“Eu vou dar conta!”, pensava Isadora. Havia quase três meses, que as cartas de cobrança, eram diárias. Sobre sua mesa, dezenas delas se espalhavam, e ela olhava tudo com uma angústia crescente, mas de uma coisa, sabia: iria resolver! Não era mulher de se deixar abater tão facilmente, era forte, uma guerreira, e conquistara tudo com muito esforço e determinação.
Isadora se senta na cadeira em frente à mesa, e mais uma vez, analisa cobrança por cobrança. Sabia que suas dívidas haviam se transformado numa “bola de neve”, pois as contas pessoais e empresariais se misturavam, mas pelo menos, não faltava o básico para viver. Começara o empreendimento de limpeza apenas ela, e sua tia, Márcia.
No início, Isadora havia achado que não levava o menor jeito para a limpeza, já que somente ela e sua tia saíam em busca de faxinas, mas depois de seis meses, o negócio acabara tomando uma nova proporção, e perceberam a necessidade de contratar mais mulheres. Hoje, sua firma de limpeza contava com dez funcionárias, fora ela, que administrava tudo. Tinha muitas dívidas, graças aos empréstimos que fizera, pois quando começara não tinha um centavo no bolso, contava apenas com a experiência de sua tia, que já era diarista.
Seus pensamentos estavam longe, sua trajetória passava como um filme em sua cabeça, mas ela sentia orgulho de tão jovem, ter conquistado sua independência financeira, mesmo sabendo que nem tudo eram “flores”, tinha que achar uma solução o quanto antes para pagar suas dívidas, nem que ela própria começasse novamente a fazer faxina, e trabalhasse o triplo, mas sairia do “buraco”.
Isadora ouve uma leve batida à porta, e em segundos, sua tia Márcia entra na sala, com o mesmo sorriso cativante de sempre.
- Oi, Isa, está muito ocupada?
- Oi tia, estou apenas olhando as contas, e pensando numa maneira de quitá-las.
- A situação está tão ruim assim? Achei que estávamos bem.
- Não é isso, tia. A senhora sabe que o apartamento que eu moro está hipotecado, e infelizmente os gastos com nossa agência estão subindo, precisamos contratar mais funcionárias, mas isso quer dizer que teremos mais gastos com os benefícios, então as contas estão se acumulando. Mesmo tendo uma demanda maior de trabalho, os encargos com os direitos das funcionárias são altos, sem contar que esse prédio que alugamos como nossa sede, está ficando inviável, o aluguel já subiu muito, e num prazo de um ano, estamos pagando o triplo, as contas não estão fechando!
- Sinto muito, Isa. O que eu posso fazer pra te ajudar?
- A senhora já faz muito, tia. A senhora me criou, me educou, e ficou ao meu lado no momento em que mais precisei, passamos por muitas coisas juntas. Eu darei um jeito, como sempre dei...estive pensando...acho que eu mesma vou começar a fazer algumas faxinas, pelo menos assim, economizaremos um pouco, não precisaremos contratar mais uma funcionária.
- Tem certeza, minha filha?
- Tenho sim. E precisamos também procurar um imóvel mais barato, este, não temos mais condições de manter... Esta agência é minha vida, construímos tudo com muito esforço, e se eu tiver que perder o apartamento, para salvar a agência, não me importo, mas a agência, eu me recuso a perder.
- Isso não vai acontecer, eu também trabalharei mais, aceitarei mais faxinas e em breve conseguiremos pagar as dívidas, você não vai perder seu apartamento, muito menos a agência. Se quiser, meu convite ainda está de pé, por que não vem morar comigo, e aluga seu apartamento? Assim entra algum dinheiro.
- Agradeço muito, tia, mas não vou tirar sua liberdade, e eu também preciso da minha. Amanhã mesmo começarei a procurar um imóvel para nossa sede esteja mais barato para alugar, sei que isso leva tempo, pois não é nada fácil achar um que seja bom, e que tenha um preço justo, mas vou começar o quanto antes. E eu mesma sairei à campo e farei algumas faxinas, assim economizarei com as contratações.
- Conte comigo, Isa. Eu também dobrarei o trabalho, vamos conseguir!
- Sim, tia, conseguiremos, afinal, não é a primeira vez que estive no fundo do poço...esta não é nem de longe a pior situação que enfrentei, e a senhora sabe disso.
- Sim, eu sei. Você ainda pensa em tudo o que aconteceu, Isa?
- Todos os dias. Não há um dia sequer que não sinta dor por tudo o que passei, algumas vezes dói mais, outras menos, mas todos os dias sinto angústia ao lembrar do passado.
- Eu sinto tanto, Isa. Você tem apenas vinte e nove anos de idade, e já sofreu tanto na vida. Não merecia nada do que te aconteceu, mas a vida sem sempre é justa, não é? Pelo menos, você não se tornou uma mulher amarga, embora tenha se fechado completamente no seu mundo, e eu seja a única que consiga me aproximar de você.
- A senhora sabe que não é tão simples assim, eu até tentei por um tempo, deixar que se aproximassem, mas meu medo é sempre maior. Não estou preparada para sorrir, novamente, acho que nunca mais serei feliz, em nenhum aspecto da minha vida. A única coisa que me importa, é meu trabalho, e a senhora, que sempre esteve comigo. Aprendi a ser forte, na marra, e não estou disposta a demonstrar vulnerabilidade, para ninguém.
- Ainda acho que esse não é o caminho, mas você precisa de tempo para curar suas dores. Tudo aconteceu há pouco mais de três anos, mas parece que foi ontem. Entendo que a dor que você carrega, não desaparecerá nunca, mas vai amenizar, e quando esse dia chegar, ficarei muito feliz, pois você é como se fosse minha filha.
- Eu também a considero minha mãe. Foi a senhora que me criou, e me ensinou tudo o que sei...mas vamos deixar esse assunto de lado, vamos ao trabalho, pois hoje é segunda-feira, e daqui a pouco nosso telefone não vai parar de tocar, e desta vez, eu mesma vou sair e limpar o máximo de casas, apartamentos e escritórios que eu conseguir. Vamos vencer, tia!
Depois que Márcia saiu da sala, Isadora ainda analisava as contas à pagar, porém, não demorou muito, até que o telefone começasse a tocar insistentemente, sabia que era trabalho, tudo o que ela mais precisava, tanto para não pensar em seu passado, como para se livrar das dívidas.
Fazia tempo que Isadora não saía a campo para realizar faxinas, pois desde que a demanda de trabalho crescera, ela se restringia apenas ao trabalho burocrático, mas era gostoso relembrar o início de tudo, mesmo ao longo do caminho encontrando alguns clientes mal-educados. Nem todo mundo dá valor ao trabalho das diaristas e ao pessoal da limpeza no geral, julgam como algo sem valor, ou como inferior, mas Isadora nunca pensara assim, já que havia sido criada por uma mulher trabalhadora, e com o dinheiro das faxinas que sua tia fazia.
Aprendera a respeitar e a gostar do ofício, mesmo sabendo que não era nada fácil, pois algumas “dondocas” sempre colocavam defeito e diziam que não estava bom o bastante, o que poderiam facilmente resolver, se elas próprias fizessem a limpeza, até porque, você só pode reclamar de algo se sabe fazer melhor, ou igual, do contrário, deve-se respeito ao trabalho alheio, seja ele qual for.
Naquele dia, Isadora limparia uma sala comercial, num grande edifício, não sabia ao certo que tipo de negócio era ali, mas haviam pedido que ela limpasse o ambiente, pois dentro de três dias, uma empresa espanhola se instalaria no local. O prédio era um dos mais altos da cidade, e ela sabia que quem se instalasse ali, deveria ser algum grande empresário. Nesse momento, desejou que algum dia chegasse tão alto profissionalmente, quanto o dono ou dona, daquele escritório que ela estava limpando.
O dia passou muito rápido, Isadora limpou tudo com muito capricho e muita atenção, tirou o pó de cada canto do bonito carpete do chão, limpou as vidraças, lustrou a bonita mesa de carvalho e limpou a estante que certamente teria muitos livros, o que a deixou curiosa para saber de que tipo seriam. Ao final da tarde, retornara ao seu escritório e faz algumas anotações, antes de ir para seu apartamento, se sentia muito cansada, trabalhar com limpeza estava longe de ser tranquilo, valia como um dia intenso de academia, tamanho era o esforço físico, ainda mais, sendo em prédios comerciais, pois exigiam muito.
Ao chegar em seu apartamento, vai direto ao banheiro e tira sua roupa, precisava muito de um banho quente para aliviar as dores que sentia. Se sentia cansada física e emocionalmente, não se lembrava da última vez que havia tirado férias, muito menos, quando sorrira pela última vez. Ao sair do banho, veste um largo pijama e prepara um sanduíche para comer, ultimamente vivia a base de comidas rápidas, e sabia que não era nada bom.
Enquanto comia, liga a televisão e fica passando de canal em canal, não era grande apreciadora de TV, mas era o que fazia companhia. Seus dias eram silenciosos quando estava em casa, não sorria, não se alegrava, e em seus olhos, havia a sombra de alguém que jamais se recuperaria.
Minutos depois, ela volta ao quarto, escova seus dentes e se deita, pois no dia seguinte, trabalharia ainda mais, já que havia sido contratada para limpar novamente mais algumas salas do grande edifício que limpara naquele dia, sinal de que haviam gostado de seu trabalho.
A secretária do contratante havia ligado, e elogiado o trabalho, dissera que quem tinha limpado havia superado todas as expectativas e que o contratante havia ficado muito satisfeito, por conta disso, havia oferecido uma grande quantia em dinheiro para que limpassem todas as salas do edifício. Ao olhar o e-mail com a proposta e o contrato, Isadora achara que havia lido errado, pois a quantia era exorbitante, e aceitara na mesma hora.
Na manhã seguinte, Isadora se identifica na recepção do prédio comercial, e se dirige ao elevador de serviço, já estava acostumada com as pessoas esnobes que faziam separação, como se os trabalhadores não fossem dignos de dividir o mesmo ambiente com as outras pessoas. Ela aperta o botão e desce no andar que limparia. Ouve vozes de algumas pessoas conversando, mas não presta atenção em nada, afinal, não estava li para conversar, e sim, trabalhar.
Naquela manhã, conseguira limpar duas salas, já que sabia exatamente como era o local, e quais produtos deveria usar. Trabalhava com afinco e quando o relógio marcou meio-dia, se sentou no chão, num canto ainda não limpo, e pegou seu sanduíche e uma garrafinha de suco natural em sua bolsa térmica, e se pôs a comer. Estava realmente faminta, trabalhar tanto havia aberto seu apetite, coisa que não acontecia há muito tempo.
Enquanto mastigava seu sanduíche, olhava ao redor e decorava mentalmente o local, era divertido imaginar onde os móveis seriam colocados, e que cores teriam aquela sala. Se distraíra em seus pensamentos, e não percebera um homem parado à porta a observando, ele tinha as mãos nos bolsos e a olhava intrigado.
Isadora percebe que alguém a observava, pois, um cheiro de perfume marcante se contrastava com o cheiro dos produtos de limpeza, a fazendo despertar de seu devaneio decorativo.
- Deseja alguma coisa, senhor? – ela pergunta com voz firme.
- Não. Só estava observando o que você fazia aí sentada no chão, quando esta empresa possui um refeitório, você poderia ter ido comer lá.
Isadora percebe que ele tinha um sotaque diferente, certamente não era brasileiro, mas não conseguia identificar ao certo de onde era.
- Me desculpe, eu parei apenas alguns minutos, vou comer este sanduíche e retornar ao trabalho.
- O que você estava fazendo?
- Eu sou a faxineira, senhor. Estava limpando a sala.
Isadora nota que ele se surpreende com a informação, mas estava acostumada com as reações, pois sempre que ela dizia que era faxineira, ou que tinha uma agência de limpeza, as pessoas se surpreendiam, pois julgavam que não tinha a aparência de que quem trabalhasse com isso, como se tivesse algum padrão estabelecido da aparência dos trabalhadores da limpeza. Ela sabia que era uma mulher bonita, mesmo se descuidando um pouco da aparência, depois de tantas coisas ruins que haviam acontecido com ela, mas ainda conservava os traços delicados e atraentes de antes.
Então, foi você que limpou tudo? Devo admitir que seu trabalho é impecável. Deveria pedir um aumento ao seu superior, é muito eficiente!
- Obrigada, senhor. Vou me lembrar de pedir um aumento, qualquer dia desses! – ela diz zombando, pois ele não fazia ideia de que ela era a dona da agência de limpeza.
- Você não quer ir até o refeitório? Eu sei que estamos nos mudando aos poucos, e não está tudo pronto, mas alguns funcionários já estão aqui há algum tempo, e tenho certeza que não se importarão de você se juntar a eles. Não precisa ficar sentada aí no chão, de maneira tão desconfortável.
- Eu agradeço, mas prefiro comer aqui mesmo. Na verdade, já terminei, vou apenas escovar os dentes e retornar ao trabalho, preciso terminar tudo o mais rápido possível. Se o senhor me der licença...
Isadora falava e recolhia suas coisas o mais rápido possível, há tempos que não conversava com um homem, e não se sentia confortável com aquilo, não gostava de dar muitas explicações e se sentia desconfortável em sustentar o olhar masculino. Ela recolhe sua bolsa térmica do chão e passa por ele porta afora, vai em direção ao banheiro, e se fecha lá, precisava se concentrar em seu trabalho, apenas.
Alejandro González, olhava a mujer hermosa (bela mulher), se afastar dele a passos largos. No momento em que ele olhara, minutos antes, pela fresta da porta aberta, notara o olhar dela percorrendo o ambiente, como se ela estivesse decorando a sala, mentalmente. Percebera que ela tinha o olhar doce, mas profundamente cansado, arriscava até a dizer, que eram...tristes, cheios de dor. Ela não tinha a leveza de uma mulher jovem, parecia que havia enfrentado algo muito pesado. Parecia ser fechada, e muito seca em suas palavras, não era rude, mas deixava claro em suas atitudes, que não gostava de aproximações.
Ele estava se mudando para o Brasil, por um tempo, não sabia se ficaria meses, ou anos, apenas estava concentrado em inaugurar mais uma filial de suas empresas, a González Softwares. Era dono de uma grande empresa especializada em desenvolver os mais variados softwares, faziam desde a concepção do projeto, desenvolvimento, construção de aplicativos, estruturas de web, e mais alguns outros componentes para empresas. Estavam no mercado há anos, e cresciam em disparada.
Ao surgir a oportunidade de abrir uma filial no Brasil, encarara tudo como mais um desafio, e se surpreenderam em acabar gostando do país, pois em determinados aspectos, era parecido com a Espanha, assim como os brasileiros, os espanhóis são calorosos e simpáticos. Sabia falar o idioma, pois tinha amigos brasileiros e de tanto conversar com eles, acabou aprendendo o básico, ainda misturava algumas poucas palavras, mas se saia muito bem, em seu “portunhol”. Aos 42 anos de idade, fizera um verdadeiro milagre na indústria de softwares, se especializara com o que havia de melhor nas tendências e em questão de cinco anos, passara de uma pequena empresa, para uma das maiores de toda a Espanha, e há apenas alguns meses, começara a ganhar o mercado internacional.
Alejandro era um homem carismático, sorridente, que via sempre o lado bom da vida, pois sua família o havia criado assim, sua madre (mãe) era dona de um carisma sem igual, o aconselhava sobre tudo na vida e fora seu alicerce por muitos anos. Para os espanhóis a família é a base, a estrutura e um dos momentos mais aguardados, é quando todos se reúnem à mesa, nos almoços de família, nisso tinham muita semelhança com os brasileiros. Estava acostumado a viajar muito, mas quando retornava à Espanha, sentia suas energias renovadas.
Ao ver aquela mujer hermosa (bela mulher) sair apressada, sentiu seu estômago se contrair, pois era mais do que óbvio que ela não agia naturalmente, e se pegou pensando o que ela havia passado, para tão jovem, se comportar daquele jeito. Ele retorna à sua atividade, mas não a tira de seus pensamentos um só minuto, pois enquanto ele sorria para tudo, e todos, ela parecia que tinha uma nuvem negra acima de sua cabeça.
Isadora termina de limpar mais duas salas, e ao final da tarde, guarda todos os seus pertences, recolhe os materiais de limpeza, e começa a leva-los até sua velha kombi, teria que dar duas viagens, pois havia limpado a sala, e levaria consigo dois sacos cheios de lixo.
Ao apertar o botão do elevador, sente uma respiração atrás de sua nuca, não precisava adivinhar de quem se tratava, pois reconhecera o aroma forte de loção pós barba.
- Precisa de ajuda, señorita?
- Não, obrigada. Eu vou descer com os meus materiais de limpeza, e depois volto para buscar os sacos de lixo.
- Espere um momento que a ajudo, señorita!
Sem Isadora ter tempo de dizer nada, ele vira e sai andando apressadamente até a sala que ela passara a tarde limpando e recolhe os dois sacos de lixo, em seguida, surge à frente dela com os sacos na mão. Isadora nota que enquanto que para ela, os sacos pesavam muito, para ele, parecia que carregava com a maior facilidade do mundo.
- Pronto! Assim a señorita, não precisa voltar até aqui, acredito que depois de tanto trabalho, esteja cansada.
- Sim. Obrigada.
Isadora apenas agradece e continua a olhar sempre para a frente, não demonstrava nada, além de cansaço. Em poucos minutos, os dois param em frente à Kombi dela, e enquanto ela guarda as vassouras, rodos, e baldes, ele leva os sacos de lixo até o depósito. Guardava a última vassoura, quando ele para ao lado da velha kombi e fica a observando.
- O senhor deseja mais alguma coisa?
- Não. Na verdade, eu apenas estou pensando o motivo de você ser tão...como posso dizer...econômica com as palavras.
Isadora permanece em silêncio, não estava disposta a manter um diálogo, por menor que fosse. Queria apenas sair dali, e se refugiar na solidão de seu apartamento.
- Vejo que a señorita não está mesmo afim de manter uma conversa. Me desculpe se a incomodei, não foi minha intenção, mi querida!
- Não me incomodou, estou apenas muito cansada, se me der licença, vou para casa. Boa noite, e obrigada pela ajuda.
Isadora entra em sua kombi e bate a chave na ignição, o veículo cospe um pouco de fumaça e solta um som estridente do escapamento, ela sabia que precisava trocar urgentemente aquela kombi, mas não era o momento, teria que esperar até que as contas fossem pagas. No momento em que pensara que conseguiria sair daquele lugar, a kombi simplesmente para de funcionar. Parecia que a noite estava apenas começando, e não seria nada boa.
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