamente, o momento em que Teresa esteve mais perto de bater em uma mulher idosa. Foi necessário que ela usasse todo o seu autocontrole para simplesmente engolir em seco.

— Que se dane, eu não ligo pro que a sua família idiota pensa de mim!!

Mariana finalmente parou de chorar, quando começou a mamar em Lúcia. Um estranho silêncio pairou no ambiente.

— Gustavo, me leva pra casa — Teresa disse resoluta.

— Ah, Tê, espera aí — ele disse, se levantando e tentando tocar seu ombro, mas Teresa recuou, evitando-o.

— Se você não me levar pra casa, eu vou sozinha pra lá, aí você nem precisa mais me ligar! Tá bom assim?! — ela disse, ameaçando-o de término pela terceira vez em seis meses de namoro, embora ela nunca tenha falado isso de forma tão séria como nesse momento.

Um longo suspiro foi a resposta dele.

— Valeu aí, vó, valeu... — Gustavo disse, finalmente tocando-a no ombro e a conduzindo para fora dali. Enquanto saía daquela casa de loucos, Teresa sentia uma vontade incontrolável de quebrar alguma coisa.

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