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A Curandeira Do Jardim - Lovely Flowers

Prólogo

^^^Londres, Inglaterra - 1806 [1]^^^

—Está completamente insano, Arthur! — Seguindo-o pelos corredores do quartel-general, Desmond insistia em fazê-lo reconsiderar sua decisão.

Poderia estar realmente insano. Meses atrás participara da maior batalha de sua vida e, em poucos minutos, deixaria para trás seu cargo, seu respeito e uma possível nova patente que o faria o mais novo em sua linhagem a tornar-se Almirante. Se persistisse, Arthur Montague marcaria a história.

— Não irei reconsiderar, Desmond. — Irritado pela perseguição, Arthur virou-se, encarando o amigo com desdém — Já chega dessa discussão sem sentido.

— Então agora o que? — Desmond gesticulou loucamente em movimentos sem o mínimo sentido — Bailes e festas? Vai sentar em uma cadeira tornar-se um verdadeiro vegetal? Arthur. Não. Foi. Sua. Culpa.

— Foi minha ordem! — Mais do que deveria, seu tom cresceu. A voz de Arthur preencheu o corredor, atraindo atenção dos poucos fardados para a discussão — Minha análise, minha decisão e minha palavra final. Dezenas morreram, inclusive...

— Centenas sobreviveram! — Sem intimidar-se pela carranca de Arthur, Desmond subiu o tom enquanto aproximava-se até poder repousar a mão sobre o ombro do amigo — Matthew cumpriu o dever dele! England expects that every man will do his duty.[2] Você se lembra? Arthur, todos nós pisamos naquele convés dispostos a morrer por nosso país. Todos conheciam os riscos e todos subordinados a você aceitaram isso. Que droga, se você tivesse morrido culparia o almirante?

— Não para sua pergunta. Ainda assim, não importa a vitória, Desmond. Não importa quantos sobreviveram! Independentemente de ganhar, pessoas morreram. — Por um breve momento, Arthur perdeu o resto de compostura sendo forçado a apoiar-se sobre a parede cinzenta. — Eu vi um amigo de infância ser baleado na minha frente, tudo sem eu poder fazer nada. Portanto, sim! Bailes e festas, Desmond! Bailes e festas! E, se deseja me chamar de covarde por isso, que seja! — Arthur tomou um tempo para respirar. Demorou, mas enfim ele continuou sua fala, baixa e parecendo temer que alguém o escutasse. — Cansei de mortes em minhas mãos. Simplesmente, cansei de lutar se tudo que vejo é sangue.

Desmond deixou suas sobrancelhas caírem em tristeza enquanto forçava as palavras a retornarem para dentro de si.

— Espero que não se arrependa, meu amigo. — Desmond desejava discutir, desejava gritar, mas convenceu-se de que não adiantaria. Se não podia impedir Arthur, o apoiaria à partir daquele momento.

Quem sabe um dia Arthur realmente se arrependesse da sua decisão, mas, até lá, não conseguia imaginar uma forma diferente de aliviar a sua culpa além de simplesmente parar. Pelas mortes que não pode evitar e pelas que causou, ele não merecia o mérito. O pensamento de que Arthur simplesmente não merecia o direito de viver cravou-se na parte mais profunda da sua alma.

[1] - Um ano após a Batalha de Trafalgar, confronto da terceira coligação no qual a marinha inglesa travou confronto contra a esquadra espanhola e francesa. É o conflito crucial que impediu Napoleão Bonaparte de invadir a Inglaterra.

[2] - Tradução: A Inglaterra espera que cada homem cumpra seu dever.

- Mensagem emitida pelo Almirante Horatio Nelson pouco tempo antes da batalha começar.

Capítulo 1 | Um estranho muito irritante

^^^Londres, Inglaterra - 1809^^^

Anastácia o mataria. Ela não sabia como, era difícil decidir; talvez o esfaqueasse; veneno… sempre uma boa opção! Mas ambos não seriam formas muito rápidas? Dependendo do lugar ou do veneno… De todo o modo, a forma não importava, esta poderia ser decidida minutos antes. Deus! Como ela mataria lentamente aquele aristocrata intrometido! Anastácia teria o prazer de ver o brilho desaparecer daqueles perfeitos olhos verdes, que, a propósito, ela estava cansada de procurar com o que compará-los. Todos os pensamentos que corriam por sua mente sobre aquela cor única eram clichês demais.

Esmeraldas? Não fazia sentido, eram mais claros e brilhantes que pedras preciosas. Pinturas? Talvez um campo de grama molhada pelo orvalho. Era complexo buscar as palavras. Ela se sentia presa em um ridículo conto de fadas; a diferença é que ela não era uma princesa. Anastácia era uma curandeira, uma mulher dedicada a salvar vidas.

Parada na frente do boticário administrado por sua irmã, ela observou a carruagem desaparecer pela avenida levando para longe o foco do seu ódio.

Anastácia bufou. Após uma sequência de passos longos e fortes, a mulher empurrou com força a porta de madeira e o tilintar do sino ecoou, irritando-a mais ainda.

Anastácia respirou profundamente, seu olfato foi tomado pelo cheiro doce das ervas medicinais misturada à fragrância das flores recém-colhidas. Ela correu seu olhar pelos armários, mirando através das portas de vidro: os pequenos potes cuidadosamente vedados eram etiquetados. Óleos essenciais, fragrâncias, medicamentos e misturas estranhas e desconhecidas.

Não demorou para a luz alaranjada do pôr do sol iluminar a madeira escura do balcão ao centro da sala, os raios solares guiaram o olhar de Anastácia para as flores.

Sons de metal, vidro e alguns indecifráveis tomaram o ambiente. Da sala ao lado, o laboratório da sua irmã, uma voz feminina gritou: 

— Estou indo!

Anastacia aproximou-se do balcão e observou atentamente as flores sem conseguir identificá-las.

— Sou eu!

A porta fora do campo de visão de Anastácia, escondida pelas prateleiras, rangeu ao ser aberta. Por ela, secando suas mãos no tecido azul-claro da saia, a dona da loja entrou na sala principal.

— Ana, você sempre abre as portas dessa forma?

— Desculpe. — Anastácia juntou seus lábios em um bico.

Anastácia tentava, mas nunca discutia com sua irmã. Ela sempre recuava.  Os poucos minutos de diferença entre o seu nascimento e o de Natasha haviam sido suficientes para sua gêmea ganhar as características de irmã mais velha.

Apesar das personalidades opostas, de fato elas eram idênticas: suas expressões faciais, o nariz pontiagudo e empinado, a boca carnuda e, não menos importante, os olhos azuis. Trocar olhares com Natasha se assemelhava a encarar o turbulento Mar do Norte com suas águas frias, tempestuosas e perigosas.

Anastácia se perguntava se a sensação era a mesma para Natasha, mas ela sabia que a resposta era não. A cicatriz de queimadura que consumia parte da face direita da mais velha provava isso: alguém que cruzou o inferno de fogo, não temia a água.

Observando o olhar perdido de Anastácia, Natasha andou até o balcão. Cuidadosamente evitando tocar as finas pétalas brancas enquanto temia os espinhos, ela pegou as flores pelo caule.

— Apenas não faça mais. — As estranhas plantas foram colocadas em um pequeno vaso. — Por que está estressada?

Anastácia descansou sua cabeça sobre a superfície de madeira. O cabelo longo se espalhou como um tapete.

— O que aconteceu? — O tom foi ríspido e direto, exigindo uma resposta clara.

Natasha perdeu seu foco. Ela deixou o arranjo mal arrumado de lado, destinando seu olhar e atenção para a irmã.

— Ele aconteceu.

A mais velha não soube o que esperava ansiosamente. Sua irmã mais nova não sabia ser direta. Mistérios e mais mistérios, sempre divagando à toa.

— Ana, seja clara!

Anastácia grunhiu, organizando seus pensamentos, e retornando-os para o início da sua tarde.

Horas atrás, após almoçar calmamente próximo ao hospital, seu estômago estava cheio demais. Ela reconheceu que exagerar na comida era um erro recorrente. De certa forma, sempre comia como se aquela fosse sua última refeição. A jovem tinha medo da fome que durante anos da sua vida a perseguiu. Anos depois, Anastácia tinha dinheiro, não precisava mais temer, mas era difícil controlar a si mesma. Tais episódios tornavam recorrentes as caminhadas pós refeição e foi exatamente o que Anastácia fez.

Observando atentamente as linhas que separavam os blocos da calçada, ela estava decidida a não tocá-las. Durante um longo trajeto ela evitou-as, até que aquilo aconteceu. Então, a ponta de sua bota tocou a linha enquanto observava a cena se desenrolar na frente de seus olhos.

Na entrada de um dos muitos becos, um homem desconhecido e maltrapilho escorava-se na parede de tijolos vermelhos e desgastados da loja de penhores. Recém saída da loja, uma azarada senhora cruzou o caminho do bandido. Anastacia reconheceu-a no mesmo instante. A mulher era uma antiga cliente da sua irmã. Certo dia, ela se lembrava de entregar a ornada embalagem de pó de arroz. Anastácia não lembrava o nome da cliente, mas as chagas metafóricas eram difíceis de esquecer. A mulher era sozinha, sofria para criar seus dois filhos pequenos. Provavelmente, o que penhorou era o sustento da sua família,  o dinheiro para o mês.

Observando o bandido lutar ferozmente contra a senhora pela sacola, Anastacia correu.

A jovem cruzou para o outro lado da rua, ignorando completamente a reclamação do cocheiro forçado a parar. Ao perceber Anastácia se aproximar, o ladrão arregalou os olhos escuros e sujos. Com força, um último puxão fez a senhora cair no chão irregular, grunhindo em dor ao ralhar parte de seu rosto e mãos. Anastácia abaixou-se sobre seu joelho e segurando-a pelo ombro ajudou a mulher a sentar-se escorada na parede. Rapidamente, a curandeira conferiu as feridas; eram superficiais, mas dolorosas.

Observando as lágrimas de desespero escorrerem pelo rosto da mulher, Anastácia não precisou pensar para se aventurar nos becos da capital.

Os corredores eram estreitos e confusos, era difícil se encontrar e garantido perder-se, um movimento errado levaria desavisados ao submundo. Ela se sentia em um labirinto e como ela os odiava!

Anastácia seguiu os pequenos rastros: garrafas quebradas, lixos fora do lugar e pegadas masculinas na terra acumulada. Perseguição era algo que estava acostumada, fazia parte do seu dia-a-dia, bem como fugir e se esconder fazia parte do cotidiano de um rato covarde. No fim dos rastros, Anastácia se viu presa entre três caminhos: direita, esquerda ou atrás. Para seu azar, os passos nas suas costas indicaram-lhe o caminho correto. No entanto, era tarde demais para evitar se ferir.

Capítulo 2 | Um estranho muito irritante - parte II

Anastácia se virou, abruptamente cobrindo seu rosto com os antebraços. A pancada veio forte, fazendo-a rolar sobre a terra solta e morder os lábios pela dor intensa.

— Covarde! — A curandeira murmurou cerrando os dentes.

O homem encarou-a. As feições desproporcionais, sujas e não-humanas lembraram a jovem de um animal de circo. O circo abandonado pelo capeta. Comparar a aparência do verme em sua frente... Oh não, ela deveria parar de pensar, estava ofendendo o verme. O pedaço de madeira, agora quebrado, foi atirado em direção a Anastácia.

A curandeira impulsionou seu corpo para frente em uma cambalhota, desviando do objeto e levantando-se com o impulso. O homem não recuou, ele correu para cima. Anastácia odiava admitir, mas era difícil lidar com o físico do brutamontes, principalmente quando a mão encardida de terra e barro circundou seu pescoço, pressionando-a contra a parede do beco.

Buscando alívio do aperto, a jovem segurou-se com uma mão, aplicando sua força sobre pulso descoberto do homem, a outra desceu até a faca presa abaixo das camadas do vestido amarelo. Ela faria. Anastácia cortaria prazerosamente a carótida daquele infeliz e assistiria o sangue jorrar rapidamente. A poça do líquido vermelho se misturaria com a terra formando uma espécie de argila vermelha. A cena seria bela. No entanto, ela não podia, precisava se controlar, tarefa difícil esta enquanto sentia o ar não chegar a seus pulmões.

Ela pensou nas opções, era fácil escapar, poderia fazê-lo graciosamente. Porém, para seu azar, em um piscar de olhos seu pescoço estava livre.

Anastácia observou o homem nojento ser lançado como um saco de batatas no chão. Antes que pudesse se mover, o braço usado para sufocá-la estava torcido sobre as costas do homem enquanto o outro era segurado acima da cabeça, a palma aberta cravada no chão.

O agressor estava completamente imobilizado, seu rosto desprezível pressionado sobre o solo. Sob suas costas, dificultando a respiração, estava o joelho do """salvador""" de Anastácia.

Imediatamente, a jovem deslizou até o chão, fingindo uma pesada crise de tosses. Lágrimas se formaram em seus olhos enquanto assumia o papel de dama frágil e assustada. Suas roupas e cabelo eram uma bagunça, quem quer que fosse o homem que imobilizava o covarde, não faria perguntas.

— Senhorita, está bem?

Ou talvez fizesse, mas essa pergunta era clássica, fácil de responder. Anastácia levantou seu olhar, encarando-o. Ele vestia um conjunto verde-escuro, não haviam detalhes chamativos, apenas a corrente dourada do relógio de bolso se destacava em meio as peças monótonas. Os olhos verdes miravam Anastácia, o cabelo escuro contrastava com a pele clara, poucas mechas teimosas caiam sobre a testa do homem. A curandeira não podia saber ao certo a cor dos fios, estava escuro demais, ela julgou que estariam em algum lugar entre castanho-escuro e preto.

E, estava completamente errada, eram vinho. No minuto em que um mísero resquício de luz entrou em contato os fios se mostraram vermelhos, a cada segundo tornando-se mais intensos.

— Sim. — Anastácia levantou-se, ela bateu as camadas do vestido e a poeira se levantou no ar. Então, a jovem apontou para a sacola a poucos metros deles. — Isso, ele roubou de uma amiga.

O homem suspirou, ignorando os infinitos xingamentos do ladrão.

Os lábios de Anastácia se curvaram em um sorriso vitorioso enquanto observava o ladrão desistir de escapar. Ela andou em direção à sacola, fazendo questão de "por acidente" pisar sobre a mão do bandido.

— Desculpa! Não era a intenção. — Anastácia carregou sua voz com falsa culpa.

— Não? — O ruivo destinou um olhar confuso para ela, uma de suas sobrancelhas elevadas.

A curandeira riu baixo, o som era doce e agradável e o único resquício de alegria naquele beco. Ela abaixou-se, tomando a sacola para si; tentou mover seus lábios para dizer algo, mas novos passos chamaram sua atenção. Enfim, a guarda da cidade se aproximava. Dois soldados mal encarados estavam poucos metros de distância de ambos.

O ruivo levantou-se, junto do ladrão.

— Façam seus trabalhos decentemente. — Com um empurrão, o bandido foi jogado aos soldados. — Não deixem cidadãos fazerem seu serviço.

Sem palavras de defesa, os homens arrastaram o desgrenhado - os apelidos para o bandido sem ofender animais estavam se esgotando na mente de Anastácia - pelo beco.

O bandido retornou a xingar, fazendo a jovem coçar seu ouvido direito. Irritante.

A atenção de Anastácia retornou a si mesma ao sentir um tecido pesar sobre seu ombro. Com sua mão livre, ela ajustou o casaco, encarando atentamente o ruivo já há passos de distância.

— Seu vestido está rasgado. — Ele parou e, por cima do ombro, encarou a sacola roubada que a jovem segurava. — Pode devolver isso para sua amiga.

— E isso seria gentil da parte dele, não?! — Retornando a conversa com sua irmã, Anastacia bateu contra o balcão.

Natasha, por reflexo, segurou o vaso de flores, impedindo que o vidro se espatifasse no chão.

— Ana, isso foi gentil da parte dele. Que vergonha seria se uma dama andasse por aí com o vestido rasgado! Que sofrer chacota por onde passar!? — Um olhar cortante da mais velha correu para a mais nova. — Até agora o único problema que encontrei foi você querendo cometer um assassinato a luz do dia!

— Irmã! — Anastácia gritou. — Fale baixo!

Após contorcer sua expressão, o olhar de Natasha suavizou, bem como seu tom:

— Por que isso não foi gentil da parte dele?

— Ele insistiu em me trazer até aqui, até aí sem problemas. A não ser o fato dele com toda aquela! Aquela!

— Aquela o que Anastácia! Desaprendeu a falar?

— Aquela pompa! Até ele dizer aquilo com toda aquela pompa! — Anastácia preparou suas cordas vocais, o mais grave e rouco que pode ela entoou: — Se vai salvar algo ou alguém, trate de garantir que não vai precisar envolver terceiros.

Os lábios de Natasha se curvaram em um sorriso suave enquanto lentamente o ar escapava por suas narinas.

— E isso mexeu com seu pequeno ego.

— É evidente que sim! — Anastácia circulou o balcão até chegar ao ponto inicial. — Por isso eu vou fazê-lo engolir essas palavras! Eu não precisava de nenhuma ajuda, ele se intrometeu nos assuntos alheios!

Enfim, Natasha organizou todas as flores no bendito vaso. Se sua irmã decidisse bagunça-lo, como ela jogaria a mais nova na frente da roda de uma carruagem!

— Ao menos sabe o nome dele?

— Isso é uma boa questão! Preciso descobrir.

— Sim, sim! Quando descobrir me fale. — Natasha revirou os olhos e retornou ao seu laboratório tão rápido como o diabo foge da cruz. Irritada, ela bateu a porta atrás de si e gritou, já abafado pela madeira: — Preciso agradecê-lo!

Franzindo o cenho para o vácuo que sua irmã deixou, Anastácia sorriu brincalhona. Propositalmente, ela moveu cada uma das flores, bagunçando o trabalhoso arranjo da mesma forma que bagunçaria a vida daquele belo homem. Ela apenas precisava de um nome e seria como um tornado.

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