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A Noiva Do Mafioso

Beatrice

Hoje será a festa de inauguração da loja do meu noivo. Ricardo

trabalhou duro para conseguir abrir sua loja de materiais de construção, mas

para alguém que sempre quis realizar o sonho de se tornar o seu próprio

patrão, hoje ele não parecia estar muito empolgado, como vinha

demonstrando há semanas. Talvez seja algo da minha cabeça ou cansaço

pelo último plantão. Eu não dormi muito depois de uma longa jornada de

trabalho.

Estou no apartamento do meu noivo. Na verdade, este lugar é mais meu do que dele. Desde que

vim “morar” com ele — entre aspas, pois ele vive viajando —, concordei que deveríamos dividir as

despesas e aceitar que já éramos quase casados, tirando o fato de ele nunca ter feito sexo comigo,

devido a sempre estar em viagens. Ele trabalhava como operador de máquinas e recebia um bom

salário. Juntando isso com o empréstimo que conseguiu no banco, pôde abrir a sua loja.

Nessa noite eu lhe prepararei uma linda surpresa. A lingerie sexy que vou usar já está em meu

corpo. Ela é lilás, a nossa cor favorita, e atraente. Estou me sentindo bem nela, mesmo que eu esteja

dez quilos acima do peso, como minhas colegas de equipe costumam me dizer. Até mesmo o meu

noivo já me sugeriu que eu fizesse uma dieta para o casamento, que será em quatro meses.

Quando me vi noiva, eu me senti especial. Alguém como eu se casará. Alguém cujo o passado é

tão marcado.

Minha mãe sempre fez e faz de tudo para me proteger da família do meu pai. Quando eu era

criança, por volta dos meus 9 anos, ele faleceu. Papai era alguém que se envolvia em esquemas ilegais

para uma poderosa máfia. Ele era italiano e consigliere de Mateo Massino, um importante chefe de

uma máfia italiana, que faleceu há dois anos, deixando todo o seu poder e império para o seu filho

mais velho, Deméter Massino. Até onde eu pesquisei e sei informar, ele é um homem muito bonito e

14 anos mais velho que eu. Ou seja, ele está com 37 anos. Meu pai aceitou um acordo de casamento

para eu me casar com o filho do seu chefe, devido a uma longa amizade de lealdade e confiança que o

senhor Massino depositava nele.

Lembro-me vagamente de estar em eventos de gala nos quais as pessoas sentiam admiração pelo

meu pai. Minha mãe sofreu muito após sua morte. Papai tomou um tiro no lugar do senhor Massino,

seu chefe e melhor amigo, para o salvar. Depois desse dia, mamãe sabia que precisava fugir. Ela não

queria me ver casada com um mafioso e em perigo pelo resto da minha vida, pois eu seria a senhora de

uma máfia e um alvo para os inimigos. Por isso fugimos. Desde os meus 9 anos, vivemos no Brasil,

bem longe da Itália e do meu passado, que é guardado e escondido a sete chaves.

— Está linda, meu amor — minha mãe me desperta do meu transe. — Maravilhosa!

Meu vestido preto soltinho não marca a minha barriga, deixando-me com a cintura mais afinada.

Eu fiz uma maquiagem leve e estou me sentindo bem. Mamãe me diz que Ricardo é areia demais para

o meu caminhãozinho e não aprova o meu noivado com ele, por dizer que ele é tóxico. Mas ela não o

entende como eu.

— Obrigada.

— Estou de saída, amor. Vou trabalhar em um evento. Dessa vez eles vão pagar o dobro.

— Que legal, mamãe.

— Filha, está levando o spray de pimenta? Lembre-se: sempre tome cuidado.

— Mamãe, estarei segura. Não se preocupe.

Ela acredita que possam estar nos procurando. Mas se eles não nos encontraram ainda, significa

que nunca irão colocar as mãos em nós. Minha mãe teme que eles me levem para a Itália e me

executem por termos fugido. É assim que funciona na máfia, por isso faço qualquer coisa para não

viver naquele mundo de trevas.

Já pensei em, inúmeras vezes, seguir os conselhos que escuto sobre tentar uma dieta. A genética

da minha mãe me concedeu pernas grossas, bumbum grande, seios mais fartos e até minha barriguinha

nada satisfatória aos meus olhos. A única pessoa que diz que é para eu me amar do jeito que sou é a

Tália, minha melhor amiga e confidente. Ela é a única pessoa que tem me feito rir ultimamente.

Meu celular vibra sobre a mesa do criado-mudo. É a minha sogra. Ela ganhou um celular do filho

no Natal do ano passado e agora vive me enviando mensagens sobre dicas de saúde e de sucos detox.

Uma vez ela me disse que eu deveria emagrecer. Todos me dizem isso, exceto minha melhor amiga.

O áudio dela diz para eu não usar algo muito curto, muito menos chamativo. Ela não quer que eu

envergonhe o filho dela mostrando minhas estrias. Minha sogra não era assim, mas está ficando cada

vez mais chata. A viúva até sugeriu morar comigo e com o Ricardo após o nosso casamento. Eu

poderia até aceitar se ela não fosse tão incômoda algumas vezes.

Respiro fundo e lhe respondo que já estou pronta e que chegarei em breve. Estou apenas

esperando o meu noivo, que não vejo há pelo menos oito dias. Depois que ele chegou de viagem, eu

tive plantão duas vezes e fiquei até mais tarde no hospital com Tália para ajudar, mesmo sem ser meu

expediente. Mal nos vemos.

Ouço o barulho da tranca sendo aberta. Ele sempre cuidou bem da nossa segurança. Além de

uma boa tranca, há também dois ferrolhos com cadeados que só tranco à noite. Corro, apressada, para

a sala, louca para o abraçar. Eu o conheci em um dos momentos mais tristes da minha vida.

Sozinha e solitária. É assim que eu me sinto depois de um longo plantão, quando chego em casa

e percebo que minha mãe ainda não voltou do trabalho. Ela serve mesas; trabalha como garçonete em

eventos importantes.

Quando conheci o meu noivo na festa do campus, no famoso “trote”, ele estava acompanhado da

sua irmã, que, aliás, é minha melhor amiga. Tália é irmã do Ricardo e minha maior defensora. Ela

sempre me defende.

Já posso sentir o aroma fresco do seu perfume, que está mais forte do que de costume. Ele está

procurando algo na gaveta do painel sobre a parede. Não sei o que é, mas é alguma coisa que parece

ser importante, para ele ter preferido fazer isso em vez de vir até o quarto me ver.

Uma leve pontada de decepção não vai estragar a minha felicidade de vê-lo.

Ultimamente, tenho sentido muitos desapontamentos com ele, porém tento pensar que ele está

mais distante e ausente por causa do trabalho. Ricardo deu duro para inaugurar a sua loja, e eu estou

feliz por ele, pois seu sucesso é o nosso sucesso.

Ricardo ainda não notou minha presença. Observo-o. Ele está muito distraído. Em seguida,

atende uma ligação, ainda sem me ver.

— Paciência, Pacheco. Eu já estou com quase tudo pronto. Será que pode me dar mais alguns

dias? — Ele nunca me falou desse tal de Pacheco. Aliás, ele nunca mais me falou sobre nada. — Uma

semana é pouco tempo. Peço um mês. — Suspira, irritado. — Alô? Alô? Infeliz! — Ao encerrar a

ligação, desliza as mãos pelos seus fios alinhados, chateado.

Seja lá o que esse homem tenha dito, deixou o meu noivo muito aborrecido. Seu peito sobe e

desce quando ele me olha. Enfim, notou minha presença. Ele está tenso, e eu diria que até assustado.

Eu nunca o vi assim antes. Pergunto-me o que aconteceu. Nos últimos meses, Ricardo tem vivido de

mau humor.

— Bem-vindo à nossa casa mais uma vez, amor.

Apesar de nunca termos feito sexo, ele costuma dormir algumas noites no meu quarto comigo.

Meu sorriso é estonteante. Sempre que o vejo, meu dia se ilumina como se eu vivesse em uma

escuridão eterna sem ele. Meu primeiro amor, meu primeiro namorado, meu noivo e, em alguns

meses, o meu marido no papel passado e tudo. Seu olhar está mais sereno, mas ainda há um pouco de

tensão em sua testa. Marcas de expressão em alguém tão jovem. Ricardo só é cinco anos mais velho

que eu. Eu tenho 23 anos, e ele 28. Estamos juntos há dois anos e meio, entre algumas idas e vindas

que já foram resolvidas.

Confesso que sou bastante ciumenta, enquanto ele não demonstra a mesma coisa. Mas eu sei que

ele me ama. Depois do nosso último término, ele me pediu em casamento, e eu aceitei. A aliança em

meu dedo mostra que estou noiva.

Uma noiva em que o noivo nem sequer toca.

Muitas vezes ele me pressiona para o sexo, mas sempre acabo desistindo quando o clima

esquenta um pouco. Não sei explicar por quê. Talvez seja pela pressão que ele me impõe. Por isso eu

lhe disse que só faríamos quando nos casássemos. Meio retrô, mas ao menos me dará tempo.

As palavras que sua irmã me disse em nossa última conversa me atormentam. Quando minha

cunhada me perguntou se, finalmente, já tinha rolado sexo entre nós dois, e eu disse que não, ela ficou

pasma e até brincou ao chamar o irmão de mole.

Meu noivo não sorri por me ver. Será que está chateado com o homem que falou ao celular?

Decido quebrar esse gelo que está vindo dele.

— Tudo bem, querido?

— Aonde você pensa que vai vestida assim? — Sua pergunta faz o meu coração paralisar.

Pela sua expressão, desagrada a ele a maneira como me vesti.

— Como assim? À inauguração, amor. — Sinto um nó na garganta.

Esse olhar dele me derruba. É com desdém, como se ele sentisse vergonha de mim.

— Desse jeito, Beatrice?

Beatrice? Não sou mais o seu amor? Outra pontada em meu peito me deixa totalmente sem

resposta e arrasada.

Ricardo parece se arrepender do que disse ao perceber que estou triste com sua atitude.

— Pensei que estivesse bem vestida.

Contenho algumas lágrimas que insistem em escorrer pela minha face. Não sou uma pessoa tão

forte quando o assunto são as minhas emoções, sou uma manteiga derretida.

— Amor... Querida, me perdoe. — Finalmente, ele me abraça.

Eu sinto essa tristeza todas as vezes que ele lança para mim aquele olhar julgador, com o qual,

mesmo em silêncio, parece gritar comigo: “Você não combina com essa roupa”.

Eu não ser padrão de beleza sempre irá gerar esse tipo de ofensa?

A única vez em que minha sogra me deu um bom conselho nesta vida foi para me dizer que

ninguém nunca deveria me diminuir, pois mesmo que eu não seja bonita, somente eu posso dizer isso,

não os outros. Isso foi dito em uma passagem de ano. Detalhe: ela havia bebido muito.

Mas, em parte, ela tem razão. Talvez eu deixe as pessoas falarem muito sobre mim, quando não

há necessidade de opiniões.

— Perdão. Estou com a cabeça quente e cansado, querida. Ontem fiquei até tarde na loja para

organizar tudo. Me desculpe. — Suavemente, seus lábios beijam a minha testa. Já não é a mesma

empolgação de antes. — Vim em casa buscar um documento. Me desculpe mesmo, estou com sono.

Sabe quando você passa a noite em um plantão e, no outro dia, só quer dormir? — Assinto. — Estou

me sentindo assim hoje. Mais uma vez, me desculpa. Prometo te levar para jantar amanhã.

Ele está arrependido, porém pedir desculpa depois que a merda já foi dita nem sempre resolve e

não apaga o que foi falado, o que magoou. Mesmo sabendo que ele está cansado, eu deveria ouvir

mais o único conselho bom que sua mãe me deu nesta vida.

— Nesse sábado vamos viajar eu, Tália e mamãe — comunica-me.

Como assim só eles três?

— Só vocês três?

Ele não quer que eu vá? Como o meu noivo vai viajar e não me levar junto, depois de ter passado

dias fora e ter retornado sem mal ter pisado em casa?

— Desculpe, amor. Será uma viagem de um dia apenas. Mamãe quer ficar um pouco comigo e

minha irmã. Ela diz que já está velha e que quer passar um tempo com os filhos antes de morrer.

— Claro.

Ela não quer que eu vá. Sinto que a cada dia que passa, minha sogra dá um jeito de me excluir da

vida do seu filho e me afastar aos poucos dele. E, na verdade, às vezes Ricardo parece permitir, como

foi no último aniversário dele. Nesse dia, sua mãe lhe fez um bolo surpresa e me enviou mensagem já

no final da pequena festa que ela organizou para os amigos de faculdade dele. Até a ex-namorada dele,

ela convidou. Eu cheguei quando já não havia mais bolo, e ela me disse que era bom assim, que eu

não comia bobagens.

— Não fique magoada. Vamos viajar só nós dois, eu prometo.

Promessas e mais promessas. Ele nunca cumpre nada.

— Você não vai à loja hoje, não é mesmo? — ele pergunta como se estivesse afirmando.

Ricardo conseguiu tirar a minha vontade de conhecer o seu negócio. Agora não me sinto mais

bem para ir. Minha presença lá não é desejada sequer pelo meu noivo, que dirá pelos demais.

— Pensando bem, eu vou dormir mais um pouco.

Ele parece estar cego. Não quer ver que eu me arrumei toda para ir ao evento. Às vezes a

impressão que Ricardo passa é que tem vergonha de mim e do meu corpo. Eu não deveria estar

insegura, mas... Quando todos à minha volta são desagradáveis e tóxicos, como eu deveria ficar?

Sorrir e fingir que meu coração não está apertado? Que não há uma faca enterrada em meu peito? É

assim que me sinto todas as vezes que me tratam com indiferença.

— Te vejo amanhã? — ele pergunta.

— Amanhã?

— Mamãe me pediu para dormir na sua casa hoje. Ela está com a pressão alta.

O velho problema da pressão alta. O “engraçado” é que ela não toma nenhum remédio regular,

como deveria, devido ao seu problema. Parece que ela só sente hipertensão para tirar o seu filho de

mim.

Respiro fundo. Quando o meu noivo vai embora, ele nem me dá um beijo.

Volto para o quarto. Parada em frente ao espelho, eu retiro o meu vestido e algumas lágrimas

rolam pela minha face. Tenho pensamentos como:

E se eu fosse mais magra?

Seco minhas lágrimas. Não posso me permitir ficar assim, porém está óbvio que Ricardo estava

com vergonha de mim e da roupa que eu usava. Eu me sentia tão bem nela, só que agora já nem sei

mais se eu estava mesmo bem. Se ele não queria uma namorada gordinha, por que não ficou com a sua

ex, que era magrinha e esbelta, como sua mãe mesma repete?

“Tatiana é linda.”

“Tatiana é esbelta e doce.”

De doce, ela não tem nada. Já estive em lugares que ela estava. Ela fala com o Ricardo e beija a

sua bochecha, sendo que para mim nem sequer dá um “oi”. Ela terminou com ele, no entanto parece

estar arrependida, e a minha sogra dá o maior apoio para eles voltarem.

O melhor que posso fazer é dormir. Amanhã já voltarei ao trabalho.

Pelas redes sociais, acompanho a live da inauguração. Tudo está bonito e organizado. Meu noivo

está feliz. Todos estão lá, menos eu.

Espero-o voltar para casa, mesmo sabendo que ele não virá.

No trabalho

Acordei cedo e fiz uma corrida. Estarei no hospital em alguns minutos.

Não sinto fome nesta manhã. Ainda estou abalada por ontem.

Ao chegar ao trabalho, vou direto para o meu setor. Uma colega, ao passar por mim, diz:

— Paciente bonitão precisando levar alguns pontos. Parece que a doutora vai tirar uma bala que

está alojada em seu braço, e você fará os pontos. Aliás, ele é italiano, lindo e de tirar o fôlego. É seu

paciente.

A fofoqueira da Flávia adora inventar coisas. Será mesmo que esse homem está aguardando a

doutora? Bala alojada?

Direciono-me à sala de atendimento da médica Nicole, que está responsável pelas emergências

na parte da manhã. Ao abrir a porta, dou de cara com um par de olhos negros que me encaram

seriamente, fazendo com que meu estômago embrulhe. Há outro homem com ele. Parece que o

paciente está inquieto, querendo ir embora.

Sinto uma necessidade enorme de fugir, de correr para longe, mas não consigo. Paraliso ao ver

que quem está precisando ser atendido por mim é, na verdade, o meu noivo... O noivo de quem eu

fugi.

É ele, Deméter Massino.

Tão apavorante quanto sempre imaginei e lindo como eu já sabia que era.

Eu o reconheceria até no escuro.

Deméter Massino! O chefe da máfia siciliana. O homem com quem eu

deveria ter me casado assim que completei 18 anos; para quem fui

prometida quando criança.

Engulo em seco, paralisada. Preciso ir embora, correr e me esconder,

porém minhas pernas se recusam a obedecer ao comando da minha mente.

Estou começando a ficar aterrorizada, principalmente depois de ter

percebido que ele me encara friamente. Não sei se é meu medo que está me

fazendo pensar assim, mas é como se ele tentasse me reconhecer.

Meu Deus, ajude-me! Se ele me reconhecer, irá me levar com ele, e

ninguém poderá impedir.

Será que Deméter descobriu onde estou e veio atrás de mim? Não

consigo controlar as minhas lágrimas, por mais que eu tente. Estou

chorando, amedrontada. As lágrimas quentes molham o meu rosto.

Os dois me olham como se eu fosse uma louca que fugiu do hospício,

não como se eu fosse a enfermeira.

Minha mãe sempre me disse que isso poderia acontecer algum dia e

que essa gente ainda me procuraria para se vingar. E eles me encontraram

agora.

— Sta piangendo, Rossi? (Ela está chorando, Rossi?)

Meu nervosismo me deixa sufocada a ponto de eu não conseguir

prestar atenção no diálogo deles. Inspiro e expiro forte uma, duas, três

vezes. Soluço e me viro de costas para eles, sentindo-me apreensiva.

Minhas mãos estão tremendo e suando. Eu sei que vou morrer agora. E a

minha mãe? Será que eles a levaram? Talvez eu deva implorar pela minha

vida uma vez ou ao menos pela dela. Ela não tem culpa, só quis me

proteger.

Não parece haver piedade no olhar dele.

Inspiro.

Por que eles não me prenderam ainda? Este hospital não os pararia,

muito menos as câmeras. Mamãe costuma dizer que esse pessoal sempre dá

um jeito de ocultar os crimes.

— La ragazza non ha un bell’aspetto, signore (A moça não parece

bem, senhor).

Ele se referiu a mim como “ragazza”, ou seja, uma moça comum,

qualquer. Eles não sabem quem eu sou, não se lembram de mim. Não

poderiam, pois eu mudei muito desde os meus 9 anos. Os meus cabelos não

são mais loiro-claros, ficaram mais escuros, castanho-escuros, e meus olhos

não são mais tão claros como antes. São verdes, mas muitas vezes ficam

castanhos, e hoje estão mais escuros mesmo. O meu corpo... Não tenho

mais o corpo de uma criança, tornei-me uma mulher forte, em todos os

sentidos. Talvez eles pensem que eu seja loira e que minha cintura seja 36

em vez de 42.

— Perdão, senhores. Um cisco caiu no meu olho. — Seco minhas

lágrimas com as mãos.

Não sei se eles puderam me compreender.

Meu coração ainda está disparado e o meu medo está me entregando,

fazendo com que eles desconfiem de mim. Por que eu choraria, se não os

conheço? Não posso passar a imagem de quem sabe quem eles são. Seria

perigoso.

— Una pagliuzza le è caduta nell’occhio, signore (Um cisco caiu no

olho dela, senhor).

Com cautela, viro-me vagarosamente. Temo que uma arma esteja

sendo apontada na minha direção. Para o meu alívio, não há nenhuma arma.

O homem, que era o meu noivo, estava sentado quando eu entrei, mas agora

está em pé, fazendo um grande esforço, devido ao estado do seu braço. Ele

não é o tipo de pessoa que exala paciência. Pelo que vejo, não se dá muito

bem com ela. Não é sua virtude.

Aperto os meus olhos castanhos e suspiro. Algo me diz que o paciente

será trabalhoso, mesmo sendo um adulto. Seu braço está sangrando. O tiro

foi dado já próximo ao ombro e o ferimento está quente ainda. Em seu

lugar, eu estaria chorando e gritando de dor, pois para a conter, pelo que

notei, não foi aplicada nenhum tipo de anestesia. Deve estar queimando.

Serei rápida para que ele não sinta mais tanta dor.

Não que isso me preocupe, mas se eu fugisse agora, iria deixá-los

confusos e eles iriam investigar o meu comportamento. Então, chegariam

até mim, e eu estaria perdida. Tento agir normalmente, como faria com

qualquer paciente, porém não consigo mover um músculo, por causa do

medo.

Para me deixar mais nervosa ainda, Deméter me olha de uma maneira

intrigante. Quando ele dá um passo à frente, posso ver quão alto, forte e

musculoso ele é. Ele está vestido apenas com uma calça social, sem camisa.

É mesmo de tirar o fôlego. Não sou de admirar homens que não sejam o

meu noivo, entretanto Ricardo não chega nem aos pés desse deus grego.

Seu peitoral exposto, além de uma bela forma física, tem gominhos

definidos e durinhos. O que mostra que ele sempre faz exercícios de

hipertrofia. Também vejo algumas tatuagens, sendo que a maior está em seu

peito. É um leão. É como se ele estivesse rugindo, mostrando bravura,

coragem e bastante força. Já os números em algarismos romanos, eu não sei

o que querem dizer, porém significam alguma coisa para ele. Nos braços

não há tatuagens. Em lugares mais expostos, pelo jeito, não há nenhuma.

Talvez seja melhor eu não o encarar mais. Pode parecer falta de

educação da minha parte, além de indelicadeza.

— Mi guarderà solo? Senza valore! E mi hai detto che questo era il

miglior ospedale di Rio de Janeiro (Ela vai ficar só me olhando?

Imprestável! E você me disse que este era o melhor hospital do Rio de

Janeiro) — seu timbre é feroz.

Posso entender tudo que eles falam, pois nasci na Itália, na Sicília, e

sei falar italiano fluentemente. Mesmo que eu não pratique a língua, jamais

me esqueci das minhas origens.

— C’è qualcosa che non va in questa ragazza. Dovrei chiamare

un’altra infermiera? (Há algo de errado com essa moça. Devo chamar outra

enfermeira?)

— È meglio cercare un altro ospedale (É melhor procurar um outro

hospital) — Deméter lhe diz como se desse uma ordem.

Compreendo o diálogo perfeitamente. Eles estão falando

normalmente, como uma conversa de chefe e empregado. Pelo que posso

perceber, esse ao lado de Deméter deve ser o seu homem de confiança.

Meu Deus! Por isso todos aqueles seguranças lá fora? Mas como eu

poderia imaginar que o meu ex-noivo estaria aqui? Ele não se lembra de

mim? Caso se lembrasse, já teria dado voz para me levarem para me matar.

— Ninguém vai a lugar nenhum até essa bala ser retirada com devidos

cuidados. — Meu lado profissional de saúde, que se preocupa com os

pacientes, falou mais alto. Para a minha sorte, respondi em português.

Seu segurança, ou sei lá o que ele é, parece ser mais tranquilo, mas,

ainda assim, sinto muito medo dos dois.

— Senhorita, será que pode agilizar o processo? — ele pede com

educação.

Essa foi a primeira vez que eles falaram comigo. Ao menos

compreendem o português.

Assinto, nervosa. Estou aflita.

— E ‘una dottoressa? (Ela é a médica?) — o chefe fala como se não

confiasse no meu trabalho, totalmente descrente da minha eficiência.

— No lo so, signore (Não sei, senhor).

— Sembra una buona a nulla che non sa fare niente. Chiedo di essere

assistito da qualcuno che sia qualificato (Ela parece uma imprestável que

não sabe fazer nada. Exijo ser atendido por alguém que seja qualificado).

Eles falam como se eu não estivesse aqui. Desta vez não me contenho.

— Non sono ‘una dottoressa, sono um’infermiera, e molto

competente. Il mio lavoro è pulire la stanza per la dottoressa Nicole, che sta

già arrivando (Não sou médica, sou enfermeira, e muito competente. Meu

trabalho é arrumar a sala para a doutora Nicole, que já está vindo). —

Continuo esbravejando. — Sono abbastanza qualificata, signore, se vuole

saperlo (Sou bastante qualificada, senhor, se deseja saber).

Se tem algo que odeio é que alguém desmereça o meu trabalho ou fale

como se eu não tivesse dado a minha vida estudando para conseguir este

emprego no melhor hospital do Rio de Janeiro. Foram muitas noites em

claro.

Putz! Acabei de cavar a minha própria cova. Respondi em italiano,

mostrando que sei falar o idioma. Pelas expressões deles, os dois estão

surpresos por eu saber a língua.

— Lei parla italiano, signorina? (Fala italiano, senhorita?)

Engulo em seco. Estou perdida. O que farei?

Droga!

Não sei o que responder. Tento falar, no entanto não sai uma palavra.

Ele percebe que estou nervosa.

— È nervosa, signorina? Per caso, il gatto ti ha mangiato la lingua?

Perché se non mi rispondi, il gatto potrebbe davvero mangiarti la lingua

(Está nervosa, senhorita? Por acaso, o gato comeu a sua língua? Porque se

não me responder, o gato pode comer a sua língua de verdade).

Faço uma careta, apavorada. Não sei conter minhas emoções. Nunca

soube. Eu preciso lhe responder o mais rápido possível, ou esse tal “gato”,

que acredito que seja ele mesmo, em vez de comer minha língua, irá

arrancá-la com suas próprias mãos.

— Scusa. Parlo un po’ di italiano. Peccato, a dire il vero. Quindi ci ho

messo un po’ a risponderti (Perdão. Eu falo um pouco de italiano. Muito

mal, para ser sincera. Por isso levei um tempo para lhe responder).

Menti e ainda fingi que não sei falar bem o idioma. Até pausei

algumas palavras, como se tivesse dificuldade de pronunciá-las.

Ele não me parece o tipo de homem que é fácil de enganar. Não é à toa

que é o chefe da Cosa Nostra, o herdeiro de sangue que foi treinado para ser

o melhor.

Pergunto-me como ele levou esse tiro. O que aconteceu para o deixar

ferido?

— Sei falar o seu idioma, a língua portuguesa. — Ele tem sotaque. —

Creio que ficará melhor se nos comunicarmos assim, senhorita Esposito.

Esposito é o nome que está escrito no meu crachá. Beatrice Esposito.

Porém, o “Beatrice” está um pouco apagado e os europeus têm mania de

nos chamar pelo sobrenome.

— Irei chamar outra enfermeira para atendê-lo. Só um instante, por

favor. — Tento sair, mas sua voz me barra imediatamente.

— Espere! — há muita ordem no seu tom. Ele não me parece ser

alguém que gosta de ser desobedecido. — Por que a senhorita mesma não

me atende, já que está aqui e essa é a sua função? — A grosseria em sua

voz parece ser algo natural, como se ele sempre falasse desse modo

autoritário e arrogante.

— O senhor deseja ser atendido por alguém mais qualificada, só estou

atendendo às suas necessidades. — Gaguejei na última parte.

O olhar de Deméter é como o de uma águia que observa

minuciosamente. Ele fareja o meu medo, e eu tenho a leve impressão de que

isso o deixa contente e satisfeito.

— Agora eu quero ser atendido pela senhorita. — O sotaque dele é um

charme.

Santo Pai! Agora estou, mais uma vez, admirando o seu peitoral

definido.

Cautela, Trice.

— Negando atendimento? Os médicos e enfermeiros não fazem um

juramento?

— Tudo bem, eu o atendo, mesmo que o senhor tenha sido grosseiro

comigo e me ofendido no seu idioma.

— Costuma ser assim? Insolente? — ele indaga, revoltado comigo.

— Perdão. Mas se o senhor não se sente confiante com o meu

trabalho, pode ir a outro hospital. A fila lá fora está enorme. Não ocupe a

vaga de quem precisa, se não for ser, ao menos, educado. — Não segurei a

língua e disse tudo que estava pensando.

Perdi a cabeça, só pode ser. Como pude falar assim com o chefe de

uma máfia perigosa? Mesmo que ele pense que eu não sei quem ele é, meu coração dispara.

— Deixe-a trabalhar, senhor. Essa bala em seu braço pode ser perigosa

— o outro homem o alerta.

— Apesar de eu não ser médica, me parece que ela não causará muitos

danos. — Pelo que vi, pude identificar isso. — Primeiro devo aplicar uma

anestesia na ferida. — Preparo o líquido na seringa. — Posso?

Seu olhar queima sobre o meu corpo. Pela primeira vez, não me sinto

constrangida, pois o seu olhar não é de indiferença.

Ele assente com a cabeça, voltando a se sentar depois de nossa

pequena discussão. Não me imagino sendo casada com um homem

grosseiro como ele. Eu já teria perdido a cabeça várias vezes e ele já teria

me matado.

— Pode ser que isso vá doer um pouquinho, mas será rápido. — Puxo

uma cadeira para o lado dele.

Alongo o seu braço na posição que ele deve ficar, com cuidado, para

não fazer pressão sobre a dor, e puxo o carrinho para perto de mim com

tudo pronto.

— Vai ser rápido. Não mexa o braço, por favor. — Insiro a agulha no

ferimento exposto.

Ele nem sequer se moveu. Foi rápido, como eu falei.

Quando retiro a agulha, seu olhar está próximo demais do meu rosto.

O homem é muito bonito, e de perto mais ainda. Falta-me fôlego. Olho-o

como se ele me hipnotizasse de alguma maneira.

Meu estômago está apresentando sensações estranhas. Deve ser

porque não comi nada hoje.

Seu olhar, agora, desce rapidamente pelo meu pescoço e para em meus

seios, que ficam bastante evidentes com este uniforme branco. O branco

não me favorece, mas ele parece estar admirando alguma coisa em mim

neste momento.

— Nem doeu, né? — soo divertida para esconder minha timidez por

ele ainda me olhar.

— Não sinto dor — sua voz rouca e sensual causa um alvoroço em

mim.

Eu queria perguntar como ele levou um tiro, já que ele não tem cara de

quem se mete em brigas de rua, mesmo sendo um mafioso. Mas não posso

julgá-lo só porque o seu rosto é bonito, como se eu não soubesse quem ele

é.

— Eu estava no clube de tiros. — Ele estava lendo os meus

pensamentos. — Marlo errou o alvo, disparou sem perceber.

Marlo? Quem é esse?

— Por sorte, eu não o matei, senhor — o outro homem diz, aliviado.

Marlo Rossi. Eu o ouvi ser chamado de Rossi em algum momento.

— Eu nunca morro, Marlo. — Ele sempre é sério.

— Então, é imortal? — Sem perceber, falei isso alto. Sorrio.

— Não sou imortal, mas costumo ser mais rápido que a bala.

Nossos olhares estão fixos um no outro.

Deméter não sabe quem eu sou realmente, e isso me deixa aliviada.

A porta se abre. A doutora tem pressa, já que hoje será um dia cheio.

— Beatrice, prepare tudo.

Ele prestou atenção quando a doutora pronunciou o meu nome. É

atencioso.

Todo o processo para tirar a sua bala me encanta. Sou fascinada pela

medicina e pela ciência, por isso escolhi esta profissão para cuidar das

pessoas de alguma forma e as ajudar. Todo procedimento exige muita calma

e dedicação. A médica consegue fazer tudo com bastante êxito. Depois de

remover a bala, ela me passa as instruções para lavar o local e dar os

pontos. Segundo ela, o paciente teve sorte de não ter perdido nenhum

movimento do braço.

O homem que o acompanhava, saiu para atender uma ligação.

Restamos apenas eu e ele nesta sala pequena.

— Vamos lá, então. Não vai demorar muito — informo e tomo

assento. Já fiz isso muitas vezes. — Não se preocupe, já fiz isso várias

vezes. A anestesia ainda vai durar alguns minutos, tempo o suficiente para

eu terminar aqui.

Ele não diz nada. Talvez eu fale demais ou ele seja mesmo de poucas

palavras. Acho que um pouco dos dois. Tem algo nele que me intriga, mas

não é o fato de ele ter sido o meu noivo. Eu não sei dizer o que é. Deméter

me faz ir além dos meus pensamentos, levando-me a encarar os seus olhos

negros da mesma forma que ele busca os meus: sem pudor.

— Você é boa. Não sente medo?

Por que ele quer saber sobre os meus medos?

— Medo?

Não compreendi a sua pergunta.

— Nunca errou?

— Nunca. Nem mesmo na faculdade. Sou boa no que faço.

— É verdade — afirma, sem desconfianças, sobre o meu desempenho.

— Você teve muita sorte da bala não ter causado danos mais severos.

Em seu lugar, eu pensaria duas vezes antes de retornar ao clube de tiros.

Será mesmo que foi no clube de tiros?

— Está me dizendo o que fazer? — O seu sotaque é lindo, e com ele

bravo, fica ainda mais. O senhor ranzinza não gosta de conselhos.

— Claro que não. Nem nos conhecemos. Foi apenas um comentário.

— Não gosto que ninguém me diga o que fazer.

— Sorte a sua que ninguém lhe coloca rótulos.

Ele acabou de perceber o anel de noivado em meu dedo.

— Está noiva?

— Sim. Me casarei em breve. — Forço um sorriso.

Por algum motivo, não me senti feliz em falar sobre o meu noivado.

Talvez seja porque o meu noivo não me levou à inauguração da sua loja.

— E você? É casado? — Acredito que eu tenha falado demais. —

Desculpe. Não precisa responder se não quiser.

— Não, não sou casado.

Eu sabia disso, não deveria ter perguntado.

— Nem está noivo? — pergunto só por meio das dúvidas.

— Não estou noivo — responde-me pacificamente.

— Tudo bem. Um dia o amor vai chegar para você. — Sorrio, tímida.

— Prontinho. Agora eu vou ver com a doutora se posso te liberar ou se ela

vai querer observar mais alguma coisa. Licença.

Graças aos céus, consegui sair daquela sala com vida. Óbvio que eu

não voltarei para lhe dar a notícia da liberação, pedirei para outra pessoa fazer isso. Eu só preciso respirar ar livre e avisar à minha mãe que o vi. Ela

passará mal, mas não posso esconder isso dela.

Beatrice

O silêncio predomina no apartamento modesto onde moramos na zona

oeste. Minha mãe terminava de preparar o nosso jantar quando lhe contei

tudo. Ela quase desmaiou, ficou mais pálida que o normal e seus olhos

verdes ficaram apertados e marejados. Eu lhe preparei um copo de água com

açúcar.

— E se ele já souber de nós, querida?

— Como eu disse, mamãe, ele não me reconheceu. Eu tinha 9 anos

quando fomos embora, e o meu noivo não iria se lembrar tanto de mim

assim. Quando eu tinha 9 anos, ele já tinha 23. A senhora acha que ele não

memorizou o rosto de outras mulheres em vez do rostinho de uma criança?

— Me escute, Trice. Vamos embora. Vamos deixar tudo para trás.

Esqueça tudo, querida. Nós precisamos ir embora agora mesmo.

O nervosismo tomou conta dela. Minha mãe já foi uma senhora da

máfia, uma das mulheres mais importantes da Cosa Nostra. Ela sabe do que

eles são capazes.

— Filhinha, eu já vi pessoas serem mortas por muito menos, apenas por

fazerem expressões faciais que não agradaram aos senhores da elite. Imagina

o que fariam contra nós duas, que fugimos. Seu pai tinha um dos cargos mais

importantes na hierarquia, então eles se sentiram ofendidos com a nossa

fuga. Rompemos um acordo importante. A nossa punição será a morte,

amore della mia vita (amor da minha vida).

Mamãe pode estar até certa, pois é uma possibilidade eles já saberem

de tudo, mas não acredito muito que seja verdade. Se eles soubessem quem

eu sou, já teriam vindo atrás de mim. Teriam me esperado sair do trabalho e

me colocado dentro de um carro para me levarem a um lugar onde me

matariam. Neste exato momento, eu já não estaria mais viva.

— Ele não me reconheceu, mamãe — asseguro mais uma vez.

— Não pode ter certeza, meu anjo. Eu sei quem eles são e sei

exatamente do que são capazes. Eles jamais poupariam uma vida. Somos

consideradas “traidoras”. Você não consegue me entender, meu amor.

— Quer dizer que uma mãe levar sua filha inocente para crescer longe

de toda aquela vida ilegal é considerado errado aos olhos deles?

— Temos que ir embora — reforça novamente, levando sua mão ao

peito.

Ela reclamou que está doendo essa região. Acredito que seja por causa

do medo que a cerca neste instante. Voltar para aquela vida, da qual ela fugiu

por todos esses anos, assusta-a, principalmente por saber que seríamos

mortas.

— Não podemos ir embora, mamãe. Eu não posso ir. E o meu noivo?

Por mais que nós não estejamos indo tão bem, iremos nos casar em

quatro meses. Tudo já está sendo preparado. Será uma cerimônia simples

para os amigos mais íntimos e nossos familiares. No meu caso, apenas a

minha mãe. Ela é minha única família.

— Ricardo fica para trás. Meu amor, você precisa pensar bem sobre

esse casamento. Que tipo de noivo não leva a noiva à inauguração da sua

loja? O que ele fez com você não se faz com uma mulher que se diz amar. —

Ela tem razão. Ainda estou magoada por isso. Ele também não me enviou

nenhuma mensagem. — Aquele homem sempre está aqui e até dorme nesta

casa, mas não faz por onde para te priorizar. Penso que ele só deseja ter sexo

com você.

— Mamãe, não é isso. Ele sempre dorme aqui, mas no colchão,

enquanto eu durmo na minha cama. Nunca fizemos sexo.

Ela me olha, preocupada. Eu já havia lhe dito que nunca transamos,

mas ela queria saber se eu não menti.

— Oh, minha querida, eu estou tão preocupada. Com Deméter na

cidade, ele pode vir atrás de nós duas. Atrás de você, meu bem.

Respiro fundo. Por mais nervosa que eu esteja, não acredito que ele

possa vir atrás de mim, senão já teria vindo. Estou confiante de que aquela

foi a última vez que nos vimos, que não nos veremos mais.

Percebo que o meu noivo está parado próximo à porta. Ele está nos

observando com atenção e está surpreso por ver que minha mãe está

chorando. Logo demonstra preocupação quando percebe que o vimos.

— Senhora, está bem? Precisa ir ao médico?

Mamãe não gosta dele, e isso não é novidade para mim. No entanto, ela

sempre o tratou muito bem.

— Estou bem, apenas tive uma queda de pressão. Ela já está

normalizando.

— Devo voltar em outra hora?

— Não. Fique para jantar, meu bem — peço.

Quero conversar com ele. Faz muitos dias que não temos um diálogo

normal como namorados apaixonados.

— Tudo bem, irei ficar. — Ele sorri, animado com a ideia do jantar. Sei

que ele adora a comida da mamãe. — Quem é esse tal de Deméter? É

parente de vocês? Desculpem a pergunta, é que ouvi as duas falando que ele

pode vir atrás de vocês.

Putz! Agora preciso inventar uma história convincente.

— Deméter é parente do meu pai. Se lembra da minha família que

viveu na Itália? Mamãe disse que papai não gostava dele, por isso não

queremos nenhum tipo de contato com ele. Agora eu vou servir a mesa. —

Dou um selinho nele e vou para a cozinha com minha mãe arrumar tudo.

Ricardo vai tomar banho. Estou louca para perguntar como foi o seu

primeiro dia na loja. Quero saber exatamente tudo.

Durante o jantar, ele se mostra muito interessado nas mensagens que

recebe em seu celular. Minha mãe não ficou para comer conosco, foi se

deitar com a desculpa de que estava com dor de cabeça. Eu sei que era outra

coisa, mas o meu noivo não.

— Amor, deixa esse celular de lado.

— São assuntos de trabalho, meu amor. Desculpe. — Ele já me disse

isso, mas odeio comer com alguém que não me dá atenção. — A comida está

deliciosa, mas eu vou precisar sair. Tenho que resolver alguns assuntos da

loja.

— O quê? De noite? Amor, são oito e meia.

— Um caminhão com entregas que iria chegar somente amanhã, está a

cinco quilômetros da minha loja. Acabei de ser avisado. Preciso ir, amor. —

Ele beija a minha bochecha, apressado, e consegue perceber que estou triste.

— Não se preocupe. Amanhã ainda está de pé a nossa ida a balada para

comemorarmos o meu aniversário. Minha irmã está ansiosa para isso.

Aposto que vocês duas estão planejando alguma coisa.

Sim, estamos. Nossos amigos estarão lá, inclusive alguns da faculdade

que há tempos não víamos. As amigas dele também estarão. Não tenho

ciúme, apenas não simpatizo com elas, que são metidas e esnobes.

— Beijo. Se cuida. Te amo.

Ele sai sem dizer uma palavra. Ultimamente, dizer que o amo tem me

deixado desanimada. Não sei explicar. Talvez possa ser os medos e

incertezas do casamento e toda a pressão dos últimos meses. Eu gosto dele,

por isso aceitei o seu pedido. Tenho certeza de que ele vai mudar e que voltará a ser o mesmo cara divertido de antes, que me levava para jantares

românticos e me trazia flores. Aquele homem adormecido despertará.

Esperei ouvir um “eu te amo” de volta, só que ele estava apressado

demais para isso. A loja o consome muito e todos os preparativos antes de

abri-la o deixou assim, distante de mim. Mas a nossa loja se sairá muito

bem. Mesmo que ele sempre diga “minha loja”, somos praticamente sócios.

Peguei muitos empréstimos para o ajudar. Empréstimos que ainda pago.

Passo no quarto de mamãe. Ela dorme depois de ter tomado o calmante.

Foi melhor assim. Desse jeito, ela não ficará mais nervosa, pensando

somente no pior.

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