Era um daqueles dias ensolarados, em que as pessoas se protegiam do calor com sombrinhas e chapéus, exibindo sorrisos largos enquanto caminhavam pelas calçadas movimentadas. No entanto, naquela tarde, o hospital permanecia gelado. Lucas, por vezes, se questionava internamente sobre o quanto as bactérias detestavam o ambiente, se sofriam tanto quanto ele com o frio que permeava o lugar. Ele estava inquieto. Com um som seco, uma porta próxima se abriu, revelando uma mulher de meia-idade em uma cadeira de rodas. Seu rosto exibia marcas de cansaço, rugas profundas que a envelheciam, uma pele notavelmente pálida e olheiras profundas sob os olhos. Lucas observou seu corpo frágil, parecia estar cinco vezes mais magra do que da última vez que a vira. No entanto, assim como antes, nos olhos estreitos, permanecia aquele olhar indiferente. Atrás dela, um homem alto a acompanhava. Ele olhava à frente, como se Lucas não existisse, mas ao se levantar e bloquear sua passagem, não teve escolha senão fixar os olhos no outro homem.
— Como está a tia? - Ele perguntou solenemente.
— bem.
Era uma resposta breve, fria e direta, como todas as vezes em que Marcelo se dirigia a Lucas, como se fossem completos estranhos. Como de costume, Lucas riu, murmurando um "que ótimo". Adriana, a mulher na cadeira de rodas, parecia alheia a situação, recostado-se completamente na cadeira, como se o mundo além de seus pensamentos não a afetasse. No quarto do hospital, Marcelo colocou cuidadosamente a mulher na cama, como se temesse quebra-la.
Lucas observou todo o processo com indiferença, ciente do quanto Marcelo o desprezava. Ele não podia mandá-lo embora, não quando ambos sabiam que era graças a Lucas que Adriana havia vivido por tanto tempo, e ele controlava, até onde podia, quanto tempo ela ainda viveria.
— A medicação está sendo efetiva até certo ponto. Se não fosse pelo transplante de urgência, acredito que a Sra. Adriana não teria tido uma recuperação tão tranquila. Mas o tratamento está apenas começando, é necessário que ela permaneça internada para que o processo seja monitorado. A senhora Adriana está em uma condição delicada...
No corredor, a alguns passos de Lucas, o médico aconselhava calmamente. A expressão de Marcelo era dura, mas havia uma pitada de preocupação em seus olhos. Em um devaneio, Lucas se perguntou se fosse ele quem estivesse ali, deitado, definhando em direção a uma morte possível, se Marcelo agiria de alguma forma. Seus lábios se torceram e ele fechou os olhos levemente... Ele conhecia a resposta. Se fosse ele... Certamente, Marcelo não poderia ficar mais feliz, todos os seus problemas seriam resolvidos... Ou será que ele iria visitá-lo? Levaria flores, diria para se recuperar rápido? Ah, claro que não... Se uma coisa dessas acontecesse, ele teria certeza, ou Marcelo estaria completamente enlouquecido, ou outra pessoa teria tomado posse de seu corpo.
Lucas permanecia no quarto, observando a figura de Tia Adriana. A atmosfera entre eles era gélida. Enquanto a mulher enfrentava inúmeras adversidades, seu semblante permanecia sereno, sem um franzir de testa.
Neste momento, um lampejo de memória o levou de volta a uma época distante. Ele se lembrou de um dia em que, ainda criança, tentou preparar uma lasanha. O desastre quase incendiou a casa, trazendo a ira de seu pai alcoólatra que o deixou marcado de hematomas verde e azul por todo o corpo. Dias depois, Tia Adriana lhe apresentou um livro de receitas com um sorriso suave. Não havia outro motivo para querer preparar uma lasanha, senão que, certa vez, Marcelo disse a ele que não era ruim, e desde então, se tornou sua obsessão a fim de agrada-lo.
Apesar de sua natureza reservada, Marcelo, na época uma criança séria, se esforçou para ajudar Lucas a preparar a lasanha em segredo. O sentimento de farinha entre os dedos e a colaboração silenciosa marcaram Lucas profundamente. Naquele momento, ele encontrou um vislumbre daquela família que tanto ansiava, mas que ainda, de alguma forma, parecia fora de alcance.
Ao retornar do devaneio, Lucas encarou a realidade da situação forçada que se tornara. Um suspiro de resignação escapou de seus lábios. A lembrança daquela lasanha, tão repleta de significado, agora parecia uma dolorosa ironia de como ele tentara forçar um lugar para si mesmo nesse estranho arranjo familiar.
O caminho de volta do hospital era permeado por um silêncio pesado, como se as palavras tivessem sido banidas do interior do carro. Tia Adriana, que Lucas mantinha no hospital com certa indiferença, parecia um mero fantasma de preocupação em seu retrovisor.
Ao chegarem em casa, Marcelo, que não trocou sequer uma palavra, desapareceu no quarto, deixando um eco silencioso no ar.
Minutos depois, Marcelo desceu até a porta. Lucas levantou o olhar, observando pelo canto dos olhos as chaves balançando descaradamente entre seus dedos.
— Vai a algum lugar?
A resposta do outro homem veio rapidamente . "Aonde eu for, não é da sua conta."
— Você realmente acha que não me deve satisfações? Voc - Antes que Lucas terminasse de falar, a porta se fechou com um estrondo.
Ele estava sozinho novamente.
Não havia mais o que fazer. A casa estava vazia, não havia uma alma viva dentro daqueles muros, nem mesmo tia Adriana, que o sufocava nas menores oportunidades, jazia silenciosa em outro lugar, não lhe dando mesmo uma olhada. Entrando na cozinha, Lucas grunhiu pesadamente. As velhas lembranças se misturaram à massa da lasanha, os dedos encontrando consolo na textura familiar da farinha. Era como se aquele ato, repleto de significado, fosse uma tentativa de recuperar um tempo que escapava de suas mãos.
A meia-noite se aproximou, o tic-tac do relógio ampliou o vazio ao seu redor. O quarto de Marcelo permanecia vazio, a ausência dele ecoando na escuridão da casa.
Na manhã seguinte, a casa estava impregnada de um silêncio quase palpável, como se a própria atmosfera se enclausurasse naquele vazio. O aroma do café recém-preparado flutuava no ar, um convite frágil em meio à tensão que pairava. Lucas não ousava perturbar o silêncio, apenas seguia o ritual com a precisão de quem conhece cada gesto de cor.
Marcelo surgiu em algum momento, ninguém sabia quando ele havia chegado. Ele emergiu um rosto impassível, sem trocar olhares com Lucas. Uma barreira invisível os separava, e cada passo de Marcelo era um eco surdo dessa distância.
— Marcelo.
Antes que Marcelo voltasse como uma doninha para seu quarto, Lucas o parou.
— Eu vi os remédios, apenas coma. A única coisa que fiz essa manhã foi o café, a comida foi comprada.
Marcelo estalou a língua e lançou um olhar frio, mas inesperadamente caminhou em direção a cozinha.
O café da manhã foi servido em meio a um ballet silencioso de gestos fugazes. As palavras, mesmo que quisessem, pareciam condenadas a permanecer em suas gargantas. A apatia era uma presença constante, como se tivessem aprendido a conviver com ela, aceitando-a como parte indissociável de sua dinâmica.
— Você foi ver alguém? - Lucas perguntou, sua voz carregada de frugalidade.
Marcelo respondeu com um sorriso de desdém.
O celular de Marcelo repousava sobre a mesa, emitindo um zumbido que cortou o silêncio. Ao atender, a voz de Gregório, animada, ecoou pelo cômodo.
— Marcelo! A festa de ontem foi sensacional, precisamos combinar mais vezes! - A voz viva se contrapunha com o clima pesado da sala.
Marcelo ouviu atentamente, seu olhar desviando-se para evitar os olhos inquisitivos de Lucas. A proposta de Gregório era tentadora.
— O nome dela é Luana, vocês até beberam juntos antes! Escute, ela é irmã daquele advogado, Joel. Se você se envolver com ela, nunca mais terá que trabalhar na sua vida! - Uma gargalhada seguida de uma tosse foi ouvida através do telefone.
Marcelo olhou levemente para Lucas, que o encarava sem piscar, movendo os lábios e soletrando lentamente... "A-DRI-ANA".
— estou com Lucas - ele respondeu - todos no círculo sabem disso.
— Pelo amor de Deus, Marcelo! Estamos falando de uma gostosa aqui! Uma gostosa! Você quer mesmo trocar a Luana pelo Lucas? Sinceramente, eu não perguntaria se fosse outra pessoa. Você sabe que eu não tenho nada contra, você me conhece, eu até gosto de provar uma vez ou outra. Mas o Lucas!? Hahahahah você não acha que isso já durou tempo demais? - provocou, sua voz cheia de falsa sinceridade.
— Não estou saindo.
— espera, espera!! Hoje a noite, ok? As 21:00, a Luana estará lá, e um passarinho me contou que ela está encantada por você! Seu garanhão hahaha *tosse tosse* ...se você não aparecer, eu vou ficar desapontado. - a ligação terminou com um leve farfalhar vindo do outro lado.
Quando Marcelo notou, Lucas já havia se levantando. Não havia expressão em seu rosto. Ele andou calmamente até o armário, encheu um copo d'água até o meio e o bebeu. Havia apenas um detalhe insignificante em seu corpo rígido, algo que apenas Marcelo, que o conhecia como a palma de sua mão, notaria.
Seus lábios estavam levemente franzidos.
— Pensei que tínhamos um acordo - Lucas se sentou, todo seu corpo emitindo um cansaço doloroso. Eram 5 anos, ele pensou que se tivesse cinco anos, ele colocaria Marcelo na palma da mão. Que ele o teria, não importa o quanto o outro o tivesse recusado. Mas não foi o que aconteceu, Marcelo o negava, eles não se tocavam, não conversavam e a única interação que tinham era as discussões por viverem na mesma casa, ou ninharias relativas a tia Adriana.
— um acordo... - Marcelo riu, ele riu até que uma camada aquosa cobrisse seus olhos. Geralmente, não havia expressão em seu rosto. Mas parecia que alguma coisa na ação de Lucas o tinha motivado. Ele se levantou lentamente e se aproximou de Lucas, sentado na cadeira, colocando um braço na mesa e a outra na parte superior da cadeira, de modo que Lucas não pudesse subir ou descer.
— Você não nota... o quão desprezível você é? O quanto eu te abomino? - Ele continuou, dizendo entre os dentes - não se faça da porra da vítima aqui, Lucas. Sabemos o quão baixo e imundo você é, e o quão longe você vai para satisfazer esses seus desejos egoístas... E aquele vídeo, e tudo o que você fez, você realmente vai me olhar com essa maldita expressão, como se eu fosse o cara mal?"
O desdém presente em seus olhos injetados de sangue era palpável.
Lucas se levantou com um pulo, apesar das restrições de Marcelo, seu olhar não carregava tristeza ou culpa, apenas uma apatia impenetrável.
— eu não me importo. Ele riu, mas Marcelo provavelmente nunca saberia o real sentimento por trás desse gesto. — Temos um acordo, você não tem dinheiro para pagar o hospital para tia Adriana, as cirurgias, os remédios, os tratamentos, e eu tenho. Aquele vídeo é o de menos. Eu te dei uma escolha, você poderia ter me recusado antes, mas você me escolheu. Você escutou? Você está aqui por suas próprias pernas, se você tiver capacidade, pode fazer algo por ela você mesmo.
Ele não se lembrava há quanto tempo havia mantido uma conversa tão longa com Marcelo, é uma pena que, se ele fosse escolher, provavelmente não seria assim.
Depois de alguns anos, ele havia notado que quanto menos conversa paralela tentasse manter com Marcelo, menos discussões haveria. Não importa o tópico ou conteúdo, toda e cada frase acabava por levá-los a uma discussão sem fim. Para tentar manter a paz, ele escolheu recuar. Mas ouvindo Marcelo, depois de tanto tempo voltar a trazer certas coisas a tona, um desconforto absurdo o tomou por dentro, a ponto de levá-lo a falar coisas que provavelmente se arrependeria depois.
— Ouça bem, se você ousar dormir com mais alguém... Eu juro que a morte daquela mulher não terá outro culpado se não você.
Jamais ele ousaria levantar a voz para Marcelo em outro momento. Nos últimos cinco anos, ele tinha agido como um santo. Ele era permissivo, abaixava a cabeça, e da maior a menor coisa, tudo era deixado de lado. Como se apenas manter a presença de Marcelo hora outra naquela casa fosse o maior resultado de seu acordo. Mas havia um certo cansaço em seus ombros, ele sabia que Marcelo dormia com outras pessoas. Ele ainda tentava manter algum orgulho, não era para ele que o homem voltaria no final do dia? Mas Marcelo nunca levantou sequer uma palavra de gentileza, o Marcelo de antes de cinco atrás e o Marcelo de hoje eram pessoas completamente diferentes.
Lucas tentou sair apressado, esbarrando no ombro de Marcelo. Mas antes de sequer fechar os olhos, sentiu seu braço sendo puxado.
— Me solte...
Marcelo o segurou ainda mais forte.
— me solta porra!
A mão que o segurava vacilou por um segundo antes de o deixar ir. Ele nem imaginava qual era a expressão de Marcelo, nunca tradado com condescendência por ele, sendo xingado dessa maneira. Entretanto, no momento em que Marcelo o soltou, aliado a força que Lucas usou para sair daquela sala o mais rápido possível, o fez colidir com a mesa. A garrafa de café quente voou, despejando seu conteúdo ardente sobre a pele exposta de Lucas. Um gemido de dor rasgou o ar.
Em um instante, a sala voltou ao silêncio anterior. O aroma amargo do café queimado pairava no ambiente.
Marcelo olhou brevemente para o homem no chão por um segundo antes de agir. Ele agarrou um pano, molhou-o com água fria e o jogou para Lucas.
A porta do quarto se fechou novamente, o som ecoando como um suspiro silencioso.
O dia continuou, passando como um espectro fugaz, com horas se esticando em monotonia. A tarde de sol lá fora contrastava com a quietude opressiva dentro de casa. Cada som parecia amplificado.
Ao se deitar na cama, Lucas sentiu um peso sobre seu peito. O silêncio da noite o envolveu, abraçando-o como uma presença familiar e, ao mesmo tempo, sufocante. Ele se perguntou se um dia seria possível quebrar aquele ciclo, se seria possível resgatar algo que se perdeu no labirinto do tempo. Ele riu, lágrimas escorrendo, ele sabia, tudo já estava perdido. Seja Marcelo, ou qualquer resquício de esperança para com sua vida miserável nesta terra, já havia sido perdido.
Quando o sol brilhou alto no céu, Lucas já havia se direcionado ao hospital. Havia uma atmosfera pacífica indisfarçável ao se encontrar de frente com aquele lugar, como uma mão silenciosa pacificadora, que o acariciava e o sufocava lentamente. Um buquê de crisântemos jazia silenciosamente em seus braços. A recepcionista avistou o rapaz de longe, seus olhos subiram e desceram secretamente, imaginando quem era a mulher afortunada que levou esse homem no bolso. Olhando para seu perfil sereno, seu terno perfeitamente liso que, aparentemente, valia alguns meses do seu salário, ela abriu um sorriso profissional. Para sua surpresa, a mulher que o esperava não era outra se não uma antiga residente da localidade. Ela era conhecida por ser a mãe de um grande figurão, entretanto, as visitas do homem a sua frente não eram frequentes em seu turno, desde que ela se lembraria se visse um rosto tão bonito.
Lucas estava apático. Quando chegou a porta do quarto de Adriana, seus dedos tremeram um instante antes de tocar a maçaneta. Havia uma voz abafada do outro lado da porta, apenas uma voz quebrada com frases desconexas chegavam aos ouvidos de Lucas. Quando ele tocou a maçaneta, a porta foi aberta por dentro. Quando a enfermeira o viu, deu um leve sorriso profissional, pediu licença e se afastou para fora do quarto, deixando apenas dois indivíduos na sala. A mulher na cama, que ainda carregava resquícios de serenidade, lentamente esmaeceu sua expressão. Lucas levou as flores e as mergulhou no vaso próximo a janela, ele pegou silenciosamente os antigos crisântemos que havia levado anteriormente, quase completamente sem vida e brilho, e as jogou na lata de lixo, o som metálico cortou o ar na sala fria.
Adriana observou a movimentação em silêncio, pela primeira vez, ela direcionou um momento de seu interesse para a cena peculiar. O homem sentou na poltrona junto a parede, sem dizer uma palavra.
Ambos não tinham outra forma de passar o tempo. Os dois, um silencioso e outro apático, abriram os livros presentes no pequeno criado mudo ao lado da cama, como se a presença um do outro não existisse.
Depois de um tempo, como se tivesse perdido o interesse, Adriana deixou o livro fino de lado. Ela virou os olhos e encarou profundamente as raízes dos crisântemos submersos na água levemente esverdeada, baixou levemente os cílios e, como se tivesse tomado uma decisão, virou levemente o rosto, apagando qualquer resquícios de emoções em sua expressão vazia.
De repente, uma voz quebrou a atmosfera pesada. Uma voz suave, porém, carregada de apatia.
— Eu estive pensando em você...
Lucas não desviou o olhar do livro em seus braços, como se não tivesse ouvidos.
— pensei no passado, eu não me lembrava muito bem... Mas agora, lembro perfeitamente.
— Dizem que pessoas em estágio de quase morte tendem a elevar-se em seus estados mais sãs.
O homem não respondeu.
— Lembro-me de Marcelo, quando ele roubou dinheiro da bolsa de Gregório. Você estava doente, precisava de remédios com urgência...
Lucas não disse uma palavra, mas onde Adriana não poderia ver, seus dedos pressionavam duramente a página fina do livro em suas mãos.
— Ele comprou antipiréticos, comprimidos para dor, e uma bolsa de água quente." A mulher olhou para algum lugar, como se tentasse se recordar mais profundamente dos eventos do passado. - Ele cuidou de você pela madrugada inteira, eu vi. Naquela tarde, eu havia usado cocaína. Eu sabia que você estava doente, mas comprei mesmo assim. O dinheiro, eu tinha pegado da carteira de Gregório. Ainda havia muito, ele provavelmente teve sorte jogando naquele maldito casarão, o resto do dinheiro que estava lá, eu também iria usar para comprar mais a noite, mas Marcelo foi mas rápido que eu...
— Quando Gregório voltou, e notou que o dinheiro havia desaparecido, ele estava irado. Você não se lembra, ele já sabia o que eu estava usando, mas eu disse que havia parado. Eu não poderia dizer que havia voltado outra vez, então, eu disse que você pegou - Ela olhou para Lucas, o homem não levantou a cabeça em nenhum momento, como se estivesse completamente absorto pela leitura.
— Marcelo estava na escola... Ele tinha, 12? 13 anos? Eu não me lembro bem, mas lembro de você. Você mal tinha se recuperado da noite anterior. Gregório mal ficava em casa, e eu não cuidava nem de mim mesmo. Além de Marcelo, quem olharia para você?
— Mas não queríamos nos livrar de você, recebíamos R$:400 do governo, todos os meses..."
— Mas isso não impediu de Gregório espanca-lo a ponto de quebrar um braço e quase morrer"
Adriana parou por um segundo, finalmente vendo as veias latejando nas têmporas de Lucas. Seus lábios se curvaram levemente, mas havia um sentimento indescritível em seus olhos, enquanto suas unhas cravavam imperceptívelmente em sua carne.
— Seu pai era um homem su-...
Uma voz fria masculina cortou o ar, não era alta ou zangada. Mas carregava um tom gélido quase palpável. "Seu marido".
Adriana enrijeceu, antes de relaxar os músculos lentamente. Ela sorriu.
— sim, meu marido era um homem sujo.
— Quando ele notou que o dinheiro havia sido perdido, e não havia mais nada que pudesse fazer para recupera-lo, ele teve uma ideia.
Nesse momento, Adriana franziu levemente a testa.
— No casarão, o antro obsceno onde ele corria todas as noites, jogando e fazendo coisas indescritíveis, havia um homem com uma fama indiscreta, mas que tinha muito dinheiro.
Antes mesmo de Adriana terminar sua frase, Lucas se levantou. Comparado a sua calma anterior, esse movimento fora brusco o suficiente para Adriana erguer as sobrancelhas. Apesar de sua expressão impassível, o homem tinha olhos vermelhos pesados, suas sombrancelhas profundamente franzidas.
Ele deu uma risada fria.
— Eu não sei como sua cabeça estúpida pensa, mas você pode parar por aí.
Adriana baixou os cílios e desviou o olhar para a Janela, um longo tempo havia passado, e uma brisa suave balançava as cortinhas de fundo branco.
— Eu sei que você se lembra, ele tinha uma má fama com crianças...
Lucas sentiu um fio se romper dentro de sua cabeça. Um leve tremor o tomou por dentro do peito, um frio avassalador preenchia seu estômago, arrepiando todos os poros de seu corpo.
— Dá para você calar a porra da sua boca!?
Seu interior estava inquieto, ele não queria sentar ou ficar em pé. A presença daquela mulher parecia lançar uma corda em seu pescoço, apertando-o lentamente. Ele não entendia seu objetivo, não havia ódio em suas palavras, mas também não havia culpa, não havia gentileza, muito menos pena. Como se estivesse falando da vida de outra pessoa, não da criança que ela criou com as próprias mãos.
Toda essa conversa estava destinada a ser levada pela brisa amena que entrava pela janela. Mas quando Marcelo abriu a porta, a única coisa que ele ouviu foram as palavras duras de Lucas.
Um silêncio estranho pairou no ar. Antes que qualquer palavra fosse dita, Marcelo agarrou Lucas pelo colarinho. Seu aperto era pesado, como se fosse quebrar seu pescoço ali mesmo. Seu olhar profundo, como se quiser criar um buraco na testa do outro homem. Ele olhou para os olhos levemente vermelhos e olheiras profundas de Lucas, e o arrastou bruscamente para longe do quarto. Lucas não disse uma palavra.
Marcelo puxava seu braço como se estivesse carregando um fardo. Seus passos eram longos e apressados, mas não era uma visão incomum. Pela primeira vez, Lucas não se sentiu interiormente nervoso por essa cena recorrente. Na verdade, ele se sentiu patético, como se observasse seu próprio eu de longe, como um transeunte, vendo um macaco dançando desesperado por atenção na frente de uma plateia com olhos fechados.
Dentro do carro, apenas o motor rígido era audível. Ainda era manhã, mas as ruas estavam inesperadamente pacíficas, como se a única tensão existente no mundo tivesse sido sugada para dentro daquele carro. Olhando para o perfil lateral de Marcelo, ele não era capaz de discernir sua tristeza ou alegria, mas olhando para a firmeza que ele usava para segurar o volante, ele poderia imaginar o turbilhão de emoções que borbulhavam no estômago do homem.
Rompendo o silêncio no carro, ele perguntou.
— você está com raiva?
Marcelo virou o rosto, seu olhar duro.
— Eu deveria estar com raiva?
Lucas observou os olhos do homem antes que o outro virasse o rosto com uma expressão complicada. Ele não conseguia entender, normalmente, Marcelo se voltaria contra ele, não importa quem ou quantas pessoas estivessem presentes, o humilhando das piores formas que conseguisse pensar.
Mas não demorou muito para que caísse em si. Lucas riu interiormente, ele segurou a testa dolorida. É claro, Adriana estava em um estado delicado, a aquiescência recente de Marcelo não tinha outro motivo se não se assegurar que Adriana não correria nenhum risco de permanecer com seus atuais privilégios. Apesar de seu vigor ao declarar tantas palavras hoje, seu estado era delicado, havia uma situação tanto promissora quanto regressiva, e ninguém sabia o quanto ela ainda iria durar.
Quando chegaram em casa, Marcelo o levou até o quarto. Lucas não estava com pressa, ele se sentou na cama e observou o outro homem, esperando qualquer que fosse a reação da outra parte. Apesar de tudo, ainda havia uma centelha queimando fervorosamente em algum lugar dentro de seu peito. Tentando suprimir rapidamente essa sensação, ele notou que era inútil. Ele amava Marcelo, isso era fato, ele amava Marcelo há tanto tempo que sequer se lembrava quando começara a ter sentimentos pelo homem que poderia chamar de irmão, mesmo que não tivessem relações de sangue.
Ele se lembrava claramente de Marcelo, há cinco anos, enquanto pescavam no dique. Eles se sentaram naquela ponte antiquada de madeira, enquanto mergulhavam os pés na água fria, e conversavam livremente. A expressão de Marcelo era suave, carregava uma intimidade intrínseca que apenas relações íntimas poderiam ter, eles compartilhavam uma atmosfera invejável, e qualquer um ficaria admirado com o quão próximos eram aqueles irmãos.
Olhando para Marcelo agora, como se tivesse preso por um fio, a leve centelha persistente se apagou.
— Diga para Bernardo repensar.
Lucas levantou a sobrancelha, ele não sabia do que Marcelo estava falando. Dessa vez, ele não estava fingindo.
— Não acha que eu deveria saber sobre o que ele deve repensar?
Marcelo piscou, sua expressão enrijeceu por um segundo antes de levantar os lábios em auto depreciação.
Ele respirou fundo e se obrigou a falar em um tom suave.
— Esse emprego... Não o tire de mim também.
Lucas percebeu... Para manter Marcelo em suas mãos, e como forma de humilhá-lo, ele o fez perder o emprego algumas vezes. Não era difícil, com sua influência e alguns contatos, Marcelo sequer era aceito em uma loja de conveniência se Lucas não permitisse, sua obsessão era nítida, tanto que ele próprio já havia percebido.
Mas dessa vez, ele não tinha feito nada. Mas tinha um palpite. Ele não falou para Marcelo, mas ergueu levemente os cantos dos lábios, como se debochace do outro homem.
Marcelo observou a cena sentindo um fogo crepitante crescendo dentro de seu peito. Havia uma sensação indescritível acumulada por dentro. Seja ódio, frustração ou qualquer outro sentimento sufocante, estava entrando em erupção.
Lucas observou o homem se aproximar rapidamente, ele segurou seu pescoço sem nenhuma força, mas havia uma influência invisível que o fazia se arrepiar dos pés à cabeça. Ele estava desconfortável.
— E se eu tiver feito, e então? Você já tem o dinheiro que eu deposito na sua conta, é mais que suficiente para se divertir por aí como um vagabundo como você fa-
Um barulho ecoou dentro do quarto.
Lucas segurou o rosto com a palma. Ele arregalou os olhos levemente surpresos, mas por seu rosto ter sido virado com o impacto, não foi capturado por Marcelo, que viu apenas a risada de desdém que saiu dos lábios do homem.
Quando criança, Marcelo era um menino intrigante. Ele não era extrovertido, não era curioso, e muito menos trabalhoso de se conviver. Se os adultos ao seu redor lhe dessem um sinônimo, com certeza seria "comportado". Ele usava a maior parte do seu tempo livre para estudar, a outra parte usava para cuidar de sua mãe drogada, fugir de seu pai alcoólatra e conviver pacificamente com Lucas, tentando manter o que restava de sua casa em ordem.
Quando era adolescente, após a morte de Gregório e as pendências do homem no casarão, ele teve que trabalhar arduamente para conseguir quitar as dívidas, que foram pagas apenas quando Lucas resolveu se envolver de volta com aquela família. Foi quando o pesadelo de ambos começou.
Marcelo nunca foi um vagabundo, como ele sugeriu. Na verdade, ele sempre foi trabalhador. Se houvesse uma figura que ele invejava e aspirava quando criança, com certeza ele pensaria nessa pessoa. Seja isso ou qualquer outra coisa que viesse de Marcelo, ele veria com um halo celestial, como se o homem carregasse algum tipo de chama cintilante, e ele, como uma mariposa, inevitavelmente seria atraído em direção às chamas, queimando-se até às cinzas.
Sentindo o aperto em seu pescoço, Lucas abriu os lábios levemente e disse uma frase que Marcelo com certeza recusaria com ardor.
— eu falarei com ele, contando que você tire suas roupas agora...
Marcelo o soltou, seus olhos lançando facas em direção a Lucas. Inesperadamente, ele começou a desabotoar a camisa.
Notando a atitude de Marcelo, Lucas arregalou os olhos. Marcelo não via uma expressão tão vivida no rosto do homem há anos, o fogo no seu peito se acalmou rapidamente. Ele largou os botões e soltou um som zombeteiro.
Prostituto
Ele sussurrou.
Lucas travou, observando o homem sair pela porta e deixá-lo sozinho no quarto.
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