Parada na janela, Célia observava a chuva que caía do lado de fora e regava as roseiras do jardim. Oas aromas refrescantes enchiam o lugar,mas o frio também. Havia tanto tempo que estava internada naquele lugar, que acompanhou as rosas crescerem e florescerem, várias vezes. Mas porquê estava ali? Sua mente era um vazio, sentia falta de algo ou alguém e isso a entristecia.
Sequer lembrava de sua família, seu nome ou onde morava, mas a tratavam como uma criminosa, sem direito a regalias ou a uma comida decente. No inverno, sentia frio com a camisola fina que usava e chegou a se pendurar na cortina de veludo, para arrancá-la e conseguir dormir, enrolada e quentinha.
Neste dia, lhe deram uma roupa melhor, um terninho branco de linho, sapatos e um casaco de lã. Com certeza iriam a algum lugar importante, pois não teriam lhe vestido tão bem, se não fosse sair e ver outras pessoas. A água do banho estava gelada e o sabão em barra, ressecou sua pele, não havia shampoo e a toalha era de saco de farinha de trigo.
— Está na hora de ir, senhora. — chamou a funcionária carrancuda.
Já estava arrumada e esperando para ir. Finalmente sairia daquele lugar infernal e descobriria o que estava acontecendo. Se virou e seguiu a enfermeira até saírem pelo portão do casarão e se livrarem do cheiro de coisa velha e desinfetante do lugar. Havia um carro preto, estilo diplomata, parado. O motorista segurava a porta do carro aberta e o guarda-chuva sobre a sua cabeça, enquanto a enfermeira a acompanhava, cobrindo-a também, com um guarda-chuva.
Entrou no carro.
Ao cruzarem o grande portão de ferro, ela olhou para trás e leu, escrito sobre o portão: Sanatório Sta Luzia. Pelo menos, sabia ler.
Depois de viajarem por duas horas, chegaram ao seu destino. O motorista desceu e a porta foi aberta, ela desceu e imediatamente foi cercada por guardas. Avistou a multidão que ali estava para vê-la e muitos eram jornalistas, fotógrafo e faziam perguntas:
" Por que cometeu aquele crime, senhora?"
" A senhora se arrepende? "
" O que ele fez para a senhora? "
" Ele lhe abusava? "
Pacientemente, seguiu em frente, subindo a escadaria do grande prédio, que mais parecia um museu e entrou, sem ligar para as pessoas. Não entendia nada do que estava acontecendo. Será que foi sempre assim? Por não entender, suas emoções eram nulas e ela só estranhava e queria entender, mas:
Não lembrava.
Depois que o tribunal lotou, o meirinho avisou a entrada do juiz, todos ficaram de é e a figura altiva de toga preta e cabelos brancos, entrou.
— Podem se assentar. — bateu o martelo — Este é o julgamento de Maria Lúcia Galvão Nepomuceno por assassinato, como se declara a ré?
Um estalo e dor intensa, acometeu a cabeça de Maria Célia e ela segurou as têmporas com a base das mãos, fechando os olhos, enquanto uma sucessão de imagens vinham à sua mente. O juiz perguntou o que estava acontecendo e um médico levantou, aproximou-se dela, tirando uma seringa do bolso e queria injetar algo em seu braço.
A dor de cabeça passou e ela ergueu a cabeça com uma postura e um olhar, totalmente diferentes do que estava antes, levantou-se, olhou para o médico com autoridade e ordenou, com voz baixa:
— Não toque em mim…nunca mais!
O médico olhou para ela, assustado e percebeu que ela estava consciente. Sabia que aquilo podia acontecer, mas não contou que ela fosse vir direto para o tribunal. Pretendia aplicar a injeção, assim que chegasse. Notou o olhar enraivecido de sua cliente e começou a elaborar outro plano.
— Senhora, controle-se, por favor. — disse o juiz.
— Estou bem, excelência, só peço que afastem esse médico de mim. — falou ela, com seriedade e controle.
— Peço que afastem o médico e sua seringa de minha cliente, excelência. — pediu o advogado de defesa, levantando-se da cadeira em que estava sentado ao seu lado.
Ela olhou para ele e sorriu, agradecida.
— Ela me parece bem, pode ir doutor. — ordenou o juiz.
O médico se retirou, a contragosto, pois sabia que aquela atitude, significava a derrota dos planos meticulosos, postos em prática a tanto tempo.
— Responda a pergunta, senhora! — ordenou o juiz.
— Essa pergunta não foi dirigida a mim, então não posso respondê-la. — disse ela com tranquilidade e lucidez.
O juiz franziu a testa sem entender nada.
— Como assim, seu nome não é Maria Lucia Galvão Nepomuceno?
— Não, eu sou Maria Célia Nepomuceno Aragão.
— A senhora quer dizer que foi presa por engano?
— Sim, excelência, fiquei em um sanatório sem ter contato com ninguém do mundo exterior, creio que por ter perdido a memória, mas chegando aqui e vendo tantos rostos conhecidos — olhou para um casal, sentado na segunda fileira oposta a dela — e o senhor me chamando por outro nome, lembrei de todo o ocorrido.
— O que me diz o senhor advogado da ré? — perguntou o juiz, impaciente.
— Sempre tive essa desconfiança, meritíssimo juiz, mas nunca me deixaram vê-la e não pude confirmar. — respondeu o advogado, constrangido.
— Então, existe uma maneira de confirmar o que ela diz e qual seria? — perguntou o juiz, mostrando sua irritação e zombando da situação.
Se o advogado tinha tanta certeza de que, a mulher ali presente, não era quem todos achavam que era, ele devia ter alguma maneira de provar.
— A senhora Aragão e eu, sempre fomos muito amigos e quando éramos jovens, para a diferenciar da irmã gêmea, que vivia se fazendo passar por ela, fez uma tatuagem no couro cabeludo.
As gêmeas
Imediatamente, Maria Lúcia levantou-se e disse, enérgica:
— Isso é uma calúnia, cuidado advogado!
Maria Célia olhou para sua irmã e viu seus olhos arregalados e seu nervosismo.
— Pode me mostrar, senhora? Aproxime-se. — pediu o juiz.
Ela foi até o juiz e afastou o cabelo de sua fronte, onde podia-se ver um pequeno desenho de um coração vermelho.
— Que conste dos autos que a interrogada mostrou a tatuagem de um coração vermelho, sob os cabelos. — ordenou o juiz.
— Tenho o registro da tatuagem, com o nome da tatuada, meritíssimo juiz.
— Esclarecida esta questão, essa audiência será adiada por 24 horas, para que possamos atualizar os dados e por via das dúvidas, detenham, também, a irmã da acusada. Advogados, na minha sala, agora!
O juíz bateu o martelo e saiu. Os guardas detiveram as duas irmãs, tendo que aguentar os gritos e reclamações de Maria Lúcia, que chingava a irmã, se dizendo inocente e caluniada.
Na sala do juiz, os dois advogados eram interrogados pelo juiz furioso:
— Que palhaçada foi essa, pensam que o dinheiro público é capim e o tempo do juiz não vale nada? Me expliquem o que está havendo aqui.
— Em minha defesa, senhor, digo que não fazia a mínima ideia de quem era quem, já que a acusada estava desmemoriada. — disse o Dr. Arnold, advogado de acusação.
— E eu, excelência, tinha minhas desconfianças, mas cada vez que ia visitar a paciente, era impedido de ter contato com ela, pelo médico, que sempre alegava algum problema. — disse o Dr. Aragão, advogado de defesa.
— Essa foi a defesa de vocês e a defesa dela, quem faz? Como justificar que não verificaram quem era a acusada. Ela alega inocência, então quais as provas que a mantiveram presa?
— Ela foi detida em flagrante, acusada pela irmã e embora estivesse dentro do prazo de flagrante, ela havia sido sedada e estava inconsciente. Quando acordou estava desmemoriada.
— Eu sempre desconfiei de tudo isso e as provas da acusação são circunstâncias, o que pesa é o testemunho da irmã, que alega ter visto tudo. Mas agora, com a lembrança da minha cliente, fica a questão de quem diz a verdade.
— Tudo por conta de um médico.
O juiz expediu uma ordem de condução coercitiva para o médico, para que fosse levado para interrogatório, imediatamente, e que não permitissem que ele se ausentasse da cidade. Aquela história estava muito mal contada.
*
Maria Célia se lembrava de tudo o que aconteceu e estava muito desgostosa com sua irmã. Sempre foi prejudicada pelo comportamento da irmã gêmea e depois de separadas, só se viam uma vez por ano, quando Lúcia vinha ficar com o pai.
As duas irmãs moravam com os pais em um apartamento, na cidade grande e eram acostumadas a ouvir a briga dos pais, desde que eram crianças, até que se separaram, quando elas tinham 14 anos. O pai fez questão de ficar com Célia e Lúcia ficou com a mãe.
Depois de adulta, Célia entendeu o porquê da briga dos pais, que era por causa de Lúcia. Seu pai não aceitava o fato da mãe saber das atitudes erradas de Lúcia e passar a mão em sua cabeça. A questão era que Lucia sempre fingia ser Célia, quando fazia as coisas erradas e isso piorava a situação, pois Célia levava surras da mãe, por ser culpada do que não fez.
Célia
Para Célia, foi um alívio se livrar das artimanhas da irmã e viver tranquila no campo. Conheceu Flávio, seu atual advogado, na escola. Ele era seu vizinho e passavam muito tempo juntos. Quando sua irmã vinha passar as ferias com o pai, enganou Flávio e quando jovens, ela fez a tatuagem que as diferenciavam, para que Flávio não caísse mais nas artimanhas da irmã.
Flávio
Célia nunca visitava a mãe, pois seu pai não deixava, com receio do que Lúcia podia fazer, mas não percebia o que ela fazia, quando vinha passar as férias. O último ano que Lúcia foi passar com eles, foi antes de seu pai morrer, ela, como das outras vezes, se apoderou de suas coisas, quando ninguém estava olhando e se fez passar por ela. Foi embora e Célia não soube, exatamente, o que a irmã aprontou.
Os irmãos Fausto e Flávio Aragão eram vizinhos de seu avô, com um ano a mais do que ela, Flavio era alto, bonito e educado e conforme entraram na juventude, passaram a sair para cinemas, baladas e festas. Ela percebeu que Fausto, o irmão mais velho de Flávio, estava sempre a observar, mas não se aproximava.
Quando precisava, Flávio estava sempre predisposto a ajudar e parecia seu cavaleiro andante. Já Fausto, tratava-a friamente e mantinha-a à distância, era bonito, inteligente e muito cobiçado pelas garotas, por ser mais velho, mas não se misturava e nunca era visto com uma namorada.
Fausto
Fausto, depois que assumiu o grupo Aragão, como CEO, ficou mais frio e distante ainda. Flávio era mais descontraído, um bom amigo e Célia não sentia nenhuma atração por ele. Mas, ele, secretamente, era apaixonado por ela.
Formada em economia, Célia foi trabalhar na empresa das duas familias e gostou de interagir com Fausto, ele a tratava bem, embora continuasse agindo friamente. Às vezes, Célia notava que ele a olhava, mas desviava o olhar, quando ela notava.
Lúcia
Depois da última visita de Lúcia, Fausto passou a tratar Célia de forma diferente, com mais intimidade, como se fossem namorados, mas ela o afastou e ele esfriou novamente, sem entender e manteve distância, voltando ao seu ar taciturno.
Até o dia que seu avô a chamou para uma conversa. Ela bateu na porta e entrou:
— Sente-se, querida. — disse ele, sorrindo amável. Ele era sempre assim com Célia, mas não gostava de Lúcia, considerava-a muito dissimulada.
— Aconteceu alguma coisa, vovô?
Ela sentou-se, conhecia bem aquele lugar e seus esconderijos e estranhou a seriedade do avô, pois estava com 24 anos e nunca tinha visto seu avô tão sério e preocupado.
— O que vou lhe contar, pode parecer fora do normal e até uma besteira, mas os anos passaram e as coisas se confirmaram.
— O senhor está me deixando preocupada, vovô.
— E é para ficar. Os homens de nossa família foram amaldiçoados e todos que não se casaram até os 25 anos ou se divorciaram, morreram.
— Isso me parece um tanto tolo, vovô.
— Escute. Até agora, foram só os homens, mas não sei se pode afetar as mulheres, mas é certo que vários casos aconteceram e aqui estão os estudos sobre isso. Uma das mulheres que se divorciaram, sumiu dentro desta casa.
O olhar e expressão de Célia, dizia exatamente o que ela achava daquela história: balela. Seu avô percebeu que não seria fácil convencê-la do que queria que ela fizesse.
Ela tentou manter a calma, mas era difícil, quando havia escutado uma história tão estapafúrdia.
— Uma maldição? — riu — Eu não acredito nisso. Como alguém pode sumir dentro de uma casa?
— Bem, querida, de qualquer forma, eu gostaria de morrer tranquilo e deixar você em boas mãos. — iniciou ele, o verdadeiro motivo da conversa.
Ele conhecia bem a neta e sabia que ela era uma neta obediente e que agia mais pela razão, do que pela emoção e viu ela fechar a expressão, demonstrando que entendeu onde ele queria chegar.
Ele queria que ela se casasse com um bom homem, que a amasse e lhe desse segurança.
— O senhor tem um pretendente para mim, não é, vovô? — ela sorriu, irônica, para o avô.
— Você é esperta, mas a maldição é verdadeira. — reiterou ele, sorrindo.
— Tá, então, quem é o pretendente? — falou, tentando ganhar tempo para inventar uma desculpa e dizer que não ia casar com ninguém.
— É alguém que você conhece e que gosta de você, Fausto Aragão.
Célia arregalou os olhos e depois franziu as sobrancelhas, surpresa com a sugestão do avô e principalmente por ele aceitar. Talvez por isso, Fausto estivesse se comportando com tanta intimidade. Mas porque eles achavam que ela aceitaria, era a grande questão que ela não entendia.
— Posso pensar no assunto?
— Até amanhã.
— Uau, isso parece urgente.
— Sim, aqui está o porque.
Ele passou a ela um bilhete, que ela pegou e leu, sem acreditar que aquilo era real.
" Falta pouco para a maldição acontecer, novamente, o que acha, levo a Célia ou a Lúcia, qual você prefere? "
— Essa história está muito mal contada, não me parece uma maldição.
— Parece uma vendeta. — disse o avô.
— Sim e pelo visto, bem antiga. Precisamos investigar. Vou pensar sobre o casamento, mas não se iluda, se eu aceitar, não será por causa da tal maldição. — retirou-se após falar e foi para seu quarto, levando as pastas.
*
No dia seguinte, Célia voltou ao escritório.
— Encontrou alguma coisa que nos elucide o mistério? — perguntou o avô.
— Bom dia para o senhor também, vovô, tá e ocultando o quê?
— Você e Lúcia, fazem aniversário daqui a cinco meses, você é a mais velha, portanto, tenho motivos para me preocupar, ou não? — perguntou o avô.
— Eu me caso com Fausto, mas que fique bem claro, que não é por causa da tal maldição. Quero um noivado longo, para me acostuar.
— Ótimo, querida. Ele é um homem bom e cuidará bem de você. Pode até chegar a amá-lo, quando se conhecerem melhor. Então, não precisarei mais me preocupar com a maldição, daqui a quatro meses, vocês se casarão.
Foi como se ela não tivesse falado nada.
— Não pese mais na maldição, o casamento a anulará.
Célia sentiu que caiu em uma armadilha e agora, como já deu o seu consentimento, não podia mais voltar atrás, pois seu avô, jamais aceitaria, era como uma desonra.
Ela concordou com a cabeça, tinha suas dúvidas, mas não estava a fim de sair pelo mundo, procurando seu par perfeito. Fausto não era desconhecido, também não era perfeito, mas era melhor assim.
Em três meses, estavam se unindo em uma cerimônia religiosa, na igreja do condado e com alguns convidados escolhidos a dedo. Fausto estava nervoso, acreditando que Célia aceitou casar com ele, por corresponder ao seu amor.
Casarão do avô Jurandir, onde o casal foi morar.
A noiva estava linda e o noivo impecável e sorridente. Depois, houve uma pequena recepção para cumprimento dos noivos e eles passaram a noite de núpcias na ala sul da mansão, que foi reservada para eles. No dia seguinte iriam fazer uma viagem de uma semana, como lua de mel.
Ela vestiu uma camisola de renda branca e esperou por ele, sentada na cama. Ele chegou, vestindo só um roupão e agindo como se já fossem íntimos, a tomou em seus braços e a beijou com volúpia.
— Enfim sós, como dizem. — disse ele. — não via a hora de estarmos juntos novamente.
Ela franziu a testa, estranhando aquela fala, mas não questionou, cedeu aos seus carinhos, até que ele tirou sua camisola, rasgando-a. Ela o agastou um pouco e pediu:
— Vá com calma, Fausto, está sendo rude.
Ele sorriu , suas mãos grandes passaram por seu corpo, apertando e a boca sugava e mordia por seus pontos sensíveis.
Célia não gostou do seu comportamento e quando ele a deitou na cama e tirou o roupão, revelando seu corpo nu e potente, assustou-se com a visão. Ele se colocou entre suas pernas, preparando-se para penetrá-la, mas ela o empurrou e surpreendeu-o. Saiu da cama, com um pulo, puxando o lençol para se enrolar e cobrir seu corpo.
— Ei, o que houve, por quê fugiu? Você sempre gostou! — reclamou ele, sem nenhum pudor por estar nu.
— Eu sempre gostei? Eu nunca fiz isso e acho que minha primeira vez, não merece ser desse jeito. — disse ela, sem fitar os olhos nele, vergonhada.
Ele deu uma gargalhada, ainda sentado sobre a cama, sem sequer pensar em se cobrir.
— Não vem com essa, Célia, transamos que nem coelhos no final do ano, por quê está me tratando assim? — perguntou ele, começando a desconfiar da situação.
Ela entendeu o que tinha acontecido, sua irmã havia se passado por ela de novo, mas qual seria o objetivo dela em fazer isso? Muito pálida e aborrecida, esclareceu.
— Não era eu, era Lúcia e você não vai tocar em mim, enquanto não me olhar e entender que não sou ela.
Saiu pela porta, indo para o outro quarto e deixando o marido estupefacto com a revelação. Ele levou um bom tempo para entender que foi enganado por Lúcia.
Na última vez que esteve ali, ela descobriu que ele gostava de Célia e se fez de amiga, dizendo que o ajudaria com a irmã e marcou um encontro, se fez passar por Célia e seu desejo era tanto, que caiu na armadilha.
— E agora, o que eu faço? A mulher que eu amo, de verdade, nunca vai me perdoar por isso.
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