Era madrugada, quando a jovem conseguiu se arrastar para fora do quarto onde a deixaram. Não se lembrava de como tinha ido parar lá e sequer onde estava. Seu corpo estava marcado e doía, ao ponto de mal se aguentar de pé.
Conforme descia a escada, tentando se ocultar de qualquer pessoa que estivesse no caminho, as lembranças vinham à sua mente em flashes e a atordoavam. Regina era só uma estudante da faculdade de economia e faltava pouco para se formar.
— Por que fizeram isso comigo?
Questionava-se, pois sempre se manteve quieta e tentando ser invisível. Não foi a festinhas e nem fez amigos, a única com quem conversava era outra jovem como ela, Frida, também dedicada aos estudos e se encontravam na biblioteca.
Sua mãe era doméstica na mansão de um empresário, que custeava seus estudos para mantê-la distante, pois não gostava de intimidade com empregados. Não o conhecia e nem seu filho, só a distância, pois frequenta a mesma faculdade, mas sempre ficou distante dele.
Quando chegou ao térreo e estava para abrir a porta no final da escada, encontrou a zeladora, que a olhou aterrorizada.
— O que fizeram com você? — perguntou a mulher, horrorizada.
— Desculpe, senhora, não ligue para isso, só me diga onde estou?
— Eles devem ter te dado um boa noite cinderela. Venha comigo, você não pode sair assim.
A mulher, chamada Vanda, era zeladora por mesquinhez, pois o imóvel lhe pertencia e economizava até nos centavos. Não era interessante para ela, verem uma jovem sair naquele estado e quem fez, era seu inquilino e pagava em dia.
Levou-a para o armário de material de limpeza e pediu que esperasse. Voltou com uma toalha limpa e humedecida e disse que se limpasse. Deu-lhe roupas limpas e penteou-lhe os cabelos.
— Pronto, agora você está decente para sair. Cuidado com o que vai dizer por aí, aqueles jovens são ricos e poderosos, podem fazer muito pior com você.
Regina não era burra, só inexperiente e entendeu o que a mulher estava fazendo: livrando a cara dos abusadores. Mas não disse nada, pois não era interessante para ela terminar a faculdade com má fama e um escândalo nas costas.
— Obrigada, senhora, adeus.
Se retirou do prédio agarrada a sua bolsa e pegou um táxi para a quitinete em que morava. Descobriu que estava em um bairro de classe média alta e bem distante de onde morava.
— Você está bem, garota? — perguntou o motorista, ao ver que ela estava ferida.
— Estou bem.
— Quer que eu a leve ao hospital?
— Não precisa, obrigada.
Ele não insistiu e deixou-a no endereço, mas cobrou metade da corrida, pois se condoeu da jovem que ficaria marcada para o resto da vida.
Regina entrou em casa e foi direto para o banheiro, tomou um banho, esfregando tanto o seu corpo, que ficou vermelha e ardida. Sentia que haviam feridas que ardiam mais e viu que eram cortes de navalha. Não eram profundos e nem grandes, mas formavam a letra C.
Saiu do banho, secou-se e passou pomada nas feridas, cobrindo com band aid. Foi escovar os dentes, sentindo sua boca nojenta e só então se olhou no espelho.
— Óh, não! Aquele desgraçado me marcou como gado, por quê?
No meio de sua testa havia uma letra C.
Ela examinou bem a marca e resolveu eliminar o C, completando o corte. Foi à cozinha e pegou a faca mais fina que possuía e voltou ao espelho, pousou a ponta da faca na testa e completou o corte, formando um círculo.
As lágrimas escorreram, assim como o sangue da ferida e ela deixou escorrer, até que parou sozinho e só então, ela limpou a ferida e fez um curativo.
— Você pensa que acabou comigo, Carson, pois está muito enganado. Eu vou me erguer e superar, só para te ver destruído.
Ela tomou um antiinflamatório e analgésico e deitou, precisava descansar. Tantas vezes ouviu falar de estupros na faculdade, mas jamais pensou que seria dopada, sequestrada, agredida e abusada, como foi.
Carson, Gerson e Leo.
Os três playboys da faculdade. Riquinhos, filhinhos de papai, que conseguiam tudo o que queriam, mas por quê quiseram justo ela? Isso não entrava em sua cabeça.
Passou dois dias trancada em casa, com dor e medo de sair, mas não podia perder o final das aulas, lutou muito para chegar até ali, portanto, se arrumou, colocou uma touca que cobria sua testa e saiu. Frida a esperava e a apoiou.
Os três risquinhos pareciam estar esperando por ela e quando a viram, começaram a rir e escarnecer, cercando-a. Mas dessa vez ela estava preparada com um spray de pimenta, que usou imediatamente nos três e Frida a ajudou.
Eles ficaram desnorteados e o que ainda estava em sua frente, levou um chute na barriga e caiu no chão.
— Saiam da minha frente ou seus pais vão receber algumas fotos bem reveladoras.
Ela não esperou e passou correndo, indo para a sua classe e Froda para a dela. Quando entrou, os que já haviam chegado, olharam para ela de forma estranha, mas ela não ligou, comportou-se como sempre, como se fosse invisível. Eles tiveram a pachorra de publicar um foto dela,arcada e desgrenhada, no sote da escola.
Os três rapazes se ajudaram e foram ao banheiro, lavaram-se reclamando da ardência e da irritação que ficou em seus rostos.
— E agora, Carson? — perguntou Leo.
— Não sei, eu pensei que ela iria se encolher feito uma ratinha, com medo.
— O chute que ela me deu, não era de uma ratinha. Tem certeza que foi ela? — questionou Gerson.
— Só pode ter sido. Descobri que ela é a filha da governanta do meu pai, quem mais poderia estar me vigiando?
— De qualquer maneira, ela disse que enviaria fotos para os nossos pais, isso é uma confissão. — disse Leo.
— A faculdade está terminando, não vale mais a pena fazer essas brincadeiras, vamos nos formar e cair fora. — disse Carson, tomando a primeira atitude sensata de sua vida.
Os três saíram do banheiro com os rostos marcados de queimaduras e todos que passavam por eles, cobriam a boca para não escangalhar de rir. Sentiram-se vingados daqueles paspalhos que pensavam poder tudo porque tinham dinheiro.
Entraram na sala e viram a “ratinha”, encolhida em sua cadeira de sempre no fundo da sala e a encararam, mas ela percebendo, se aprumou e mostrou o celular, fazendo-os desviar o olhar.
Os três eram mais velhos, mas eram péssimos em economia e por isso estavam ali, repetindo a matéria na mesma turma que ela, pela terceira vez.
Seis anos depois
Gina chegou à mansão dos Rodrigues na hora marcada. Estacionou seu carro e desceu, sendo recepcionada pelo mordomo.
— Bom dia, senhorita Batista, o senhor Rodrigues a aguarda.
Ela quase respondeu: eu sei. Mas se manteve altiva. Há dois anos foi requisitada pelo empresário, através do banco onde trabalhava, para fazer previsões e criar novos produtos de investimento para a empresa. Essa era sua área e deu certo.
Entrou no escritório e cumprimentou o empresário:
— Bom dia, senhor Rodrigues!
O homem olhou para ela, admirando a linda mulher a sua frente: estatura mediana, esbelta, pele alva e sem manchas, cabelos castanhos, lisos e presos em um coque clássico. Sua maquiagem era suave e o contorno dos olhos, ressaltava a cor caramelo das pupilas.
— Bom dia, Gina. Você está linda, como sempre. Sente-se. — respondeu o homem sem se levantar da poltrona.
— São seus olhos, senhor. — sentou-se ela, à frente dele.
— Sempre modesta, se eu não te conhecesse, acharia difícil acreditar que uma mulher tão linda, também possa ser tão eficiente.
Ela sorriu sonoramente e pareceu melodia aos ouvidos do idoso. Ele tinha os cabelos brancos e seu rosto mostrava os sinais do tempo, mas ainda era agradável de se olhar. Sempre que ele a via, queria ter menos idade e conquistá-la.
— Bem, quanto a isso, não posso opinar, pois não sei de onde os homens tiram a ideia de que mulher bonita, não pode ser inteligente ou vice-versa.
Ele deu um sorrisinho de escárnio, pois ele era um dos que considerava, que mulher não tinha que fazer negócios. Quando o banco lhe enviou Gina, ele não confiou, mas com o tempo, ela mostrou que era mais que eficiente.
— Bem, não foi para traquejos que a chamei aqui. Você, mais uma vez, acertou e os negócios prosperaram absurdamente. No entanto, esses negócios não são conhecidos do meu filho, que é o atual CEO da empresa.
Ela não estava entendendo onde o empresário queria chegar, pois ela não trabalhava para a empresa e sim para ele.
— O que tenho eu a ver com seu filho?
Ele pegou uma pasta de dentro da gaveta da escrivaninha e estendeu para ela.
— Eu sei tudo sobre você.
Ela olhou para ele com o semblante fechado e abriu a pasta, não gostando nada do sorriso pretensioso do velho. Olhou as fotos que mostravam ela de mãos dadas com seu filho, em vários locais, ocasiões e datas diferentes. Leu as informações contidas nas folhas anexas e encarou o homem.
— E?
— Eu tenho uma proposta para lhe fazer.
— Por quê o senhor faria uma proposta para a filha da empregada?
Ele percebeu que não seria tão fácil dobrar aquela mulher forte, decidida e destemida.
— Primeiro, porque fiquei em dívida com sua mãe. Não cuidei dela quando adoeceu, custei a perceber que era grave e ela faleceu.
— Que bom que reconhece isso.
— Não pensei que guardasse tanto rancor.
— Foi só uma constatação. Mas continue, ainda não entendi o que quer.
— Quero que se case com meu filho. — Ele foi direto, surpreendendo-a.
— Impossível! — respondeu ela, expressando sua insatisfação.
— Será pelo bem do seu filho. Eu deixarei todos os produtos que você criou, para ele e você terá segurança e conforto por toda sua vida.
— Não preciso de nada disso, eu tenho o suficiente para nós dois e nada me daria menos prazer do que ter que conviver com o seu filho.
— E se eu entrar com um processo de reconhecimento de paternidade e guarda da criança? Afinal, ele é meu neto.
Gina ficou lívida, apertou as mãos em punho, quase furando as palmas com as unhas. Não acreditava que aquele velho maldito a estava chantageando.
Puxou o ar lentamente, para se acalmar e pensar, não adiantava se exaltar, pois era isso que ele queria, vê-la acuada.
Mesmo que ela cedesse e aceitasse, Carson nunca aceitaria e foi pensando assim, que conseguiu manter a frieza e contestar:
— Por quê você acha que lhe darão a guarda do MEU filho? Carson nunca vai aceitar essa sua proposta, ele não gosta do Jason, até chutou ele uma vez, quando se esbarraram por acaso e você está velho para cuidar de uma criança.
— Não subestime o poder do dinheiro.
— Qual a finalidade dessa chantagem? Se você sabia que Jason era seu neto, por que nunca quis conhecê-lo ou tocou no assunto?
Nestor Rodrigues suspirou e afundou no encosto da poltrona, transparecendo a idade que tinha e Gina viu a verdadeira aparência cansada do homem.
— Estou velho, cansado e doente, Gina. Quero partir, deixando tudo organizado e aquele meu filho não se decide. Você é uma mulher linda, competente, qualquer homem prosperará ao seu lado. Eu mesmo adoraria ser mais novo para casar com você.
— Não é assim que funciona, senhor Rodrigues. Não é como o senhor quer.
— Terá que ser.
— Não, não terá. — levantou-se ela — não tente me manipular, senhor Rodrigues, eu e meu filho não somos massa de manobra.
Ela se virou e saiu e o velho ainda falou:
— Você vai ceder, Gina, de um jeito ou de outro.
Ela saiu e foi em direção ao seu carro, quando um Bentley entrou e parou em frente a casa. Ela sabia quem era e não deu atenção, entrou em seu carro e saiu da propriedade, levando seu dossiê consigo. Não deixaria que levassem seu bem mais precioso.
— Eles vão ver como se quebra uma banca. — seu sorriso de lado dizia tudo.
Carson chegou a casa de seu pai, muito aborrecido. Detestava quando era convocado a comparecer diante do pai, sem nenhum respeito aos seus horários ou compromissos. O pior era ter que ouvir as reclamações do velho.
Ao entrar com o carro, viu aquela mulher elegante e bonita, finamente trajada em um terninho verde água e que sequer olhou para ele. Já havia visto ela em outra ocasião, também saindo da casa de seu pai e não fazia ideia de quem era.
— Bom dia, senhor Carson, seu pai o espera. — disse o mordomo, parado na porta.
— Quem é aquela, Gomes?
— Senhorita Batista.
— E?
— Pergunte ao seu pai, não a conheço.
Ele entrou e seguiu para o escritório, onde foi recebido por seu pai com impaciência.
— Por quê você está sempre atrasado? Perdeu uma grande oportunidade.
O velho planejou tudo nos mínimos detalhes, mas Carson, como sempre, não cooperou.
— O senhor pensa que estou à sua disposição? Eu tenho uma empresa para administrar, o senhor esqueceu como é? Nunca sobra tempo.
— É por saber disso, que estou tentando fazer com que você organize sua vida. De que adianta trabalhar tanto e não ter com quem compartilhar? Você precisa de uma família.
— Então é isso, você arrumou uma esposa para mim?
— Sim, ela estava aqui ainda agora. É uma mulher linda, competente, a mulher ideal para apoiar um grande empresário.
— Isso não é uma esposa, é uma sócia de negócios. — bufou Carson, andando pelo escritório.
— Ela será o que você quiser que ela seja. Pena que eu já seja velho…
Carson olhou para o homem velho sem acreditar que ele estava sendo lascivo.
— Você não acha que já está muito velho para ter esses pensamentos?
— Velho é o tempo, pensamentos eu posso ter, só não consigo fazer o que penso. Mas vou te dizer o que quero: case-se com ela ou te deserdo. Pode ir, você está avisado.
— O quê? O senhor só pode estar senil!
— E tem mais, você terá que conquistá-la, porque parece que ela sente um ódio mortal por você.
Carson fitou o pai, sem saber o que pensar de tudo aquilo, se virou e saiu, não levando a sério a ameaça, voltou para seu escritório no prédio mais alto da cidade e parou em frente a janela de vidro do chão ao teto, contemplando o horizonte, sem ver.
Suas lembranças foram para o fatídico dia em que cometeu o maior erro de sua vida, magoando e ferindo a jovem mais pura que já conheceu. Ele se apaixonou por ela sem ter noção do que sentia e quando seu pai lhe cobrou seu comportamento reprovável na faculdade, ele procurou um bode expiatório e usou isso como desculpa para fazer o que fez.
Só então ele amadureceu. Estava enrolando na faculdade, passando três anos a mais do que todos, para se formar e com isso, levou em sua bagagem, além do diploma, muitos infortúnios e culpas, incluindo tudo de ruim que fez a Regina e nem se desculpou com ela.
Agora seu pai queria que ele se casasse, sem saber o peso da culpa que trazia dentro de si. Depois da formatura, procurou por ela, mas nunca mais a viu. Não fazia ideia se ela se recuperou do trauma e conseguiu seguir em frente, depois de todas as marcas que deixou em seu corpo e sua mente.
— Que loucura que eu fiz, eu jamais me perdoaria se estivesse no lugar dela.
Não demorou muito e recebeu a visita do advogado de seu pai, Hermes Tostes.
— Bom dia, senhor Rodrigues, o senhor Rodrigues senior, me enviou.
— É claro que sim. Diga logo, o que ele aprontou dessa vez?
— Ele refez o testamento e se o senhor não estiver casado com a senhorita Batista em um ano, será deserdado quando ele morrer.
— Aquele velho tratante, por quê a pressa?
— O senhor não sabe, senhor? Ele está muito doente, é o coração.
Carson voltou a olhar pela janela, com as mãos nos bolsos das calças, de costas para o advogado. Como não percebeu que seu pai estava tão doente? Se habituou a combatê-lo e esqueceu que ele era seu pai.
— Tem mais, senhor. Aqui está o dossiê da senhorita Batista, ela tem um filho e a herança irá toda para ele, se o senhor não obedecer.
Carson virou-se e olhou para o advogado com ódio. Que advogado infeliz, pensou, e sua vontade era socar o rosto perfeito do homem.
— Terminou? Saia daqui! — vociferou.
O advogado sorriu e foi cumprir a outra tarefa que lhe foi incubida, solicitar a guarda da criança.
*
Gina também não perdeu tempo, foi direto para o escritório de sua advogada. Sabia que aquele velho muquirana não perdia tempo, ele atirava primeiro e depois ia ver o que era.
Sua advogada e amiga, Frida Constança, a recebeu sorridente, mas quando viu a agitação de Gina, ficou preocupada.
— Sente-de, querida. Quer um copo d'água?
— Sim, obrigada.
Frida lhe deu um copo de água mineral, que tirou do frigobar e esperou ela se acalmar. Gina bebeu a água, quase de uma vez e suspirou, antes de falar:
— Desculpe a agitação, mas recebi uma ameaça e tenho certeza que não é em vão. O velho quer a guarda do Jason.
Frida levantou-se com os dedos massageando a testa, já analisando o caso. Conhecia Gina desde a faculdade, tinham os mesmos objetivos e acompanhou tudo o que a amiga passou.
Foi um dos motivos de se unirem, Frida seguiu a carreira de direito e hoje, era advogada e tinha seu próprio escritório. Gina cuidava de seus investimentos, assim como de vários funcionários públicos e todos eram muito gratos a ela.
— Aqueles desgraçados, deviam ter sido processados naquela época.
— Eu não aguentaria.
— Ainda bem que você me ligou, na época, e conseguimos guardar algumas provas. Hoje, ninguém diz que você ficou com uma marca tão feia na testa.
— Sim, aquelas fotos me ajudaram a me livrar deles e até hoje, não sei por que fizeram o que fizeram.
As emoções de Gina estavam à flor da pele, por mais que fosse forte, nenhuma mulher esquece uma agressão e principalmente, sem propósito. Ela suprimiu tudo dentro de si e quando descobriu que estava grávida, quase se suicidou.
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