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A Cor Do Meu Sangue

A Chegada do Outono (Rice)

As pessoas rodavam e rodavam ao som dos instrumentos altos.

    E cantavam também.

    Era começo do Outono, e a cada mudança de estação era uma festa para homenagear os espíritos mágicos da floresta. De acordo com o nosso povo, eram eles que faziam toda a mudança necessária para que as estações trocassem sem pânico nem defeitos.

     Quando eu era mais nova, acreditava que aqueles espíritos eram deuses.  Agora, acredito apenas que o nosso povo é idiota.

     — Se anime, Rice, não está adorando a festa? — fiz uma careta para Iscos. Ele sabia bem que eu não me afeiçoava com os preparativos, as músicas ou as comidas. O que me fazia pensar que o povo era idiota, era exatamente aquilo que eu mais amava naquelas ocasiões: a felicidade no rosto das pessoas. Ficavam felizes por acreditarem estar fazendo o certo. E se divertiam porque estavam felizes.

     — Eu estou amando tudo, só que Outono não é minha estação favorita.

     — Eu já sei o que pode melhorar o seu humor. Vamos dançar duas músicas.

    Franzi o cenho.

     — Por que exatamente duas?

    — A terceira é um enfado, não quero cansá-la por rodopiar feito um pião. — Iscos pegou em minhas mãos, me puxando para o meio das pessoas dançantes — Eu quero cansá-la de tanto amor, Rice! — gritou alto.

    Sorri, me deixando levar pela melodia da orquestra.

     Iscos era quase perfeito.

    Um jovem alegre, cheio de energia que emanava sorrisos. Não era muito alto, apenas um palmo maior que eu. Seus olhos castanhos me olhavam com tanto carinho que eu quase podia explodir de emoção. Era isto estar apaixonada. E com estes sentimentos, em breve nos casaríamos também.

    O pedido já havia sido feito, nossas famílias concordaram.

    Era apenas esperar que ele voltasse de sua próxima viagem para podermos legalizar o sentimento.

    E eu também esperaria ele retornar para contar sobre o bebê. No momento, não passava de uma suspeita da minha parte, então não queria preocupá-lo com algo incerto.

    Os instrumentistas terminaram a música com uma nota, que foi apenas o início da próxima. Uma música que eu gostava, afinal de contas.

    Comecei a cantar junto com a multidão de vozes das outras pessoas da nossa vila. Trezentas famílias humildes, vivendo na pequena vila de Chowre, celebrando o começo do Outono.

Vamos celebrar o Outono, ansiosos pelo inverno

O coração queimando de felicidade

Pelo momento tão breve e eterno

Vamos cantar pelo Outono, hoje somos a orquestra

Amanhã é a tristeza do dia

Pelas ações feitas durante a canção da floresta

Vamos dançar para o Outono, que instante aguardado

A vila de Chowre festeja alegre

A estação do presente despedindo a estação do passado

Três versos cantados duas vezes em ritmo alegre.

    Uma nova estação parecia até o começo de uma vida nova, sem as preocupações diárias e problemas que geralmente enfrentamos. Uma vila pequena não chama a atenção das Grandes Casas, responsáveis pelos cuidados dos menores. Chrowe sobrevivia sozinha, sem nenhum representante para colocar nossos problemas em cima das mesas dos maiorais.

    Sem querer, meus olhos lacrimejaram.

    Iscos queria mudar nossa situação. As viagens eram, não apenas seu serviço de carroceiro, mas também uma tentativa de mudar as nossas vidas.

    Olhei para o fundo de seus olhos quando o sino bateu à meia noite.

    — Espero que o seu Outono seja mais gracioso que os ventos frescos, Rice. — não recitei para ele as palavras costumeiras, apenas o beijei. Sua boca tinha um gosto de hortelã e cravo de tanto mastiga-los, mas para mim, eram o sabor do deleite.

    — Juntos por mais uma estação, Iscos.

    — Vocês são um casal realmente fofo. — falou Marelen se aproximando de braços dados com o filho do padeiro — Quero apenas desejar aos dois, um Outono fresco como... ventos frescos? Não sei. — ela soltou um pequeno arroto, bêbada claro — Rice nos encontramos em casa. — ela avisou saindo com mais rapidez do que viera. Minha irmã com um estranho significava mais uma paixonite que acabaria na próxima estação, em outras palavras, mais lamurias aos meus ouvidos.

    — Não chegue perto da fogueira, Mare! — gritei. Ela fez um sinal de indiferença com as mãos. Me virei para o meu noivo — E já está tarde, você precisa descansar.

    — Acabou de dar meia-noite, minha bela dama.

    — Se tiver que falar com pessoas importantes, que esteja sem olheiras.

    Ele sorriu, mostrando a falha no dente.

    — Se insiste, lhe deixo pelo menos em casa.

    — Minha casa é à cinquenta passos daqui. Pode ir, vou desejar bom Outono para mais algumas pessoas. Não pretendo demorar.

    — Posso esperar, Rice. Podemos esperar.

    Iscos mexeu nos meus cabelos soltos, enfeitados com um arco de folhas secas.

    Toda a decoração da festa fora usando de preferência a cor âmbar, representante do nosso Outono. Lençóis estendidos nos telhados, lâmpadas pintadas por fora para demonstrar um ar mais acolhedor, e a fartura do que tínhamos de comida. Isto era Chrowe. A vila pobre mais rica que eu já vi.

    — Estou realmente cansada. — alertei — Mamãe e tia Mer estão em uma reunião com um mensageiro de Purke, imagino que vou vê-las apenas quando amanhecer. Quero aproveitar que Mare está bêbada para dormir, Iscos.

     — Tudo bem, se é assim que deseja... que seja uma ordem a ser cumprida.

    Apenas dei de ombros com um sorriso bobo no rosto.

     Desejei para as pessoas mais próximas a frase de felicitação, elas me abraçavam forte como se me amassem de verdade. Me senti acolhida, feliz. Em seguida, fui logo para Iscos.

    Assim que peguei em sua mão, um rajada de vento passou por nós levantando um pouco de poeira.

    — Ventos da mudança. — ele disse.

     — Se estes espíritos da floresta inúteis existem, que sejam boas mudanças para Chrowe.

Esperanças (Rice)

Marelen murmurava alguma coisa no sofá.

    Um possível xingamento devido a ressaca que se encontrava.

    Eram dez da manhã, Iscos já havia partido para sua viagem. As pessoas da vila retiravam as decorações da festa. Luzes, lenços âmbar, frutas e até carne, estavam sendo recolhidos. Mamãe e tia Mer foram procurar o que havia sobrado para ser reaproveitado, enquanto Marelen insultava à todas as festas em que já esteve.

    — Rice, vou dizer de novo, eu nunca mais vou beber daquele vinho horrível do Sr. Tins.

    — Você disse isto no Verão, Mare benzinho. — retruquei com paciência enquanto cortava os legumes para o almoço. Meu coração torcia muito para que mamãe encontrasse carne nas sobras para fazer uma sopa digna.

    — Eu só passo mal porque o vinho é ruim e barato. Vinhos bons são caros. Eu quero beber coisas caras.

    — Você passa mal até com água.

    — Minha cabeça está doendo e girando. — choramingou — Vamos ser miseráveis até o fim dos nossos dias!

    — Não vamos não.

    — Vamos sim! — ela se pôs de pé em um pulo para apenas cair sentada no sofá — Mamãe diz que vai se casar com o prefeito da outra vila, mas ele nunca pede a mão dela. Tia Mer aceitou o destino de morrer solteira. Seu noivo é um inútil que viaja para o Norte e o Sul, dizendo que vai mudar Chrowe e é mentira.

    — Mare...

    — Eu quero ser rica, casar com um homem rico...

    — Diz a garota que estava abraçando o filho do padeiro.

    — Rice, tente entender minha situação. Eu sou uma jovem linda de ressaca, já vomitei mais do que comi hoje e não tenho perspectiva de vida. Seja compassiva, sua bruxa.

    Revirei os olhos.

    O silencio é a melhor resposta para alguém neste estado.

    Continuei picando a cenoura em rodelas, quando mamãe chegou seguida de tia Mer. Sua grande barriga de gestante, chamando muita atenção, não ofuscava a beleza de seu rosto. Sempre tão linda. Ela e tia Mer compartilhavam de cabelos caramelos longos, olhos cor de mel e um humor maravilhoso.

    Tudo que Marelen precisava.

    — Encontramos um pedaço de carne! — exclamou tia Mer colocando o pedaço na minha frente.

    — E frutas, bolos e vinho. — continuou mamãe.

    — Joga este vinho no quintal! Pelo amor que você tem a mim, mãe... — resmungou minha irmã.

    — É um vinho podre de maçã do Sr. Tins. — rendeu titia — Eu nunca jogaria fora uma porcaria dessas. Talvez um gole te ajude a melhorar, Mare benzinho.

    O som do refluxo de Mare foi música para os meus ouvidos.

    — Ela está insuportável. — falei baixo para mamãe.

    — Tenha paciência, Rice. Conversei hoje com um dos mensageiros de Purke, lhe dei o prazo de uma semana para pedir minha mão antes que eu arruíne sua imagem. Ele vai aceitar por bem ou por mal. Vamos mudar de vida, mudar Chrowe.

    — E se ele não quiser? Se não ceder?

    — Seja positiva, sempre lhe ensinei a ver o lado bom das coisas, não me decepcione agora.

    — Estou sendo realista. Eu odeio concordar com minha irmã, mas ela está certa. Purke só diz, diz, diz e não faz nada. Nossa vila mal tem recursos, o prefeito é mais coitado do que nós.

    — O que sugere, então?

    Pensei por um momento.

    — Sequestrar Purke, pendurá-lo de cabeça para baixo em um barril cheio de ratos e bater nele até que faça o pedido de casamento. Vai ser fácil, só precisamos de uma corda, um pedaço de pau, um barril e o que não nos falta são ratos.

    — Eu topo. — disse tia Mer chegando perto.

    Mamãe soltou uma gargalhada alegre.

    — Vocês são doidas. Estamos no primeiro dia do Outono, ventos de mudança! Sinto isto.

    Assim que terminou a frase, um grito soou do lado de fora.

    Um grito de desespero.

    — Eu acho que não quero esta mudança. — resmungou Mare, sua voz quase abafada por mais gritos que surgiram.

Ventos da Mudança (Rice)

Tia Mer correu para trancar a porta, eu corri para a janela bisbilhotar o motivo da gritaria.

    Um bando de homens cercavam Chrowe, deixando a postos suas espadas, arcos e bastões. Engoli em seco, sentindo a bile subir. Pareciam viajantes, devia ser um motivo de alegria para nós, mas estavam assustando as pessoas de propósito.

    — Será homens de Purke? — questionou titia, alarmada.

    — Acho que são saqueadores. — disse mamãe com os ombros encolhidos — Precisamos ir embora.

    — Estão cercando a vila. Não tem saída.

    — Sempre há alguma brecha. Se forem mesmo saqueadores, estamos em um estado pior do que pensávamos. — mamãe falava apressada — Geralmente vêm a mando de alguém que acha o lugar abandonado ou... inútil. — os gritos aumentaram. Berros de homens foram ouvidos bem próximos da nossa porta. Senti o coração doer de tanto que batia — Rice, tente fugir pela janela do quarto com Mare. Se a situação ficar muito ruim, corram. Apenas corram.

    Assenti, pegando a mão da minha irmã a arrastando atrás de mim.

    — Vocês não vêm?

    — Sim.

    Tia Mer correu até onde eu estava cortando os legumes e pegou a faca. Antes que pudesse se virar de volta, a porta foi arrombada. Mordi a língua para não gritar, e dei um soco em Mare para ficar quieta.

    Eu não podia virar as costas para a minha família e sair correndo, fugindo como se não valessem nada. Meu pai fez isto, eu não faria. Fiz menção de me aproximar, mas quando os supostos saqueadores entraram me detive.

    Eram grandes, bem armados, usavam calças sujas, botas velhas de couro marrom e uma capa posta de mal jeito sobre seus ombros.

    Mamãe ficou paralisada no meio da sala, tia Mer assustadíssima perto dela. A única coisa que separava minha irmã e eu daqueles horríveis homens, era a parede do quarto. Minha vontade era de ajudar, fazer qualquer coisa, mas mamãe respirou fundo exalando confiança.

    Parecia ter o controle de toda a situação.

    Um deles deu um passo à frente.

    — Onde está o homem dessa casa? — perguntou com uma voz rouca e completamente áspera, como granito sendo arrastado. Meus pelos se arrepiaram reconhecendo o perigo eminente.

    — Quem são vocês? — questionou mamãe.

    — Não interessa.

    — É claro que me interessa, esta casa é minha. Estão invadindo minha tranquilidade.

    Eles gargalharam alto.

    — Se tivesse algum homens neste buraco já teria aparecido. — respondeu o estava a direita com um sotaque que foi difícil entender.

    O ‘voz rouca’ sorriu maliciosamente.

    — Ela não engravidou com o dedo.

    — Vocês foram mandados por Purke? — retrucou mamãe.

    O cenho franzido no rosto deles deixara claro que não foram enviados de Purke, sem dúvidas foi alguém muito pior.

    — Sem perca de tempo. Peguem o que há de valor nesta choupana, queimem tudo e quanto às mulheres... —falava tudo como se a nossa presença não fosse um perigo, senti que não era mesmo. Olhei aflita para mamãe que já chorava sem emitir qualquer palavra. Tia Mer estava agachada na cozinha, segurando firme o cabo da faca, com cuidado, enquanto pegava outra — Vamos levá-las.

    — Não. — rosnou mamãe — Prefiro mil vezes ser morta do que ser levada como escrava por vocês.

    Seu tom firme me surpreendeu e aqueles maltrapilhos se indignaram.

    Tia Mer surgiu da cozinha, com determinação, atirando facas como se fosse sua profissão. Até onde eu tinha conhecimento, nenhuma de nós tinha qualquer treinamento com armas, mas ela atirou a faca com precisão em direção ao ‘voz rouca’.

    A lamina acertou seu coração em cheio.

    Os outros não hesitaram em sacar suas espadas e atacar tia Mer a cortando em pedaços.

    E atacar mamãe também.

    E o bebê que ela esperava de Purke.

    Marelen quis ir para a sala, mas tínhamos que sair dali imediatamente. A puxei com força pelos cabelos, não querendo saber se doía ou não. Que importava? Tudo em mim passou a doer, afinal de contas. Meus olhos lacrimejaram tanto que mal podia ver um palmo à minha frente.

    — Pula esta merda de janela, Mare. — implorei, tão trêmula que demorei a perceber que ela tentava e que eu apenas a estava atrapalhando por ainda a segurar.

    A soltei e logo estávamos fora de casa.

    Na vila, parei ao ver que as casas pobres e humildes estavam sendo saqueadas e queimadas. Os gritos ao redor só me causavam náuseas. Haviam saqueadores por toda parte, arrastando mulheres pelos cabelos, pisando nas crianças, matando os homens os atravessando à espada.

    — Rice! Corre!

    A voz de Mare me despertou daquele transe de destruição.

    Agora, ela quem me puxava aos trôpegos para a floresta. Eu sabia que estávamos sendo perseguidas, mas não atrevi olhar para trás, eu não iria conseguir me mexer outra vez se olhasse.

    Seguimos apressadas, desviando de quem quer que fosse em nossa direção.

    Por um momento, tão breve, pensei que conseguiríamos. Até que a esperança foi interrompida pelo som abafado de Mare caindo. Ela se soltou da minha mão, parei por um instante.

    — ESTOU BEM! CORRE! — berrou.

    Pelo canto do olho, vi que ela foi em uma direção contraria.

    Senti raiva por isto. Eu estava sozinha.  Sozinha e perseguida dentro de uma vila destruída e triste.

    As malditas lagrimas invadiram meus olhos, embaçando tudo à minha frente.

    “Apenas corram”.

    E assim fiz.

    Quando dei por mim, já estava na floresta, mas não sabia exatamente onde, nem me importava se alguém me seguia. Só parei de correr quando me senti vencida pelo cansaço. O meu peito doía, meus músculos doíam, minha cabeça latejava.

    Vomitei, tanto que fiquei zonza.

    O som da matança estava longe, parecia quase seguro agora. Eu precisava de um esconderijo. Andei mais um pouco, me afastando do vômito e escalei com dificuldade uma árvore.

    Agora eu só precisava esperar não ser encontrada, ou não ser ouvida, afinal não consegui controlar o choro.

    Tantas mortes de modo repentino, não parecia que há horas atrás todos bebiam, riam felizes desejando o melhor para o Outono.

    Os ventos da mudança eram os ventos do caos para Chrowe.

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