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Reino De Rosas Em Chamas

Capítulo 1

Freya...

 A fina camada de gelo que começará a se formar, na noite passada etc.. na noite passada havia se tornado uma grossa camada de gelo quando acordei pela manhã. Era o primeiro dia de inverno depois de um longo e refrescante outono. E enquanto olhava pela pequena janela da nossa pequena cozinha acoplada a sala de nosso pequeno chalé, eu me vi pensando como faria para conseguir caça com toda aquela camada de gelo.

 O inverno era a pior estação do ano para mim, pouca caça e pouco comércio, era difícil conseguir comida ou dinheiro. Tentei sem sucesso pensar positivamente, pelo menos ainda tínhamos as economias do outono, o que é uma benção considerando que minha irmã está louca por um vestido de seda bordado que ela viu na semana passada.

 Eu me odiava por ser a pessoa que nega a elas tais luxos, me odiava por fazer tal coisa, mas não havia outra maneira de guardar economias o bastante para não morrermos de fome durante o inverno. O sol ainda não havia nascido e todos na casa ainda dormiam. Minhas irmãs aconchegadas juntas em uma cama que se tornara pequena demais para elas e meu pai no fim do corredor. Não que ele saísse daquela cama para algo nos últimos quatro anos.

 Eu não culpava meu pai por ter que sair antes do galo cantar para caçar, ou por ter que pechinchar na pequena feira tumultuada no meio da cidade para conseguir algumas sementes, pães e roupas novas para minhas irmãs. Não o culpava por fazer isso desde os meus quatorze anos, mas eu o culpava por fazer minhas irmãs passar por isso, vê-lo deitado naquela cama, vê-lo desistir da vida depois que mamãe morreu — vê-lo desistir de nós.

 Soltei um longo e pesado suspiro quando vesti minha capa e peguei a pequena bolsa de couro com uma maçã e um cantil, tentei não ficar melancólica com o frio que parecia disposto a me rasgar em dois assim que eu passasse pela soleira da porta e tomei um rompante de coragem saindo sem pensar muito sobre a neve e o vento frio que bateu em meu rosto como dedos finos e gelados.

 Caminhei para dentro da floresta traçando a trilha que sumira sob a neve, trilha essa que eu já havia decorado como se fizesse parte de nosso chalé. Continuei indo mais e mais fundo na floresta tentando ignorar os meus sapatos surrados que já estavam encharcados e congelados. Após andar o suficiente para que as árvores atrás de mim tivessem se tornado um emaranhado sombrio eu finalmente parei.

 Tinha certeza de que não conseguiria nada além de um coelho, com sorte. Mas aquela região com a grama que ainda não havia sido coberta pela neve poderia atrair alguma corsa em busca de um suprimento a mais de comida antes de se aninhar em alguma caverna quente.

 Estava agachada entre o tronco de uma velha árvore e um arbusto de folhas escuras, com uma flecha pronta em meu arco enquanto esperava qualquer sinal de uma presa para o jantar — caso contrário — teríamos que nos contentar com caldo de ervilhas e migalhas de pão na esperança de que amanhã eu tenha mais sorte.

 Um som chamou minha atenção do lado esquerdo, passos lentos e cuidadosos, preparei meu arco em posição quando a figura masculina alta, usando uma capa preta com um capuz que lhe cobria o rosto apareceu em meu campo de visão. Me agachei ainda mais entre a árvore e o arbusto, mesmo que o estranho não tenha dado sinais de que me notará parada a poucos metros de distância.

 Tentei controlar minha respiração que se acelerava conforme o homem se aproximava mais e mais, até que outro som chamou tanto a minha atenção quando a do desconhecido. Do outro lado do pequeno gramado ainda não coberto pela neve, um veado mediano surgiu, alheio a figura alta e escura a sua frente, como se não pudesse vê-lo.

 O homem então se agachou lentamente e retirou o capuz revelando cabelos compridos até a altura dos ombros presos apenas pela metade de cima, tentei me manter o mais parada possível enquanto observava aquele homem se posicionar como um animal selvagem prestes a atacar sua presa. Ele então retirou sua capa revelando roupas finas, como se ele pertencesse à realeza, o casaco verde-musgo contrastava com a calça em um tom pastel, o homem seguiu com cautela retirando uma adaga de sua cintura e a largando de lado, como se não fosse precisar dela para o que estava prestes a fazer.

 Observei os movimentos suaves do homem e quando ele estava prestes a atacar, outra coisa pareceu ter chamado sua atenção, ele ergueu a cabeça e olhou para além do veado, como se algo espreitasse nas árvores mais distantes, tentei encontrar o que ele estava agora encarando imóvel, mas não vi e nem mesmo ouvi nada.

 Continuei observando atenta aquele estranho homem até que uma neblina surgiu ao seu redor, algo que me fez entender o que de fato era aquele homem, entender porque ele não precisaria da adaga para o que quer quê ele estivesse prestes a fazer com o animal a sua frente e quando finalmente entendi, minha respiração falhou.

 A mais de um milênio uma muralha foi construída para dividir o nosso território do território deles. Não sabíamos como os chamar, não sabíamos exatamente como eram e o que podia fazer, apenas sabíamos possuir algum tipo de magia repugnante que eles usavam para nos caçar e atormentar antes da grande guerra. A criatura que agora se contorcia silenciosamente em meio aquela neblina era uma daquelas coisas, um Salandriano. Minha garganta secou e o ar automaticamente se tornou difícil de respirar quando o macho havia tomado a forma de um grande — enorme para se sincera — e assustador lobo preto.

 Engoli seco a náusea que rodopiou pelo meu estômago tentando não fazer nenhum barulho que atraísse a atenção daquela coisa em minha direção. O grande lobo preto estava agora na mesma posição de ataque enquanto olhava adiante, além do veado que ainda comia calmamente da grama como se não tivesse uma máquina de matar espreitando bem diante dos seus olhos.

 Encolhi o corpo antecipando o que quer quê aquela criatura faria, mas quando ele saltou entre o veado e um puma que surgiu do meio dos arbustos mais afastado, não pude deixar de soltar um pequeno grito que logo abafei com a mão. A criatura não pareceu notar já que ainda prendia sua presa entre seus grandes e letais dentes. O veado correrá o mais rápido que ele pôde — e eu, se fosse esperta o bastante — faria o mesmo. Mas eu não era.

Olhei para a criatura novamente que agora avaliava sua caça, mirei meu arco em sua direção, disposta a atirar aquela flecha. As criaturas que viviam do outro lado daquele muro não eram humanos e não se importavam em nos matar aos montes, alguns mais antigos dizem que as criaturas ainda espreitam a muralha, entre o lado deles e o lado mortal, buscando por presas perdidas ou por religiosos fanáticos que acreditam que eles são deuses.

 Afastei os pensamentos da minha cabeça limpando minha mente e me concentrando na coisa a minha frente, mas, tão rápido quanto fora a alguns momentos atrás ele agora se tornará o macho que eu vi e diante daquela visão, acabei deixando escapar um pequeno grunhido de medo. A criatura se virou na minha direção, procurando por entre as árvores e os arbustos de onde tinha vindo o som, tentei não fazer nenhum movimento quando aqueles olhos verdes brilhantes como vaga-lumes pareceram de ficar em mim e ele falou falou.

— Quem quer quê esteja se esgueirando, apareça — Sua voz grossa ecoou por toda a floresta e eu podia jurar que senti a árvore atrás de mim estremecer — Eu sinto seu cheiro e ouço seu coração. Apareça e lhe pouparei a vida.

 O macho — ou a criatura por baixo da pele de um macho — falou tão alto que pássaros adormecidos voaram no alto das árvores. Ponderei por alguns segundos o quão ferrada eu estava agora e cheguei a conclusão de que não poderia piorar. Aquela coisa já sabia que eu estava aqui e me esconder agora era apenas uma tentativa patética.

 Respirei após chegar a conclusão de que eu não tinha outra opção além de tentar enfrentar aquela coisa cara a cara. Reuni toda a pouca coragem que me restava e a força vacilante que eu ainda tinha para não tropeçar e cair ou até mesmo derrubar o arco de meus dedos. Caminhei para fora do arbusto em fim com aquele arco apontando diretamente para o coração da criatura.

— Ora Ora Ora! Que criatura adorável — Ele sorriu mostrando uma fileira de dentes brancos, como se ele não tivesse acabado de rasgar a garganta do pobre animal que agora estava morto jogado sobre a neve e a grama.

 Engoli em seco tentando não pensar que eu serei a próxima a estar jogada naquele chão úmido e frio — Qual o seu nome criança?

— Não importa — Minha voz falhou miseravelmente saindo mais baixa do que eu queria que de fato fosse, o macho ou a criatura me examinou da cabeça aos pés antes de soltar uma gargalhada alta que ecoou por toda a floresta.

— Não será muito... mas, acho que servirá, afinal.

 Ele falou enquanto caminhava lentamente em minha direção, com um olhar predatória e um sorriso selvagem. Puxei o arco um pouco mais para trás afastando o medo e me concentrando no ponto que eu queria atingir e quando a criatura estava a pouco mais que dois metros de distante a flecha disparou, rápida e implacável encontrando seu alvo exatamente onde eu queria, no coração.

 Aquela coisa me encarou com surpresa enquanto segurava a flecha, não estava esperando que eu tivesse de fato coragem para fazê-lo. Eu sabia que aquilo não o mataria, afinal de contas, essas criaturas são imortais, mas me daria tempo para correr, porém, antes que eu desse o meu primeiro passo na direção oposta a criatura gritou, um grito tão alto que fez todo o meu corpo paralisar e por fim desabou sobre o próprio peso, morto. Ele estava de fato morto.

Capítulo 2

Freya...

 Vomitei. Depois vomitei bile por falta de qualquer coisa no estômago para colocar para fora. O corpo do homem jogado sobre a neve, os olhos abertos ainda estampando a surpresa e o terror antes de sua morte, as mãos sujas com seu próprio sangue quando inutilmente segurou a flecha que atravessará direto seu peito. Não conseguia olhar para o corpo a minha frente sem sentir meu estômago se revirar repetidamente.

 Após longos minutos sem olhar o corpo e após longas lufadas de ar, finalmente deixei que minha cabeça se virasse para ver o homem — ou criatura — que eu havia matado com tanta facilidade. Eu caço desde que era menina, muito antes do meu pai repousar sobre aquela cama e aguardar a morte, muito antes de nossa mãe morrer, mas nunca, em nenhum momento eu senti o que estava sentindo naquele momento.

Aquele homem não era humano, eu sabia disso e talvez por isso eu devesse me sentir menos culpada por tirar sua vida, ainda mais considerando que ele faria o mesmo comigo se eu não o tivesse matado, mas ainda assim...

Olhei mais diretamente para o corpo daquela criatura morta na minha frente e só agora me dei conta do quão lindo ele era, os olhos verdes como as folhas no verão, os lábios carnudos, delineados e sexy, o nariz fino e desenhado perfeitamente para seu rosto quadrado, másculo, mas ainda assim, com linhas sutis que mostravam uma juventude que não existia mais, isso fez meu estômago revirar outra vez, mas não havia nem mesmo a bile para colocar para fora.

 Me aproximei do cadáver ainda quente e com um estampido eu arranquei a flecha de seu peito, eu não sabia que madeira era aquela, ou que tipo de flecha era aquela que matara uma criatura como ele, mas eu sabia que não era uma flecha comum de madeira de bétula como eu costumava comprar, havia algo naquela madeira, no aço em sua ponta e eu descobriria o que me fizera matar aquele homem.

 Vasculhei seus bolsos em busca de alguma identificação, algum papel com seu nome ou com o da família. Será que ele tinha família? Balancei a cabeça afastando aquela pergunta, eu não poderia entrar nessa ou jamais sairia dessa floresta por culpa e ressentimento. Não havia nada nos bolsos da calça ou do casaco além de um relógio de bolso. Fechei os olhos por breves segundos e coloquei minhas mãos sobre seus olhos ainda abertos.

— Que a mãe te acolha, que o pai de receba, que o guerreiro te acompanhe — Falei baixo fechando os olhos daquele homem. Eu não sabia se ele acreditava nos deuses humanos, eu não sabia se eu acreditava neles, mas se eu tivesse que morrer sozinha em uma floresta, iria gostar da promessa de uma vida depois disso — Sua luta acabou.

Me afastei do corpo do homem pegando sua adaga que ainda estava jogada ao seu lado, assim como o manto, enfiei ambos na bolsa de couro e fui até o puma que ele havia abatido amarrando o animal com cordas e o prendendo as costas para carrega-lo. Olhei mais uma vez para o cadáver prometendo silenciosamente retornar com uma pá para lhe dar o enterro adequado.

...★...

 Sai daquela floresta escura e gelada sem olhar para trás, com medo de que o ressentimento me fizesse voltar até o corpo. A luz do dia já havia alcançado o céu apesar de o sol não se fazer presente, o frio estava ficando pior e o céu prometia uma nevasca pior para essa noite. Arrastei a carcaça do puma pela soleira da porta e a puxei com dificuldade até conseguir joga-la em cima da mesa de madeira que separava cozinha e sala.

 Minha irmã mais nova, Ingrid olhou incrédula para o animal abatido sobre a mesa, seus olhos correram todo o meu corpo e a expressão de preocupação me dizia que ela verificava se estava machucada, e após se certificar de que não estava de fato machucada, ela finalmente olhou atentamente para o animal, para as marcas em seu pescoço que pouco se assemelhava as marcas deixadas por adagas ou flechas, mas por algum motivo que desconheço, ela não questionou quem ou o que fizera aquilo no animal, ela apenas pegou um pano de prato e tentou limpar o sangue que já escorria para a tapeçaria velha.

— O que diabos é isto? — Minha irmã caçula e eu olhamos ao mesmo tempo em direção a pequena escada que dava para o andar de quartos onde minha irmã mais velha estava parada três degraus acima olhando incrédula para o animal sobre a mesa.

Minhas irmãs em muito se assemelhavam comigo, os olhos azuis-claros que também eram os olhos de nossa mãe, a pele branca embora estivesse ultimamente pálida pela falta de nutrientes. A única coisa que nos diferenciava era o formado de nossos rostos. Ingrid, a caçula possuía cabelos castanhos longos até o meio das costas, assim como eu e nossa mãe, o corpo apesar de magro não deixava escapar as curvas acentuadas que faziam ela parecer mais adulta do que de fato era, mas seu rosto jovem e inocente revelava que apesar do corpo e da postura, ela era apenas uma menina de 17 anos.

— Algum felino. Freya quem trouxe — Ingrid disse enquanto lutava para evitar que o sangue chegasse a tapeçaria, por fim ela desistiu e apenas enrolou o pesado tapete para debaixo da mesa de forma que a possa de sangue não o alcançasse.

— É um puma.

Minha irmã mais velha olhou para o animal e então para mim e sutilmente verificou todo o meu corpo como sempre fazia quando voltava de alguma caçada. Diferente de Ingrid, minha irmã Laila não era tão aberta e receptiva, e se não fosse pelas raras ocasiões onde demonstra o mínimo de preocupação mascarada, eu poderia dizer que ela não gosta muito de mim.

 Laila tinha os olhos igualmente azuis, assim como todas as mulheres da família, mas diferente de mim e de Ingrid, ela herdou os cabelos mais escuros de nosso pai, assim como as feições frias e inexpressivas. Era difícil saber quando ela estava sentindo algo, era difícil saber qualquer coisa sobre ela. Minha irmã desceu os degraus restantes e torceu o nariz para o animal morto enquanto dava a volta na mesa se certificando de que nenhuma parte de seu vestido de linho fino azul-céu tocasse o sangue que descia pelas laterais da mesa.

— Vai retirar a pele para vender?

Ela questionou fazendo questão de não olhar o animal mais uma vez. Concordei enquanto caminhava até o armário tirando de lá uma faca e um alicate e voltei até o animal respirando fundo antes de enfiar a faca em sua extremidade e começar a recortar a pele de forma que saia por completo.

— A pele, os dentes e o que der para vender — Falei forçando a faca o mais fundo possível, minhas irmãs desviaram o rosto junto enquanto faziam uma careta para a cena — Depois podemos comprar farinha e fermento e com o que sobrar, podemos ver o que dará para comprar.

— Acha que vai sobrar?

— Talvez sim, pele de puma é requisitado no inverno — olho para Ingrid quando respondo e seus olhos se arregalaram quando puxei para cima um grande pedaço da pele do animal já extraída.

— Como conseguiu abater essa fera?

Olho para Laila quando a ouço. Eu não tinha resposta para aquela pergunta, não podia contar do homem — da criatura — que agora esperava pelo enterro descente que lhe prometi. Não podia contar do perigo que corri ao enfrentar ele cara a cara ou do fato de que minha bolsa possuía um relógio de ouro bastante caro que se vendido corretamente nos renderia dinheiro para o inverno inteiro e ainda sobraria.

— Já estava ferido, provavelmente algum lobo — Falei deslizando a pele por inteiro para fora do animal e jogando-o sobre a pia da cozinha, Ingrid franziu a testa mais ainda assim foi até a pele limpando o sangue e o resto de carne que tinha ali — Eu apenas dei o golpe de misericórdia.

 Mentirosa. Eu era uma mentirosa e uma assassina. Matei alguém a sangue-frio, não exitei em fazê-lo, nem mesmo me dei ao trabalho em pensar se era a coisa certa ou não a fazer, eu apenas disparei a flecha que correu direto para um ponto fatal.

 Havia muitas histórias sobre aqueles que moravam do outro lado da muralha, lendas sobre sua magia maldita, sobre seu estilo de vida e sobre como mata-los ou feri-los, nenhum deles falava sobre uma flecha de madeira e aço em seu coração, mas eu havia visto em primeiro mão que funcionava, ou talvez aquela não fosse de fato apenas uma flecha de bétula e aço. Eu descobriria.

Capítulo 3

Freya...

 Era quase metade do dia quando minhas irmãs e eu saímos com a pele, as presas e algumas peças da carne do animal. Antes de sair, me certifiquei de que papai estava bem e ele ainda dormia, para o meu alívio. Também me certifiquei de levar o relógio comigo, pretendia desviar a atenção de minhas irmãs para alguns vestidos e fugir até o antiquário ou joalheria para avaliar o valor da peça, mesmo que eu já tenha uma de ideia de quanto custa apenas de olhar para a peça luxuosa.

 Antes de cair nessa depressão terrível, meu pai era um homem influente, um mercador muito conhecido e minhas irmãs e eu crescemos em meio ao luxo e as famílias mais ricas de Sintra. Mas depois que nossa mãe morreu de tuberculose, ele se enfiou na bebida, fez muitas dividas com gente perigosa e eles a cobraram levando tudo que tínhamos, deixando o suficiente apenas para comprar o chalé e viver por alguns poucos meses.

 Laila se ressentia com nosso pai, talvez pela fortuna que ele perdeu, ela nunca superará ter que viver como pobre. Talvez pela morte de nossa mãe, que ele nem mesmo nos deixou se despedir antes que levassem seu corpo. Talvez pelo fato dele ter se fechado em seu próprio mundo e ter nos largado a sorte, embora Laila nunca tenha feito nada que ajudasse em nossa situação realmente.

 Eu não me ressentia de minhas irmãs por ter que caçar, vender e providenciar comida para dentro de casa, não, eu fazia isso por amor a elas e faria de novo e de novo se fosse necessário. Mas eu odiava ver Laila destilando seu ódio contra nosso pai sempre que Ingrid preparava uma comida para ele, odiava ver ela tentar minar o amor que nossa irmã tinha por nosso pai e esse era o maior motivo para nossas desavenças.

 A cidade estava praticamente vazia, poucas pessoas se aventuravam na neve, a maioria vendedores e alguns donos de lojas andavam de um lado a outro buscando clientes antes de se renderem a neve e fechar as portas. Laila logo se distraiu com vestidos que uma costureira exibia em uma grande mesa de madeira escura posta próximo à estrada, ela se encantara com alguns tecidos e chamou Ingrid para opinar.

 Laila não confiava em meu bom gosto para roupas, dizia que eu era um pavor para escolher peças descentes, embora eu estivesse bastante satisfeita com minhas leggings marrom escuro e minha camisa verde-musgo. Ingrid geralmente não se metia, mas sempre tentava me indicava vestidos de tecidos nobres da época que ainda tínhamos status. Eu os odiava. Não por serem vestidos e talvez um pouco por conta das cores, mas porquê não eram práticos, tanto nos afazeres da casa quanto na floresta, então, me limitava ao de sempre, mesmo quando Laila torcia o nariz ao me ver chegar em casa ou sair do quarto.

— Enquanto estão aí, vou tentar vender essas coisas. Encontro vocês em meia hora na praça principal.

 Elas apenas concordaram sem se dar o trabalho de olhar em minha direção. Eu imaginei que seria difícil despista-las e já estava imaginando as perguntas e olhares curiosos, mas isso não aconteceu e agradeci mentalmente apressando meus passos antes que decidissem se importar.

 Parei em uma joalheria que era famosa na região por pagar bem por peças que de fato valiam. O lugar estava vazio quando entrei e agradeci mentalmente por isso também. Caminhei até o senhor com feições cansadas e expressão pouco acolhedora, ele também me examinou conforme me aproximei do balcão e eu podia jurar ter visto um pequeno desdém dançar por seus olhos.

— Bom dia senhor — Tentei ser o mais simpática possível, isso geralmente me garantia bons acordos. O homem não respondeu, o que me fez entender que seria do jeito difícil então. Tirei o relógio do bolso e segurei na sua frente — Pode me dizer se isso vale alguma coisa?

Os olhos do homem se arregalaram como se ele estivesse vendo um fantasma, a expressão dura se tornou surpresa e até espanto. Ele pegou o pequeno relógio dá minha mão é só agora notei haver um símbolo no relógio, uma rosa, e isso me fez relembrar todas as histórias que as amas contavam sobre o outro lado da muralha quando éramos pequenos, ao que aquele símbolo remetia. Prendi a respiração desejando do fundo do meu coração que o homem não soubesse e não me perguntasse onde eu teria conseguido um relógio do Reino de Primavera. O homem analisou o relógio em silêncio, virou e revirou ele em seus dedos calejados antes de me olhar de cima a baixo, como se analisasse a portadora da joia antes de perguntar o que estava bem claro em sua expressão desde que vira a joia.

— Onde conseguiu isso, menina? — Uma pergunta simples e fácil de desviar. Na verdade, era fácil fingir que eu não tinha matado uma pessoa a poucas horas atrás, pior, era fácil fingir que o corpo dele ainda não estava naquela floresta, jogado sobre a grama e sobre a neve esperando por um enterro digno que eu prometi e não fui cumprir.

— Achei perto do bosque — Ele me analisou, obviamente lendo a mentira estampada na minha cara. Minhas irmãs sempre disseram que eu era uma péssima mentirosa e talvez eu seja, porque eu tinha certeza que aquele homem lia isso na minha testa.

— Tem andado por bosques perigosos garota — Ele alertou. Um aviso baixo, relaxado, quase preguiçoso, mas com um tom afiado e misterioso que deixava subentendido o que ele de fato queria dizer com aquilo. O homem escorreu atrás do balcão de mateira com topo de vidro e apanhou um caderno em uma escrivaninha do outro lado abarrotado de papéis e peças, e pedras brilhantes — Essa é uma joia de colecionador, ouro puro entalhado com ametistas, qualquer outro tentaria te enganar, mas eu serei sincero. — Ele pegou o relógio e colocou na minha mão — Isso aqui vale mais que minha loja inteira, mais que qualquer um em Sintra possa pagar, sugiro que tente do outro lado do continente.

 Olhei para o relógio em minha mão e o coloquei no bolso rápido demais para ser casual. Olhar para aquelas ametistas me fazia lembrar dos olhos verdes do homem que eu tirei a vida, ou da coisa, seja lá, o que ele for. Respiro fundo passando a língua pelo lábio inferior que estava gelado como uma pedra de gelo e afastei aqueles olhos do meu pensamento voltando minha atenção para o vendedor.

— Obrigada pela sinceridade — Falei o mais suave que pude e virei as costas, mas antes que eu pudesse sair o vendedor disse:

— Menina, seja lá de quem é a joia que encontrou no bosque — Ele parou e me analisou por um breve segundo — Eles viram buscar — As palavras me fizeram enrijecer o corpo e um arrepio desceu pela minha coluna. Não respondi aquilo, apenas abri a porta e saí.

 As ruas estavam ainda mais vazias, alguns comércios estavam fechando e apenas os mais persistentes vendedores permaneciam ali chamando clientes. Atravessei a rua e caminheiro até um vendedor de peles que exibia sua mesa cheia das mais variadas cores e tamanhos. Olhei para o homem que já exibia um enorme sorriso ao perceber o que carregava presa as minhas costas, sorri de volta e me aproximei cumprimentando.

— Bom dia...

...★...

 Já eram quase três horas quando finalmente voltamos para casa. O dinheiro da pele nos garantiu farinha, grão e leite pelas próximas duas semanas e as presas foi o bastante para comprar os vestidos que Laila e Ingrid tanto queriam, com o pouco que sobrou, consegui comprar para mim um par de luvas forradas e fofinhas e sapatos novos que me seriam úteis nas manhãs geladas em que saiu para caçar. Aproveitei minha ida a cidade para ir a um armeiro falar sobre a madeira ou o aço da lança que matou aquele homem mais cedo.

 O armeiro garantiu que a madeira em minha mão era carvalho-vermelho e não de bétula como achei que seria e o aço era comum, logo, acredito que talvez está madeira possa mata-los, ou talvez eu tenha tido sorte. Deixei as bolsas sobre a mesa e sai sem dizer as minhas irmãs aonde iria. Eu tinha uma coisa para resolver. Uma promessa para cumprir. Peguei a pá que Ingrid usava na primavera quando estava cuidando dos jardins e segui direto para a escuridão da floresta.

 Meu plano era simples, porém bem elaborado, ir até aquela clareira, enterrar o desconhecido que eu matei e se tudo desse certo eu chegaria em casa antes do jantar e principalmente, antes da tempestade que se aproximava. Conforme entrava na floresta, senti meu estômago se revirar e podia jurar que a qualquer momento eu colocaria para fora o pedaço de bolo que a dona da lojinha na esquina ofereceu para mim e minhas irmãs quando passamos perto.

 A floresta estava silenciosa. Mais do que costuma ser, até mesmo durante o inverno, nem mesmo um farfalhar de folhas, embora o vento estivesse forte o bastante para fazer a capa do manto pesado que eu usava voar. Conforme me aproximava da clareira, senti meu coração pesar em meu peito, não luto, mas culpa. Eu nunca havia tirado uma vida antes, não uma que não fosse animal e naquela manhã eu apenas atirei uma flecha naquele homem, apenas porque não consegui ficar quieta diante do que via. Parei de andar subitamente quando me dei conta de que estava exatamente no lugar que tudo aconteceu essa manhã e eu sabia ser ali, apenas pela mancha de sangue que ensopava o chão e manchava de um vermelho vivido a neve e a grama onde o homem estivera naquela manhã. Mas ele não estava mais ali.

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