Sophie
Eu já estava pronta, enquanto esperava meu tio Charles conversando
com o seu advogado, ficava olhando meu primo brincando do lado de fora
da casa, Louis corria gritando e rindo com os amigos que eu não conhecia.
Fazia muito tempo que não os via, meu pai tinha brigado com tio
Charles e mesmo ele sendo irmão da mamãe nunca mais nos vimos, e agora
eu estava ali sendo entregue ao tio Charles, para que ele fosse meu guardião
até eu completar vinte e um anos. E tudo isso porque meus pais tinham
morrido em um acidente de barco.
Era difícil acreditar que eles haviam partido para sempre, há uma
semana eles tinham saído de férias para a Europa, para comemorar o
aniversário de casamento e eu fiquei com minha babá.
As pessoas achavam que eu ainda não entendia o que estava
acontecendo ali, que eu não sabia o motivo de me levarem para casa do meu
tio, mas eu tinha escutado as conversas, uma criança de dez anos escuta
muita coisa, disso eu tenho certeza.
— Sophie querida, você tem que comer um pouco. — minha babá
chegou insistindo pela décima vez, mas eu detestava peixe e tudo o que
tinha para o almoço era frutos-do-mar.
— Porque meus pais tinham que morrer, Jenny?
— Ai minha querida, eu lamento muito pelo que aconteceu aos seus
pais. Mas foi um acidente e acidentes acontecem, isso pode acontecer com
qualquer um. — ela tentou me confortar, mas não conseguiu.
— Mas não aconteceu com qualquer um, aconteceu comigo.
— Você ainda é uma menina de muita sorte, seu tio Charles vai cuidar
de você agora, até que possa tomar conta da empresa do seu pai. — eu
queria gritar, dizer que não queria meu tio, queria meus pais, mas ao invés
disso baixei a cabeça concordando com ela.
Eu não tinha muitas lembranças do tio Charles e não sabia porquê do
filho dele não chamava a tia Magie de mãe, nem sabia porque ela era tão
nova, mas agora teríamos que aprender a conviver já que eu estaria presa
ali.
— Querida, porque não vai brincar com seu primo? — ergui a cabeça
olhando para ela novamente. — Talvez você aprenda a gostar daqui.
Eu duvidava muito, mas para ser uma boa menina como ela tinha
repetido várias vezes eu me levantei e fui até o gramado. Eles estavam
atirando uma bola de futebol americano, que caiu bem perto de onde eu
estava.
— Joga a bola pirralha! — um dos meninos que estavam com meu
primo gritou sorrindo.
— Posso brincar com vocês? — perguntei acanhada quando peguei a
bola, estava tentando como Jenny falou, tudo começa com um primeiro
passo.
— Não! Porque você é menina e meninas são chatas e fracas! — foi
meu primo que gritou enquanto seu amigo correu até onde eu estava.
— Vai brincar de bonecas, sua idiota! — ele puxou a bola das minhas
mãos com força e por pouco eu não parti para bater nele.
Os outros começaram a rir e no mesmo instante eu corri para os braços de Jenny, me escondendo no único lugar que ainda era familiar para mim.
Mas ali era só o começo do meu inferno pessoal, o começo do meu
tormento.
Patrick
Estava terminando de arrumar minha gravata borboleta quando Cris
surgiu atrás de mim no reflexo do espelho.
— Você tem certeza que quer fazer isso? Ainda posso te ajudar a fugir
cara, de verdade, tenho um carro nos fundo só esperando sua ordem e te
tiramos daqui.
Empurrei meu melhor amigo para longe dando risada de sua
insistência em me fazer desistir do casamento.
— Emily é a melhor garota que eu podia conhecer, linda, rica,
gostosa, vem de uma boa família como a minha. O que mais eu podia
querer?
— Sei lá, cara. Quem sabe esperar uns dez anos mais? Você só tem
vinte e cinco anos, tem uma vida toda pela frente!
— Uma vida que eu quero dividir com a mulher mais perfeita que
conheci. — ele revirou os olhos se afastando e eu não consegui deixar de rir
da expressão idiota em seu rosto. — Um dia você vai entender Cris, te
garanto.
Ele fez o sinal da cruz se afastando em busca das alianças, que
estavam na cômoda.
— Te garanto que isso não vai acontecer. Mas não vou mais insistir
que fuja dessa loucura enquanto é tempo, você está meloso de mais para o
meu gosto, vai acabar dizendo mais bobagens românticas.
Me voltei para a janela encarando as pessoas no jardim, tudo ali tinha
sido escolha da minha futura esposa, ela não pediu minha opinião em nada,
mas acredito que todas as mulheres são assim, afinal é o dia delas.
Nunca imaginei que poderia ser tão feliz, não até esse dia, até o
momento em que colocaria o anel no dedo dela e declararia para o mundo
que ela era só minha!
— Vamos, está na hora. — foi a voz do meu pai que invadiu o quarto
me tirando do transe. — Ainda está certo disso, filho? Tenho certeza que ela
ainda te esperaria daqui há um ano ou mais.
— Até você pai? — perguntei conferindo minha aparência uma
última vez no espelho, gostando muito da imagem perfeita a minha frente.
— Estou mais do que certo, ela é a mulher que eu amo e não quero perder
mais nenhum dia sem tê-la como minha esposa.
Eu só não tinha ideia que estava cometendo o maior erro da minha
vida naquele dia.
Sophia
— Você vai casar com o senhor Carter e não tem mais discussão,
Sophie! — aquela era a palavra final de Charles.
Eu já deveria ter desistido de discutir e tentar convencê-lo do
contrário, mas não podia desistir tão facilmente, era minha vida e eles já a
tinham destruído durante esses dez anos.
— Mas eu não posso me casar com um homem que nem conheço!
Não sei nem quem são os Carter’s.
— Isso só mostra o quanto você é desinformada queridinha. —
Magie, a esposa do meu tio, falou com puro deboche, jogando o cabelo
loiro para trás. — Eles são simplesmente a família mais rica do país, as
joias deles vendem ao redor do mundo todo.
Eu tinha pena dela, era tão nova quando foi forçada a casar com o
velho escroto do meu tio, mas às vezes me perguntava se eles não se
mereciam e agora era um desses momentos.
— Por que um homem assim iria querer se casar comigo? Ele pode
ter qualquer mulher no mundo! — bati o pé e Charles deu a volta na mesa,
ficando de frente para mim.
Eu tinha aprendido a temer o homem com o passar dos anos, aprendi
a baixar a cabeça e engolir as coisas que ele falava, pois isso significava
menos surras e castigos.
— Escuta aqui fedelha, te criamos esses dez anos mesmo depois que
aqueles seus pais ladrões fugiram e morreram no processo, te demos de
tudo, então agora é hora de você retribuir! — engoli em seco, querendo
gritar que não acreditava em suas palavras sobre meus pais, mas fiquei
quieta. — Vai casar com Patrick Carter, dar todos os herdeiros que ele
quiser e vai fazer isso sorrindo!
Justo agora quando faltava apenas um ano para que eu conseguisse
minha independência, isso não podia acontecer, logo quando eu finalmente
me veria livre daquele inferno, daquelas pessoas sem coração, agora eu
seria jogada nos braços de um homem que eu nem conhecia.
— Sim, senhor. — respondi a contragosto.
— Se anima priminha. — Louis disse rindo do sofá enquanto virava
mais um copo de whisky. — Ouvi dizer que ele é um deformado, que vive
recluso em uma casa nas montanhas, tenho certeza que vai ser como nos
seus livros bobos.
Queria socar e xingar, ou arranhar a cara daquele desgraçado como
fiz anos atrás, mas só de recordar as marcas em minhas costas um arrepio
gelado subia por minha coluna, me lembrando que manter a boca fechada
ali era questão de sobrevivência.
— O casamento é amanhã, o tabelião virá até aqui e você vai assinar
os papéis, depois disso eu e o pai dele resolveremos o restante dos detalhes.
— Ele não vem? Não vamos casar na igreja? — questionei perplexa
que até mesmo isso estivessem tirando de mim.
Meu sonho de entrar na igreja de véu e usando o vestido da minha
mãe estava mesmo indo por água a baixo e eu nem podia fazer nada.
— Não seja tola garota! Isso não é um casamento cheio de bobagens e
frescura, isso aqui é uma transação comercial.
Meus olhos se encheram de lágrimas com a constatação que eu era
uma mercadoria de troca, eles levavam uma mulher para dar herdeiros ao
filho e meu tio levava muito dinheiro para a empresa.
— Odeio vocês! — juntei toda minha raiva e coloquei um fim na
ideia de ser uma boa menina, se ele estava me vendendo não tinha porque continuar com aquilo, tentando ser algo que eu nunca conseguiria, não com
ele.
Charles ergueu a mão pronto para me bater, mas Magie gritou o
parando.
— O casamento é amanhã, quer mesmo que ela tenha o rosto marcado
e eles desistam do acordo? — eu não sabia se a agradecia por isso ou não.
— Tem razão, linda, bem lembrado. — ele olhou para ela a comendo
com os olhos, antes de me dispensar com um aceno de mão. — Vá para o
seu quarto e não saia de lá até a hora de assinar os papéis, não quero ver
essa sua cara mais!
Sai de lá pisando duro, deixando que as lágrimas escorressem por
meu rosto e me tranquei no meu quarto.
Chorei por muito tempo, até pegar no sono, tinha me acostumado a
passar os dias trancada dentro do quarto lendo para fugir da minha realidade
e dormindo para esquecer a fome, eles sentiam prazer em me dar aquele
tipo de castigo.
Mas uma batida na porta me acordou e eu peguei a pequena faca que
deixava em baixo do meu travesseiro, com medo do pior. Tinha sido assim
desde o dia que acordei com meu primo em cima de mim me tocando.
— Quem é?
— Sou eu, menina. A Rosa, abre aqui. — suspirei aliviada quando
ouvi a voz familiar de uma das minhas pessoas preferidas naquele mundo.
— Rápido, fecha rápido para ninguém me ver.
A mulher baixinha e rechonchuda entrou carregando uma bandeja
com o que deveria ser meu jantar.
— Não deveria ter feito isso Rosa, não quero você se colocando em
problemas por minha causa. — lembrei a ela, mas já fui me sentando para
comer. — O que vai ser de mim se eles te colocarem para fora?
— Acho que agora não faz mais diferença, não é menina? Hugo me
contou tudo que ouviu os patrões conversando. — engoli rápido a comida
que ainda estava quente só para responder.
— Vai ser meu fim, Rosa, estou tentando nem pensar nisso.
Ela deu uns tapinhas na minha mão e sorriu de forma solidaria. Então
se levantou e abriu o guarda-roupa começando a tirar as poucas roupas que
eu tinha.
— Porque não tenta ver isso de outra forma, minha filha? — franzi a
testa em confusão. — Você finalmente está saindo dessa casa maldita, vai
poder ter sua vida, fazer o que quiser...
— Você não sabe como as coisas vão ser, não sei nem como é esse
homem. — mas boa coisa não deve ser, já que quer pagar para se casar
comigo e nem mesmo vai aparecer aqui para assinar os papéis.
— Tem que tentar ser feliz pela primeira vez na vida, apenas isso. —
Rosa fechou a mala e a colocou ao lado da cama, então se sentou
novamente e segurou minha mão. — Eu posso não conhecer esse homem,
mas conheço você, sei que é doce e capaz de tocar corações, tenho a certeza
que não vai se dar por vencida e deixar que ele te trate de qualquer jeito .
Quero que me prometa que vai lá e vai conquistar o coração daquele
homem!
Meus olhos se encheram lágrimas com as palavras dela, mesmo
sabendo que tudo poderia piorar ela estava me animando. Ela era minha
única figura materna que eu tinha desde os meus dez anos, quando meu tio
mandou Jenny embora.
— Rosa, eu te amo. — me agarrei a ela, sentindo que podia ser a
última vez.
Acordei no outro dia decidida a fazer o que ela me disse, eu
conquistaria meu marido, mesmo que esse casamento estivesse começando
da forma errada eu faria dar certo.
Coloquei o vestido que tinham escolhido para mim, era horrível e não
me valorizava em nada, eu parecia uma velha com um vestido dois números
maior, nem mesmo em um tom branco aquele desgraçado me deixou usar.
Para completar só me deixaram descer quando o tabelião chegou,
então eu tinha certeza que os pais do meu futuro marido também já estavam
ali. Entrei na sala de jantar e meu tio, o tabelião e um homem alto de
cabelos brancos me esperavam na ponta da mesa.
— Você é linda! — uma mulher exclamou surgindo a minha frente.
— Ai me desculpe querida, sou Audrey Carter, sua sogra.
— É um prazer conhecer a senhora. — murmurei ainda sem jeito, não
esperava uma pessoa tão animada e calorosa já que o acordo com meu tio
com certeza envolvia uma grande quantia em dinheiro.
— Oh linda, me chame de Audrey, logo seremos uma família.
Abri um sorriso maior tentando ser educada e entender toda aquela
situação.
— Viu só o que lhe falei, ela é uma menina calma, saudável e nova.
— Magie falou se aproximando, eu quis lhe dar um tapa e mostrar que não
tinha nada de calma como ela falava, mas não ia estragar minha chance de
ficar livre de todos daquela casa. — Sophie vai te dar muitos herdeiros.
— Tenho certeza de que vamos nos dar muito bem. — Audrey
envolveu meu ombro com o braço e me levou para longe da loira. — Esse
aqui é meu marido, James Carter.
O homem alto e de cabelos brancos, com mais rugas do que eu
poderia contar, abriu um sorriso largo, os olhos castanhos me encararam e
ele se curvou abraçando meu corpo me surpreendendo ainda mais.
— Olha, não me disseram que era tão bela essa menina. Estou muito
feliz em conhecê-la e mais ainda com essa união, tenho certeza que você e
meu filho serão muito felizes juntos.
Eu não queria nem pensar em como era esse filho de verdade, porque
eles estavam parecendo empenhados de mais em serem legais comigo, na
situação mais inusitada possível.
— Estou ansiosa para conhecê-lo. Por que mesmo Patrick não veio?
— Não liguem para a curiosidade da minha sobrinha, ela vai ter
tempo de conversar tudo isso com o marido quando se encontrarem!
É claro que meu tio iria intervir e tentar adiantar a cerimônia só para
poder assinar esse acordo. Assinei o papel, notando que a parte de Patrick já
tinha sido assinada, pelo visto ele não saía de casa mesmo.
Depois disso eles conversaram e almoçamos juntos, mas antes que eu
pudesse voltar a me esconder em meu quarto meu tio me mandou pegar minha mala, pois o carro que Patrick mandou para me buscar tinha
chegado.
Segui sem reclamar, como uma ovelha indo para o matadouro. Foi
uma viagem de três horas até que eu alcançasse a cidadezinha e mais meia
hora até o topo da montanha onde ficava a mansão dele, a única construção
nas redondezas.
Parei na frente da casa sentindo o vento gelado me arrepiar inteira. O
lugar era lindo, cercado de flores e árvores, mas tinha algo de triste e
solitário ali, eu podia ver.
Olhei para cima e avistei alguém na janela, mas antes que pudesse ter
um vislumbre melhor a pessoa se afastou, sumindo nas sombras dentro da
casa.
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