Muitas vezes na vida não sabemos explicar algumas sensações. Algumas passam e nem damos importância. Porém, existem outras que cravam em nosso peito e parecem que nunca mais irão sair. Por outro lado, existe uma em questão, que ninguém nunca conseguiu explicar com total certeza até hoje — e acredito que não será desvendada tão cedo —, essa sensação se chama amor. E muitas vezes, o sentimos e nem sabemos. Isso aconteceu comigo, mesmo que por muito tempo tentasse negar a mim mesma que não podia amar uma pessoa, isso foi inevitável. Pois de alguma forma aquele amor impossível e fora dos padrões que a sociedade, sobrepôs a barreira de qualquer preconceito.
Quando pessoas estão destinadas a ficarem juntas, por mais que a vida complique, de alguma forma o destino as unirá. Há quem ache isto uma tremenda besteira. Almas gêmeas? Que idiotice! Como há quem acredite em lendas, como a lenda oriental Akai To. Que fala sobre um fio vermelho no dedo dos casais destinados a ficarem juntos. Este fio pode se esticar, emaranhar e mesmo assim essas pessoas estarão conectadas e que haverá um momento na vida que estás pessoas irão ficar juntas.
Há também quem acredite em carma, em assuntos a serem resolvidos, sobre almas que dependem uma da outra para evoluir espiritualmente.
Enfim, todas essas lendas e crenças afirmam que existem pessoas que estão ligadas, destinadas a ficarem juntas e que por mais que os fios estranham, que um abismo os separe, que tudo seja contra o amor. Essas pessoas encontrarão um meio de ficarem juntas. Pois o amor é isto. E muitas vezes é uma batalha a ser vencida.
Eu particularmente aprendi isso após conhecer uma pessoa especial, que abalou o meu mundo, mudou os meus conceitos sobre muitas coisas. Que me mostrou que o amor poderia vir de quem menos esperamos. E que por mais que eu negasse mil vezes a mim mesma. Era impossível ficar distante, pois os nossos destinos estavam ligados, nesta e em outras vidas.
(...)
— Acorde, acorde, dorminhoca! — exclamava minha irmãzinha mais nova, Amanda, enquanto pulava em cima de mim.
Me escondi por baixo das cobertas, não queria levantar da cama, ainda era muito cedo e estava frio.
— Vamos, Paloma! A mãe disse que você tem que levantar! — insistiu Amanda.
— Me deixa dormir só mais um pouquinho — resmunguei. — Sai daqui.
— MÃE, ELA NÃO QUER LEVANTAR PARA IR PARA A ESCOLA! — gritou Amanda.
Escutei passos vindo até meu quarto. Tirei as cobertas da cabeça e olhei para a porta do meu quarto. Minha mãe estava lá, com os cabelos presos para trás e vestida para sair. Com um olhar que me obrigava a levantar da cama.
— Você está atrasada, Paloma. Sua escola nova abre às oito — disse minha mãe com autoridade.
— Já estou levantando, Dona Marta — resmunguei me sentando na cama e passando a mão nos olhos sonolentos.
— Te dou trinta minutos — disse ela, e se retirou.
Minha irmãzinha continuou no meu quarto, me olhando e sorrindo bobamente. O que era fofo demais. Já que ela tinha apenas nove anos. Nove anos de pura esperteza.
— O que foi? — perguntei constrangida pela forma que ela me olhava.
— Você está animada? — perguntou eufórica.
— Ah? É só mais uma escola — murmurei e me levantei da cama.
— Não é só mais uma escola, maninha. Você vai para uma escola nova na nossa nova cidade. Eu pensei que você pudesse estar nervosa como eu estou. Ainda bem que a minha aula é só à tarde — disse ela, enquanto eu andava até meu guarda roupa e pegava o meu novo uniforme.
— Estou bem, não vai ser nada de mais — disse me virando e olhando para Amanda ainda pulando na minha cama.
Olhei novamente para o uniforme da minha nova escola. Era feio, parecia um colégio interno. Qual é a necessidade de uma saia? Mas fazendo uma comparação, ele era mais estiloso do que os anteriores.
Na minha antiga escola o uniforme era verde, horroroso.
Havíamos mudado a pouco tempo para aquela nova cidade sem graça e chuvosa. Depois do divórcio dos meus pais, minha mãe começou a viver uma vida de nômade atrás de um emprego. Em três anos moramos em quatro cidades diferentes. Às vezes até me sentia uma criança de circo, que não deveria fazer amigos na escola, pois logo iria embora. “Mas desta vez é diferente!” disse minha mãe. “Agora temos casa própria e eu tenho um bom emprego fixo no jornal da cidade”. Minha mãe era uma ótima jornalista. Mas naquela cidade que só se via campos, criações agrícolas e plantações. Pensei que não houvesse grandes coisas para ela escrever. “EXTRA, EXTRA! UMA VACA SE AFOGOU NO RIO!” É claro que minha mãe não gostou muito da minha piada durante a viagem de carro.
Eu não estava criando grandes expectativas com aquela cidade, nem com as pessoas de lá. No meu ponto de vista, seria apenas mais uma passagem. Logo, minha mãe se cansaria e iríamos pular para outro lugar, que eu esperava ser uma cidade mais animada do que aquela.
A verdade é que eu estava cansada. De me mudar toda hora, de não poder fazer amigos por medo de me apegar a alguém que eu sei que seria apenas de passagem. Estava cansada de arrumar meu quarto em casas diferentes. Estava cansada da euforia da minha mãe. Mas esperava que encontrássemos logo um lugar para chamar de lar.
— Espero fazer muitos amigos — disse Amanda.
— Você é um amor, maninha. É claro que vai fazer. — Me virei para trás e sorri para ela.
E me retirei do quarto, rumo ao banheiro para tomar um banho quente.
Depois que me vesti e sequei os cabelos, fiquei me olhando no espelho do banheiro enquanto penteava meus cabelos castanhos escuros, meio ondulados e recém cortados na altura dos ombros. Eu parecia uma órfã vestida com o uniforme daquela escola e com aquele cabelo ridículo. Meus olhos castanhos estavam cansados. Eu deveria ter dormido mais. Porém, na noite passada fui contemplada por sonhos estranhos. Eu via uma praia, um casarão, uma cabana, um castelo e sempre os mesmos olhos verdes hipnotizantes. Sabia que não deveria levar a sério, eram apenas mais dos meus sonhos idiotas sem sentido algum.
— Já está pronta? — perguntou Marta, surgindo na porta do banheiro.
— Sim — respondi.
— Ótimo, vamos! — disse ela animada, como se fosse o seu primeiro dia de aula.
O que na verdade deveria ser a euforia de ter um novo emprego.
Entramos no carro, um Opala preto que consumia gasolina como um bêbado bebe cerveja sexta feira à noite.
Enquanto o carro se afastava, eu olhava para o nosso novo lar. Uma chácara no meio do nada, herança de uma tia solteirona da Marta.
Era um lugar agradável, não podia negar. Além de muito bonito, o único problema era a distância da civilização. A cidade era do interior, e o bairro onde eu estava morando era o interior do interior. Só se via árvores e morros. E no meio de mato, algumas poucas casas dos meus vizinhos mais próximos.
— Estão animadas? — perguntou Marta, para minha Amanda e eu no banco de trás.
— Sim! — respondeu Amanda animada, para ir para a casa de uma tia avó que morava no centro e topou cuidar da menina enquanto minha mãe trabalhava.
Sinceramente, eu tinha um pouco de pena da velhinha, pois minha irmãzinha era muito elétrica.
— E você, Paloma?
Eu estava distraída, olhando uma plantação de milho pela janela. Olhei para frente e minha mãe me olhou pelo espelho retrovisor.
— Estou tranquila — respondi normalmente.
— Que bom — disse Marta sorrindo. — Vai dar tudo certo. Sinto isso. Esse é um novo começo, minhas filhas. Sei que seremos muito felizes nesta cidade. E que ficaremos por muito tempo.
— Vamos fazer amigos que vão durar para sempre! — exclamou Amanda.
— Amigos caipiras — comentei.
— Melhor do que nada — rebateu ela, sorrindo convencida.
— Vamos pensar positivo que vai dar tudo certo — disse Marta, não sei para nós ou para si mesma.
Chegamos no centro da cidade. Pensei que seria como em um filme de época. Mas não. Havia lojas, mercados, escolas, prédios públicos. Todos muito próximos. E uma praça.
Marta deixou Amanda na casa da nossa tia avó e seguimos o caminho para a minha nova escola. Que para minha surpresa, ficava próxima a praça.
Assim que Marta estacionou o Opala na frente da escola. Todos os olhares caipiras caíram sobre nós. Senti minhas bochechas queimarem. E Marta percebeu que fiquei constrangida.
— Desculpa, filha. Da próxima estaciono mais a diante.
— Agora não faz diferença — disse jogando a mochila nas costas. — Que horas você vem me buscar?
— As onze e meia.
— Ok. Tchau.
— Tchau.
Saí para fora, fechei a porta e minha mãe deu partida no carro. Me deixando sozinha no meio daquela multidão de estranhos.
Até que para uma cidade de fim de mundo, aquela escola estava bem cheia.
Talvez meus conceitos estivessem errados.
Enquanto andava até o que me parecia um mural de turmas e horários, todos, sem exceção, olhavam para mim. O que me fazia sentir uma estranha, extraterrestre. Aquele não era o meu lugar.
Cheguei no mural em busca do meu nome. Paloma Pereira, 1° ano, turma 103. Primeira aula história, sala 5.
O que eu não imaginava é que aquela escola além de ter o uniforme do colégio interno, também se parecesse com um. Era uma construção enorme, de três andares. Não imaginava tudo aquilo em uma cidade do interior.
Eu nunca iria achar a tal sala cinco. Não tinha nenhum conhecido e estava envergonhada demais para pedir ajuda para alguém. Então fiquei olhando para o mural, em busca de algo que pudesse me ajudar.
Passei alguns minutos naquela situação, até que apareceu uma menina e ficou ao meu lado olhando para o mural.
— Eu sou mesmo uma desastrada — resmungou ela. — Ficar sem celular um dia antes da escola mandar os novos horários, só eu mesma.
Olhei de relance para ela. Era magra, mesma altura que eu, cabelos castanhos cacheados até a cintura e pele morena. Usava uma calça do uniforme, que ficava tão bonita no corpo dela que nem parecia que ficava ridícula na maioria das garotas. E sorria do próprio azar enquanto o olhava para o mural.
— Você é nova aqui? — perguntou ela, finalmente me olhando.
— Sim — respondi.
— Deve ser difícil chegar assim no final do primeiro trimestre. Bem, é um prazer te conhecer — disse ela me entendendo uma mão. — Eu me chamo Vitória, e você?
— Paloma.
— Ok, Paloma. Você está olhando para esse mural por tempo de mais. Por acaso está perdida?
— Acho que estou.
— Como é seu nome completo?
— Paloma Pereira.
Vitória se aproximou mais do mural e ficou passando o dedo enquanto lia os nomes.
— Hum, aqui! Paloma Pereira, 1° ano, sala cinco. Que sorte! — disse sorrindo de uma forma que me obrigou a sorrir também. — Somos colegas!
— Legal — comentei.
— Vem! — disse ela. — Vou te lavar até a sala.
Então fui puxada pela mão até o terceiro andar daquele colégio repleto de alunos.
Chegando na porta da sala eu estava exausta, após subir as escadarias.
— Você está bem? — perguntou Vitória.
— Estou, só que as escadarias...
— Eu sei — interrompeu Vitória. — Com o tempo você se acostuma.
— Espero que sim — disse ainda ofegante.
— Vamos entrar na sala, já estão todos lá — disse andando até a porta fechada.
Vitória abriu a porta e entrou confiante. Antes de entrar eu já ouvia as pessoas a cumprimentando.
Fiquei nervosa, o que era muita idiotice. Aquela não era a primeira vez que eu entrava no meio do ano em uma escola nova. E tinha que ver um monte de caras novas. Não seria daquela vez com um monte de caipiras que seria diferente.
Respirei fundo e entrei depois de Vitória.
Todos os olhares caíram sobre mim. E sem saber o que fazer, segui os passos de Vitória.
— Pode se sentar ao meu lado se quiser — disse ela. — Eu sempre gostei de me sentar sozinha, mas posso fazer uma exceção. — Sorriu enquanto se sentava no fundo da sala.
— Obrigada — falei.
— De nada — disse Vitória.
A professora entrou em seguida e assim que me viu abriu um largo sorriso.
— Não sabia que a aluna nova viria hoje — disse ela, uma mulher idosa, loira e baixinha. — Como você se chama, querida?
— Paloma — respondi e todos voltaram a olhar para mim.
— E vem de onde? — continuou a professora.
— Da capital — respondi.
— E o que está achando da nossa cidade?
— Ainda não sei. Cheguei há uma semana.
— Entendo... espero que você goste da cidade e da escola. Sei que somos diferentes das pessoas da capital. Mas posso afirmar que podemos ser mais acolhedores do que você imagina. E seja bem vinda à Escola Vasconcelos!
— Obrigada — agradeci e voltei a me sentar.
— O que ela quis dizer com isso? — perguntei à Vitória.
— Aqui é uma cidade pequena, e meio que todos se conhecem. Então cuidado com o que faz. As fofocas se espalham como fogo em grama seca por aqui.
— Entendi.
Só achei a referência um pouco caipira.
— O que você fazia para se divertir lá na capital? — indagou Vitória.
— Ah, não fazia muita coisa. Depois que meus pais se separaram, mudei de casa muitas vezes. Não tinha muito tempo para fazer amigos.
— Lamento. Então você não vai ficar muito tempo por aqui também?
— Aqui é diferente. Minha mãe ganhou uma casa de herança e conseguiu um emprego fixo. Ela é jornalista e vai trabalhar no jornal da cidade. Mas ainda não sei se ela vai querer ficar aqui. Ainda depende do humor dela.
— Vai ser o trabalho mais fácil do mundo! — gargalhou Vitória. — Aqui não acontece nada.
Gargalhei.
— Foi o que eu disse para ela — comentei.
— Então sua mãe é jornalista. Legal. A minha é psicóloga e hipnóloga.
— Isso sim é legal.
— Sim. Quando eu era pequena e até hoje quando não tenho aula ela me leva para o consultório.
— E como é? — perguntei curiosa e feliz por estar conversando com alguém logo no primeiro dia de aula.
— Resumindo em uma palavra... Fantástico! As pessoas procuram minha mãe para fazer regressão, sabe? É incrível como o cérebro humano é capaz de recobrar de lembranças de vidas passadas. Eu adorava ouvir as histórias das pessoas.
— Isso é possível, mesmo? Não é só algo que a pessoa cria na hora? Quero dizer... imagina?
— Claro que não. São memórias mesmo. Além de ser uma ótima terapia. Pois a vida passada pode ajudar a atual.
— Parece ser mesmo muito interessante — afirmei.
— Se você quiser um dia, podemos fazer — disse Vitória.
— E você sabe mesmo? — perguntei receosa, olhando para o quadro, onde a professora começava a passar o conteúdo de história.
— Claro que sei. Minha mãe me ensinou tudo. Fora o que eu vi pessoalmente no consultório. Se você quiser, podemos marcar um dia. — Convidou Vitória, sorrindo amavelmente.
— Não sei, não — falei rabiscado o caderno. — Acho que tenho medo do que posso ver. Imagina se eu fosse um guerreiro sanguinário. Não gostaria de ver algo assim.
— Fica tranquila, amiga... — Espera, ela me chamou de amiga? Recém nos conhecemos. — Não precisa ter medo de suas vidas passadas. É só aceitar o que virá. E você é uma menina doce pelo que notei até agora. Duvido muito que tenha sido alguém do mau.
— Pode ser, então — aceitei. — E onde você mora?
— Moro no bairro Rio Branco, sei que é bem afastando aqui do centro. Mas se eu pedir, minha mãe pode te buscar em casa — disse Vitória, um pouco desconcertada por morar em um bairro mais remoto.
Foi quando me lembrei que estava morando lá também.
— Acho que posso ir a pé na sua casa. Eu também moro neste bairro.
— Nossa! Que perfeito! Fico feliz em ter alguém legal perto de casa. A maioria por lá já passou dos sessenta anos.
— Eu percebi — afirmei.
E rimos juntas.
O que posso afirmar sobre meu primeiro dia de aula naquela escola, foi que não prestei atenção na aula naquele dia. Vitória e eu tagarelamos a manhã toda e sem dúvida nos tornamos amigas. É incrível como funciona esse negócio de conexão, você pode se identificar e querer levar para o resto da vida uma amizade de cinco horas. Assim como pode conhecer uma pessoa há anos e não confiar nela. E com Vitória, senti que nossa amizade seria de anos. Resumindo, ela era uma pessoa muito legal, divertida, gostava dos mesmos filmes e livros que eu e nunca deixava o assunto morrer.
Quando cheguei em casa almoçamos com minha mãe e eu, já que Amanda estava na casa da minha tia avó. E depois do almoço minha mãe voltou para o trabalho e eu fiquei sozinha em casa a tarde toda.
— Como foi seu primeiro dia de aula? — perguntou minha mãe no jantar.
E Amanda respondeu animada:
— Incrível! Só hoje fiz oito amigas!
— Nossa! Oito amigas — disse Marta sorrindo. — E você, Paloma?
— Hoje foi legal — falei revirando a comida no prato. — Acho que fiz uma amiga Ela disse que mora aqui perto e me convidou para ir na casa dela, o nome dela é Vitória.
— Isso é muito bom, filha. Fico feliz por vocês terem gostado da escola. Eu disse que seria bom. Seremos muito felizes aqui — afirmou ela, alegremente.
Sinceramente, eu esperava que sim.
Durante dois dias, minha vida parecia ter se passado durante anos naquela cidade. A casa de campo me trazia um imenso conforto. Eu amava passar as tardes sozinha, nunca antes tinha convivido tanto com o silêncio. Que se mostrou ser um bom companheiro. Ler se tornou meu hobby, pois a falecida tia Lúcia havia deixado inúmeros livros em um cômodo da casa, que por coincidência, se tornou meu quarto. Eram livros antigos, porém muito bons. Eles e uma xícara de chá, eram meus companheiros de solidão nas tardes silenciosas do interior.
Durante esses dias, Vitória foi minha companhia na escola. Ela tinha o dom de falar sem parar e nem perceber quando eu me distraía e sem querer não a ouvia. Logo no meu segundo dia de aula, ela fez questão de me passar seu telefone, assim poderíamos conversar a qualquer momento do dia.
— Quando você vai poder ir lá em casa? — perguntou ela, pela décima vez, enquanto andávamos pelo pátio repleto de árvores da escola.
Pensei um pouco e respondi:
— Talvez semana que vem. Essa semana ainda estou me acostumando a tudo isso e ainda tenho que falar com a minha mãe, ela não gosta da ideia de deixar nossa casa sozinha.
— Melhor ainda! — disse ela. — Eu posso ir na sua casa.
— Por mim tudo bem! — falei sorridente.
— Ok, sábado então. Eu irei à sua casa à tarde — disse ela.
— Ok — concordei.
Na quinta-feira, cheguei na escola e não encontrei minha única amiga e também a única pessoa que eu conversei naquela escola.
Sai andando pela escola a procura dela, pois Vitória me mandaria uma mensagem caso fosse faltar já que éramos praticamente melhores amigas.
Passei alguns minutos andando entre diversos alunos, todos conversando animadamente com seus amigos. Foi quando senti aquela sensação estranha de exclusão na escola, quando o seu amigo falta e você é obrigado a se sentar em um canto sozinho. Mas isso felizmente passou quando de longe avistei Vitória em um canto próximo a umas janelas acompanhada por um garoto. De início pensei em não atrapalhar, então fiquei olhando de longe. Ela parecia estar muito feliz com ele, embora eu não pudesse vê-los muito bem.
Me escorei em uma parede e fiquei olhando de longe, torcendo para que o sinal tocasse logo e eu pudesse ir para a sala e ter minha amiga de volta.
Porém, por mais que eu evitasse, Vitória tirou seus olhos por alguns segundos do seu amigo e olhou na minha direção.
— Paloma! — gritou ela, levantando um braço e sorrindo na minha direção. — Que bom que chegou! Vem aqui!
Fiquei um pouco envergonhada, novamente todos olharam para mim. Então andei na sua direção.
De perto, pude ver o garoto que minha amiga conversava. E sem dúvida, aquele era o garoto mais lindo da história do universo! Pele bronzeada, olhos castanhos claros, cabelos negros longos e forte como um cara de academia. Nunca pensei que no meio do nada poderia existir um cara em tão boa forma.
Ele sorriu para mim, foi quando percebi que o estava encarando por tempo demais.
— Oi — disse ele me estendendo sua mão. — Paloma, né? Eu me chamo Rafael.
— Oi, sim. Legal te conhecer — disse, e logo me arrependi te ter respondido, pois falei como uma idiota.
— O que achou da minha nova amiga? — Vitória perguntou à ele. — Ela não é uma graça? Pode parecer tímida agora, mas se você deixar ela falar o dia todo!
— Mas assim que é bom! — disse ele, sorrindo. E que sorriso.
Pensei em dizer algo, mas foi como se meu cérebro perdesse a conexão com a boca. E quando finalmente fui dizer algo, o sinal tocou.
— Bem — disse Rafael, olhando para Vitória e em seguida para mim. — Foi bom te conhecer, Paloma. Mas agora tenho que ir. Até mais!
E se retirou.
Fiquei olhando ir, enquanto sentia uma estranha transpiração nas minhas mãos.
— Paloma? — disse Vitória.
— Oi. — Voltei a olhar para ela.
— Aconteceu alguma coisa?
— Não — respondi simplesmente.
— Ele é legal, né? — disse ela, olhando Rafael se afastar.
Dei de ombros.
— Vamos entrar? — disse Vitória, se dirigindo até a porta da sala de aula.
Dentro da sala nos acomodamos nos nossos lugares de sempre.
— Vocês se conhecem há muito tempo? — perguntei.
— Rafael é meu amigo de infância — disse Vitória. — E também o garoto mais bonito da escola, mas isso você já deve ter notado — disse ela, sorrindo.
— É algo quase impossível de não se notar — gargalhei.
— É, pode-se dizer que sim. A verdade é que eu queria que ele me visse como algo mais do que amiga — disse ela, com a voz baixa.
— Você é linda, ele seria louco se não quisesse ficar com você.
Vitória sorriu de lado.
— Você é um amor — disse ela.
— Eu sei — gargalhei.
Naquele momento todo meu possível crush por Rafael se desfez quando vi aquele sorriso. Rafael era sem dúvida o cara mais atraente que vi na minha vida, porém eu sabia que não teria nenhuma chance contra Vitória, que além de linda era uma pessoa incrível. Uma amizade que eu não trocaria por garoto algum.
E saber que ela se interessava por aquele garoto, me deixou cheia de ideias de arranjar uma forma de ajudar os dois a ficarem juntos.
— Por que não fala para ele o que sente? — perguntei por fim. — Talvez ele também goste de você, só que tem vergonha de ser rejeitado.
— Você olhou bem para ele? — perguntou escandalizada. — Um homem daquele sabe que nunca vai ser rejeitado.
— Se vocês são amigos, ele pode ter receio de estragar tudo — comentei.
— É, pode ser — disse, afastando os cabelos cacheados do rosto. — Eu só queria que as coisas fossem mais simples.
— Entendo.
No intervalo, Vitória e eu fomos para a biblioteca da escola, que para minha surpresa tinha livros incríveis. Fiquei com vontade de levar todos para casa. Eu andava por cada estante, olhando livro por livro.
— Nunca vi alguém com tanto interesse por livros assim — comentou Vitória, andando atrás de mim.
— Eu gosto muito — falei sem tirar os olhos dos livros até que achei um dos que mais gostei de ler. — Você já leu Quem é Você, Alasca? — Tirei o livro da estante e entreguei nas mãos de Vitória.
— É bom? — perguntou olhado para a capa.
— Muito!
— Ok, vou ler então — afirmou ela.
— Só avisando, o John Green adora matar as pessoas — disse misteriosa.
— Sem spoilers, Paloma — disse Vitória, com seriedade.
— Só estou avisando. — Dei de ombros.
Vitória foi até a bibliotecária retirar o livro e eu continuei a procurar um para ler.
Estava distraída, quando uma mão pesada tocou meu ombro. Quando olhei para trás dei de cara com Rafael, que sorria, com certeza da minha reação.
— Ah, oi — falei constrangida.
— Você viu a Vitória?
— Sim, ela está ali. — Apontei na direção da escrivaninha da bibliotecária.
— Hum — disse ele. — Então, Paloma. A Vivi me disse que você se mudou há pouco tempo. O que está achando deste fim de mundo?
— Sinceramente, até que está melhor do que eu imaginava. Pensei que seria uma cidade menos desenvolvida e que todos seriam caipiras desdentados.
Ele gargalhou.
— Ainda bem que não somos. — Sorriu fazendo questão de me mostrar um sorriso perfeito.
Foi impossível não sorrir também.
— Rafael! — disse Vitória, chegando por trás dele. — Pensei que você não viria atrás de mim hoje. Pensei que você fugiria da escola como fez nos últimos dias.
— Ah, Vivi. Você sabe que não consigo viver sem você — disse ele, docemente enquanto andava até ela e a abraçava.
Foi inevitável não reparar como sem dúvidas os dois formavam um belo casal.
— O que você vai ler aí? — perguntou ele, olhando para o livro nas mãos de Vitória.
— Quem é você, Alasca? — respondeu ela.
— Quero que você se lasque? — perguntou ele franzindo a testa.
— Não, seu velho surdo! — Ela gargalhou. — Quem é você, Alasca?
— É algum guia para quem quer se aventurar na nave?
— É um romance — respondi.
— Ah, entendi — disse Rafael, depois passou um braço pelo pescoço de Vitória. — E por que você vai ler um romance, Vivi? Por acaso está apaixonada?
— Ah, cala boca — disse ela, sorrindo bobamente, enquanto afastava o braço dele.
Vitória olhou nos meus olhos. Aquele foi nosso primeiro olhar de cúmplices.
Rafael, passou o resto do recreio conosco. Andamos pela escola e em seguida fomos para o refeitório. Vitória e Rafael chamavam a atenção por onde andavam, algumas pessoas os cumprimentavam e outras os olhavam pelo canto do olho. O que era de se esperar. Os dois eram sem dúvidas o casal mais bonito da escola, mesmo que não fossem bem um casal. Vitória ficava diferente perto dele, ficava mais sorridente do que o normal. E ele olhava fixamente nos olhos dela. Era óbvio que os dois possuíam uma forte conexão. Tanto que eu me senti segurando uma vela em vários momentos.
Quando chegamos na sala depois do recreio, Vitória estava radiante e eu sabia porquê.
— O que foi? — perguntou ela, reparando o modo que eu a olhava.
— Nada — disse ainda sorrindo.
— Fala — insistiu ela.
— Eu gostei do intervalo hoje, o Rafael é legal e vocês estão perdendo tempo sendo só amigos. Está na cara que vocês seriam um casal perfeito.
Vitória ficou radiante.
— Concordo plenamente com você. Mas não depende só de mim. Aquele bobalhão tem que perceber o que você percebeu.
— Por que você não fala para ele?
— Não é bem assim. O dia que você se apaixonar vai entender.
Assenti, e pelo silêncio de Vitória, percebi que o assunto morreria ali.
No dia seguinte, acordei cedo como sempre para ir para a escola. Minha irmãzinha sempre animada pela manhã de um modo que eu realmente invejava. Minha mãe sempre é positiva e eu sempre sonolenta.
Marta deixou Amanda na casa da nossa tia avó, e depois rumou para o centro da cidade. Cheguei na escola, minha mãe estacionou o Opala um pouco afastado da fachada da escola.
— Tchau, Filha — disse Marta.
— Tchau.
Fechei a porta e minha mãe deu a partida.
Eu não contava que aquela manhã fosse tão fria, enquanto andava até a escola. Um vento forte e congelante soprava meus cabelos e congelava meu rosto. Lamentei por não ter vestido mais casacos ou ter colocado um cachecol. Mas pelo menos não estava de saia como no primeiro dia de aula e jamais voltaria a usá-la. A calça do uniforme era muito mais prática e a maioria das alunas usava.
Entrei na escola, subi as intermináveis escadarias, me sentei em um banco na frente da minha sala de aula e fiquei esperando Vitória aparecer.
Os minutos se passaram e passaram e nada de Vitória aparecer. “Talvez ela não venha hoje.” Pensei. E confirmei minhas suspeitas quando a professora de Português chegou, abriu a porta da sala e toda a turma entrou.
Dentro da sala, me sentei no mesmo lugar de sempre, só que dessa vez no lado da parede, pois sabia que aquela hora Vitória já não viria mais.
Olhei no celular, esperando alguma mensagem dela, explicando o motivo de sua ausência. Nada. E pensando bem, ela não me devia satisfação alguma. Vitória simplesmente faltou e eu tinha que perder aquele meu medo idiota de conversar com as pessoas estranhas ou tinha que aprender a conviver melhor com a estranha sensação de solidão em meio a uma multidão.
A professora fez a chamada e logo começou a passar matéria no quadro. O que aliviou minha tensão, pois assim teria o que fazer.
Estávamos todos distraídos copiando a matéria, quando a porta se abriu. Logo minhas atenções se destinaram à garota que entrou. Ela sorriu assim que viu a professora e a cumprimentou com um “Bom dia!” Todos olharam para ela, mas não por muito tempo, o que me fez pensar que ela não era uma novata como eu, estava confiante de mais para isso. Eu achava Vitória a garota mais bonita daquela escola, mas assim que vi aquela menina, isso mudou.
Ela não tinha a beleza como a de uma super modelo, ou uma atriz de Hollywood, mas ela tinha algo único no seu modo de andar. Como seus cabelos lisos e castanhos claros se movimentavam a cada passo, como a luz parecia destacar a sua pele clara e como seu perfume parecia vir diretamente em minhas narinas.
E lá estava eu, novamente encarando uma pessoa, que por sinal estava se aproximando de mais. Foi quando notei que só havia um lugar vago em toda a sala, que por coincidência, era ao meu lado.
— Oi — disse ela, assim que se sentou ao meu lado.
Por um segundo evitei olhar, de alguma forma ela me pegou de surpresa.
— Oi — respondi, finalmente olhando em seus olhos.
Que por sinal, me deixaram hipnotizada. Eram os olhos mais lindos que já vi, talvez posso estar exagerando. Mas qualquer um concordaria se visse aquele par de esmeraldas brilhantes, envoltas por um rosto angelical que emanava o perfume de rosas brancas, que trazia cores para qualquer manhã cinza e fria de outono como aquela.
— Você é nova, não é? Eu nunca te vi por aqui — disse ela, arrumando seus materiais pela mesa.
— Sim — respondi rapidamente, desviando meu olhar para o quadro.
— E como você se chama? — Ela sorriu.
— Paloma.
— Então, Paloma. Desculpe o interrogatório, mas eu sou muito curiosa. De onde você veio?
Sorri sem jeito.
— Da capital.
— Hum, eu já visitei a capital algumas vezes e foi bem legal. Mas morar, eu sempre morei aqui — disse ela.
— Cheguei a pouco tempo — comecei a falar, mesmo não encarando aqueles olhos verdes. — E estou gostando mais do que imaginei. Principalmente da escola.
— Que legal! — disse ela. — E a propósito meu nome é Ketlyn, mas pode me chamar de Kety, ok?
— Ok, Kety. — Sorri.
— Você está entendendo a matéria?
— Mais ou menos, na minha antiga escola acho que estávamos mais atrasados.
— Tudo bem, eu ajudo você.
E realmente Kety passou o resto da aula me explicando como se fazia cada atividade, o que me admirou e receber toda aquela atenção.
Quando o sinal tocou para o recreio. Kety se juntou com algumas amigas e eu não tive coragem de ir atrás, pois pensei que seria estranho, já que não conhecia aquelas garotas. Então, peguei meu celular e mandei novamente uma mensagem para Vitória. Que nem estava online e nem me respondeu, o que me deixou um pouco preocupada. Mas talvez ela só estivesse dormindo naquela manhã gelada. E eu, cheia de paranóias por nada.
Fui para o refeitório, que felizmente era um lugar mais quente e peguei um prato de sopa que estavam servindo. Me sentei em uma mesa que não tinha quase ninguém e comecei a comer em silêncio.
— Oi, Paloma. — Ouvi uma voz masculina me chamando à frente.
Quando desviei o olhar do meu prato de sopa. Vi Rafael sentado na minha frente. Sorrindo.
— Oi, Rafael. Tudo bem?
— Sim... — disse ele, tremendo de frio. — Você viu a Vitória?
Gargalhei, ele sempre me perguntava a mesma coisa.
— Ela não veio hoje. Mandei mensagem, mas até agora ela não me respondeu.
— Típico da Vivi — disse ele, ainda tremendo.
— Você não trouxe um casaco? — perguntei.
— Não, Saí correndo de casa. Eu admiro não ter vindo de chinelos!
Gargalhei e ele também.
— Por que não come um pouco de sopa? Ajuda a esquentar — sugeri.
— Não sou porco para comer lavagem. — Ele sorriu, ainda tremendo.
— Então, tudo bem. — Dei de ombros e continuei a tomar minha sopa.
— Depois que você terminar aí, não quer ir para a biblioteca? Lá tem um sofá quentinho.
— Pode ser — respondi.
Terminei minha sopa rapidamente, bebi um pouco de água e fomos para a biblioteca.
Nos sentamos no sofá e Rafael se cobriu com uma manta que servia como capa para o sofá. Me sentei e me acomodei entre as almofadas.
— Então, me fale sobre você — disse Rafael.
— Ah, eu não tenho nada de emocionante, sou apenas uma menina normal. Tenho dezesseis anos, estou no primeiro ano e provavelmente tudo que tenho para falar sobre mim, Vitória já deve ter contado.
— Ela me disse que vocês são melhores amigas, que você mora no mesmo bairro que ela, em uma casa que foi uma herança de uma tia falecida, que você gosta de livros e que não fala se não falarem antes com você.
— Sem dúvida, um resumo perfeito — admiti.
Rafael deu de ombros.
— Agora é a sua vez — falei.
— Do quê?
— Falar sobre você.
— Bem. — Fez uma pausa e sorriu. — Como você já sabe eu me chamo Rafael. Tenho dezessete anos, estou no segundo ano e moro em uma fazenda com meus pais e dois irmãos. Eu cuido da roça e dos animais, o que requer muito esforço. Por isso eu tenho esse porte másculo maravilhoso — disse sorrindo convencido.
— Ok, entendi. — Sorri.
Rafael sorriu e se cobriu melhor com a manta.
— Você é legal — disse ele. — Vitória sempre soube escolher bem suas amizades.
— Ela gosta muito de você.
— Eu sei — disse simplesmente.
— Você não entendeu, ela gosta mesmo de você — afirmei de um modo que ele entendesse o que eu estava tentando dizer.
— Eu também gosto muito dela.
O que Rafael tinha de bonito tinha de dormento. Bati a palma da mão na testa e ele sorriu como uma criança.
Eu entendi o que Vitória tinha que passar.
— Vou dar uma olhada nos livros — falei.
— Vai lá — disse Rafael, pegando as almofadas e se acomodando no sofá com elas.
Sai andando e olhando para as estantes de livros. Peguei um exemplar de O Morro dos Ventos Uivantes. Eu já havia ouvido falar deste livro tantas vezes em tantos filmes. Que decidi dar uma chance para ele.
— Gosta de romances?
Ouvi alguém dizer atrás de mim. Surpresa, me virei e dei de cara com Kety. Ela sorria e olhava nos meus olhos. Por alguns segundos me esqueci como era respirar. Até que finalmente consegui falar.
— Sim — respondi nervosa. — São meus livros favoritos.
Kety sorriu e olhou para a capa do livro.
— O Morro dos Ventos Uivantes — disse pensativa. — Já li e confesso que me deu muita raiva, se trata de um amor impedido.
— Como assim?
— Os protagonistas são impedidos de ficarem juntos, ué! — gargalhou. — Tudo por causa da sociedade e um pouco de ganância também.
— É um bom livro? — perguntei.
— É um clássico, é meio óbvio que é bom. Eu particularmente gostei bastante.
— Então também vou ler — disse sorrindo e olhando para o livro. Principalmente para ter um motivo para não olhar nos olhos dela.
— Tenho certeza que vai gostar muito. E quando terminar podemos falar sobre ele. O que acha?
— Por mim tudo bem.
— Está bem, eu vou cobrar em — disse sorrindo e se retirou.
Fiquei olhando enquanto ela se unia aos seus amigos, dois garotos e uma garota de cabelos platinados, que não eram da nossa turma. Kety me olhava enquanto conversava com elas. E eu para parar de sentir o que aquele olhar me fazia sentir, me dirigi até a mesa da bibliotecária e retirei o livro.
Voltei para o sofá e me sentei ao lado de Rafael.
— O que você vai ler agora? — perguntou ele.
Levantei o livro e mostrei a capa.
— Ah tá, pensei que fosse a Bíblia. Olha a grossura disso. Como você tem paciência?
— É a força do hábito — respondi. — Você deveria tentar.
— Não — disse indiferente. — Tenho mais o que fazer.
Dei de ombros e comecei a ler. Só desviei os olhos do livro quando ouvi novamente a voz de Kety. Ela estava olhando as estantes de livros na minha frente e suas amigas a acompanhavam.
Fiquei olhando, por um bom tempo, Kety estava distraída e nem percebeu.
— Você conhece a Kety? — perguntou Rafael, me dando um susto.
— Conheci hoje, ela é minha colega — respondi.
— Ela é lésbica, sabia? — resmungou.
— O quê? — indaguei.
— Você sabe, sapata, lésbica, gosta de garotas. Eu queria ficar com ela uma vez e saber o que ela me disse?
— O que ela disse?
— Que da fruta que eu gosto ela come até o caroço — disse indignado.
Não pude conter uma gargalhada alta que fez com que todos olhassem para mim. E mesmo assim, não consegui parar de rir.
— Para de rir, bobalhona. Não teve graça — resmungou Rafael.
— Teve sim — afirmei.
— Está bem. Foi meio engraçado, mas foi um fora cruel. Eu fiquei bem magoado aquela semana.
— Coitadinho — disse, acariciando os cabelos dele, que eram mais macios que os meus.
Voltei a olhar para frente. Kety me olhava, só que dessa vez não era como antes. Era como se ela pensasse que eu tinha algo com o Rafael. Eu sentia que deveria dizer que éramos apenas amigos, mas por outro lado, nós duas não tínhamos intimidade para eu chegar explicando minha vida.
Quando o intervalo acabou e eu voltei para a sala de aula, Kety ainda estava sentada ao meu lado. Só que diferente do começo da aula, ela não falava comigo, sequer me olhava, era como se eu tivesse feito algo de errado para ela. Mesmo não tendo feito nada.
Quando cheguei em casa, almocei pensando no desprezo dela, e a tarde toda também. Eu sentia que deveria falar com ela e deixar tudo claro, mas por que eu faria isso? Nós mal nos conhecíamos e se ela teve algum tipo de ciúmes de mim ou mesmo do Rafael durante aquele momento. Aquilo não era problema meu. Se Kety não quisesse ser minha amiga, eu não poderia fazer nada. Na verdade eu só queria entender algo. O por que do olhar dela ter mexido tanto comigo? Era como se eu já tivesse visto aqueles olhos verdes em algum lugar antes, só que eu não sabia explicar de onde.
Na noite de sexta-feira para sábado, tive novamente um sonho vívido e igualmente estranho.
Eu estava em uma pequena casa escura, as paredes pareciam ser de madeira e eu sentia que tinha que me esconder de algo que estivesse do lado de fora. Olhei por uma pequena janela e uma linda floresta cercava a cabana.
— Acho melhor sairmos logo daqui. — Ouvi uma voz, que parecia ser masculina pronunciar estas palavras.
— Você pode ter razão — Me ouvi pronunciando palavras que nem eu mesma sabia porquê.
— Eu não suportaria perder você — disse ele.
Então desviei meu olhar da janela e olhei para o homem que estava sentado ao meu lado.
Ele estava vestindo pelo que parecia ser uma farda de soldado, mas não era como os de hoje, era como os soldados antigos. Porém, sua farda estava suja e rasgada. Mesmo assim, ele sorria. Eu não conseguia ver muito bem seu rosto, mas via que era bonito. Seus cabelos castanhos e barba estavam por fazer e sua expressão estava cansada. Mas mesmo assim ele sorria. Senti um imenso aperto no meu peito, não era dor, era um sentimento forte. Foi quando eu falei involuntariamente, como se não fosse eu mesma naquele momento.
— Eu amo você.
Ele sorriu mais uma vez e eu acordei em súbito.
Acordei confusa, pois normalmente eu sequer me lembrava dos meus sonhos quando acordava porque sabia que tantas cenas confusas e sem sentido nem eram dignas de serem levadas a sério. Para ser sincera, somente alguns sonhos eu era capaz de recordar e estes em questão eram vívidos e normalmente me faziam pensar o dia todo, assim como o que havia acabado de ter.
Era sábado de manhã, por volta das 7:16, eu poderia estar dormindo, mas não. Eu queria saber mais daquele sonho, lamentei ter acordado e não consegui saber o que aconteceu com o homem que eu disse que amava. Sabia que dormir novamente não resolveria o problema e rolar na cama estava me deixando mal humorada.
Então peguei o celular, e vi que Vitória havia respondido as mensagens que havia mandando sexta-feira à tarde, já que pela manhã ela não havia me respondido.
Ela me disse que não tinha me respondido, porque estava no consultório com a mãe e que desliga os dados do celular quando está lá.
Pelo visto, Vitória gostava mesmo do trabalho de sua mãe.
Pensei em falar que havia passado o recreio com Rafael, mas pensei que seria algo desnecessário, que poderia causar um pouco de ciúmes e desconfiança na única amiga que tinha. Se até mesmo uma garota que eu mal conhecia ficou enciumada, imagina Vitória.
Já que não queria falar sobre algo que poderia comprometer nossa amizade, contei sobre meu sonho.
Não demorou muito para Vitória me responder. O que me surpreendeu, ela estar acordada naquela hora da manhã em um sábado.
“Paloma do céu! Isso só pode ser uma lembrança de outra vida!”
Lá vem ela com essa de novo. Pensei.
“Como assim?” Enviei.
“Deixa que eu te conto mais tarde, quando eu chegar na sua casa. Você não esqueceu, né?”
Ainda era tão cedo que eu realmente havia me esquecido que sábado ela viria me visitar.
“Claro que não esqueci. Que horas você chega aqui?”
“As três horas.”
“Vou ficar esperando. Beijos.” Enviei.
Quando me dei conta que não havia contado sobre a visita de Vitória para a minha mãe. Não que eu tivesse medo de receber um não. Muito pelo contrário, minha mãe ficaria feliz por saber que eu havia feito uma amiga. Por outro lado, minha casa estava uma bagunça e minha mãe era muito neurótica em relação ao que os outros pensavam.
— Mãe. — Cheguei na cozinha e a encontrei na mesa, bebendo café tranquilamente enquanto olhava pela janela.
— O que foi? — perguntou.
— Eu esqueci de te contar — hesitei. — Sabe aquela minha amiga que mora aqui perto, a Vitória, lembra?
— O que tem?
— Nós combinamos dela vir aqui... hoje. Tudo bem?
Pensei que levaria uma bronca. Porém, o contrário aconteceu. Minha mãe sorriu.
— Claro, vai ser um prazer recebê-la aqui em casa. E que bom que você está se enturmando, filha.
— Nem me fale. — Sorri discretamente. — Até mesmo eu me surpreendi.
— Isso é um bom sinal — comentou, bebendo um gole de café. — Estamos no lugar certo agora.
Me sentei ao lado da minha mãe e tomamos café juntas. Um tempo depois Amanda acordou. Apareceu na cozinha toda descabelada e sonolenta.
— Estou com fome — disse Amanda, passando a mão nos olhos.
— E quando não está? — falei.
Amanda me mostrou a língua e foi para o banheiro. Minha mãe sorriu e me mandou fazer uma torrada para a nanica esfomeada.
Depois do almoço, lavei a louça o mais rápido possível. Ainda eram uma e meia, mas mesmo assim me sentei na varanda e fiquei esperando por Vitória.
Fiquei lendo o Morro dos Ventos Uivantes enquanto ela não chegava. Enquanto lia percebi que Kety estava certa, O decorrer da história dava um pouco de raiva, pois os personagens eram rudes e mau educados, mas mesmo assim eu torcia que eles ficassem juntos, pois eles eram iguais ambos tinham a personalidade igualmente forte e só sabiam brigar. Na verdade, só a narradora me parecia ser uma pessoa sensata. O restante me dava nos nervos. Mas eu não podia negar, era um livro muito bom.
Apenas olhar e folhear aquele livro, me lembrava de Kety. Do modo como tudo parou quando a vi pela primeira vez, esqueci como era respirar quando ela me surpreendeu na biblioteca. “Ela é lésbica, sabia?” Lembrei das palavras de Rafael. O que não me fez pensar em me afastar dela, muito pelo contrário, Kety se mostrou tão legal quando nos conhecemos e na biblioteca disse que me cobraria a leitura do livro. E então, do nada, ela não fala mais comigo. Queria apenas entender o que eu tinha feito de errado.
Na verdade, nem sabia porque estava me preocupando com aquilo. Eu mal conhecia aquela garota, a amizade dela não significava tudo para mim. Não deveria significar.
Continuei lendo por mais um tempo, até que ouvi um som vindo do portão de casa. Levantei meus olhos do livro e vi Vitória de pé e ao seu lado a bicicleta que havia acabado de descer.
Corri para abrir o portão para ela e minha mãe saiu para cumprimenta-la.
— Oi, amiga. Temos muito o que conversar — disse Vitória, empurrando a bicicleta para dentro.
— Eu sei — concordei enquanto fechava o portão.
— Oi, então você é a Vitória? — disse minha mãe indo cumprimenta-la com um beijo no rosto. — Que bonita que você é.
— Obrigada — disse Vitória.
— Você quer um café? — ofereceu Marta.
— Claro — aceitou Vitória.
Marta se retirou para a cozinha para preparar o café, enquanto Vitória e eu nos sentamos nas cadeiras da varanda.
— E então, como foi passar um dia sem mim? — indagou Vitória, ajeitando-se na cadeira.
— Foi estranho — admiti. — Só não fiquei sozinha porque Rafael veio até mim. Perguntando sobre você, claro.
— Ele me ama, só não admite — disse sorrindo satisfeita.
— Eu percebi. — Gargalhei.
Minha mãe chegou e nos entregou as xícaras de café.
— Podem ficar à vontade, vou ficar lá dentro — disse Marta, sorrindo gentilmente e se retirou.
— Ela vai ficar ouvindo nossa conversa — falei em voz baixa.
— Também pensei nisso — disse Vitória.
— O que você acha de dar uma volta no sítio depois de tomarmos o café? — sugeri.
— Pode ser, aqui me parece ser bem bonito — suspirou ela.
Foi quando me lembrei que seria a minha primeira volta pelas terras do sítio. Amanda adorava fugir para lá, e dizia que era muito bonito. Então seria uma surpresa para nós duas.
Bebemos o café e saímos andando. Não avisei Marta, pois tinha certeza que ela havia ouvido tudo.
Vitória e eu nos surpreendemos com a vista. Amanda tinha razão, aquele lugar era lindo. A grama possuía um tom verde vívido, que fazia contraste com pequenas flores silvestres. O campo aberto era emoldurado por árvores na maioria frutíferas ou de largos galhos. Imaginei os antigos moradores, a tia Lúcia na infância, correndo por aquele campo, com seus cabelos castanhos esvoaçantes como a barra do seu vestido. Com certeza amava aquele lugar, como eu amaria.
— Que lugar lindo! — disse Vitória. — Essa grama é daquelas boas para sentar, não dá coceira. Por que não me disse que morava no paraíso, amiga?
Simplesmente dei de ombros e me sentei na grama. Vitória estava certa, era como sentar em um tapete. Era uma sensação muito boa, talvez fosse o ar puro e a brisa fresca.
Vitória se sentou na minha frente e sorriu.
— Então — disse finalmente. — Me conte mais sobre a sexta-feira sem Vitória.
— Você quer saber sobre a aula ou sobre o Rafael?
— Quero saber sobre você. Sei lá, vejo algo diferente em seus olhos.
— É que não estou usando rímel — afirmei.
— Não é isso, boba — disse aos risos. — Você está diferente, é como se estivesse no mundo da lua. Tem a ver com alguém.
Pensei que ela pudesse estar insinuando que eu sentia algo por Rafael, ele era lindo, isso eu não podia negar. Mas depois que Vitória admitiu que ele era praticamente o amor da sua vida, passei a enxergá-lo de uma maneira diferente, sabia que entre nós só existiria amizade e afinal, ele me tratava só como uma amiga.
— A única coisa que me deixou pensativa foi o meu sonho de hoje, e a única pessoa foi a Kety.
— Ah, você a conheceu — disse Vitória, parecendo aliviada. — Ela falou com você?
— Sim.
— Que estranho, normalmente ela não fala com as pessoas, principalmente as novatas. Ela vive em seu círculo recluso de amigos.
— É, eu achei isso estranho — comentei. — Quando ela falou comigo pela primeira vez foi tão simpática, chegou na sala, sorriu, foi super simpática. Depois no recreio nos encontramos na biblioteca e a gente conversou sobre O Morro dos Ventos Uivantes. E então, quando voltamos para a sala, do nada ela não falou mais comigo, ficou com a cara fechada. Não sei o que aconteceu.
— Você estava com o Rafael, né?
— Sim, mas o que isso tem a ver?
— A Ketlyn odeia ele. Digamos que seja uma briga antiga. Na quinta série, nós estudávamos todos juntos e o Rafael era louco por ela. Eu a odiava por isso, ela era a menina mais bonita e eu uma magricela descabelada. Enfim, Rafael vivia dando em cima dela, e a Kety só o ignorava. Até que chegou um dia que ele foi até a mesa dela e a pediu em namoro. E digamos que ela falou algo que ninguém esperava. — Vitória arregalou os olhos.
— Eu sei, o Rafael me falou sobre isso. Disse também que ficou bem mal. Só não imaginei que vocês fossem crianças na época.
— Ele te contou o que fez depois?
— Não.
— Rafael é a pessoa mais vingativa que eu conheço. Acho que é o único defeito dele.
— Meu Deus! O que ele fez?
— Uma coisa horrível — disse ela seriamente. — Eu não gostava dela, mas mesmo assim achei muito cruel. Ele fez questão de contar para cada menino da escola que a Kety gostava de meninas. Então em um dia todos eles se juntaram e foram para cima dela no recreio. Foi horrível, eles a humilharam na frente de todo mundo. Não gosto nem de me lembrar. Quando descobri que foi tudo culpa do Rafael, passei o resto do ano sem falar com ele.
— Nossa! Isso deve ter sido bem traumatizante, eu diria — falei desconcertada.
Fiquei imaginando a pobre Kety, uma linda menina, que por ser diferente teve que passar por aquilo. Tudo porque disse um não para um garoto idiota.
— Kety mudou muito depois daquele dia, coitadinha. Nós até ficamos amigas na época, porque eu fiquei do lado dela. Eu também já sofri muito preconceito e meio que eu senti a dor dela na época. Por isso hoje em dia nós ainda conversamos às vezes.
— Vocês duas são mulheres fortes, disso não tenho dúvidas.
— A dor nos torna mais fortes — Vitória afirmou.
— Então ela parou de falar comigo por que me viu com o Rafael? — pensei em voz alta.
— Sobre isso pode ficar tranquila. Eu falo com ela. Se ela fala comigo que vive pendurada no pescoço dele, Kety fala com você também.
— Não sei... tenho vergonha — admiti.
— Por que? Por acaso você está gostando dela? — perguntou sorrindo.
— Não — respondi envergonhada e engoli em seco. — Só não quero que haja um mau entendido.
— Hum, ok — ironizou. — Mas se você também gostar de meninas pode me contar. De verdade, tudo bem, isso não é algo que deva se envergonhar. Nós somos amigas, sempre vou ficar do seu lado.
— Eu não sou lésbica — falei seriamente.
— Tá bom, não está mais aqui quem falou. — Vitória ergueu seus braços como se estivesse se rendendo e em seguida sorriu.
— Mas fico feliz por ser tão legal comigo — falei.
— Obrigada. — Vitória disse jogando seus cabelos para trás como se eu tivesse os elogiado. — Agora conte sobre seu sonho. Vamos ver como posso ajudar.
— Bem, ele foi esquisito. Foi tão real que nem parecia um sonho.
— Porque não era um sonho, era uma lembrança.
— Sei lá, não acredito muito nessas coisas. Foi um sonho lúcido, isso é normal. Eu acho.
— Era um soldado, certo? — perguntou pensativa. — Você conseguiu ver o rosto dele?
— Não. Eu me sentia nervosa, então não olhava fixamente para ele. Parecia que estávamos nos escondendo de algo.
— É uma pena que você não tenha olhado nos olhos, pois isso pode revelar muito. Mas enfim, isso é algo que pode ser mais bem resolvido com uma sessão de regressão. Assim você poderia ver mais daquela vida e de outras.
— Você está querendo mesmo me usar de cobaia, né?
— Ah, por favor. Você não vai se arrepender — implorou ela.
— Não é melhor sua mãe fazer?
— Se você tiver trezentos reais para pagar por hora? — disse fazendo um biquinho enquanto olhava para as unhas pintadas de vermelho.
— Ok, já que você insiste, eu aceito. Porém não agora. Eu acabei de chegar na cidade, quero me entender e adaptar aqui. E sinto que não estou pronta para conhecer minhas vidas passadas. Ainda não — admiti.
— Como você quiser — disse Vitória, um pouco decepcionada, mas ainda sorrindo. — Vai por mim, será uma das melhores experiências da sua vida.
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