"Em nossas vidas, a mudança é inevitável. A perda é inevitável. A felicidade reside na nossa adaptabilidade em sobreviver a tudo de ruim."
Lorenzo Varrialle.
"Con te partirò" de Adrea Bocelli estourou na sala de estar, enquanto desligava subitamente a esteira ergométrica, errar o passo e quase ir ao chão.
Mamma mia!
Levei cinco segundos para me recompor e, enquanto segurava firme no aparelho de ginástica, olhei o celular, que exibia a notificação de uma inoportuna chamada de vídeo e a imagem da minha assistente pessoal com o seu irritante controle de tempo, do meu tempo na verdade.
Era um péssimo momento para qualquer pessoa entrar em contato. Aquela mulher, mais do que ninguém, sabia disso.
Até pensei em ignorá-la, mas minha razão tomou a frente quando cogitei ter ocorrido algo de grave na empresa.
— A Varrialle pegou fogo, senhorita Giovanna?
Forcei um tom equilibrado.
— Senhorita Giovanna?
Arqueei uma sobrancelha ao perceber os olhos estreitos concentrados na nudez do meu peito.
Não era como se eu me importasse em receber aquele tipo de olhar, mas Giovanna era a minha assistente. Eu não estava disposto a perder minha assistente pessoal por ter tirado os vestidos dela.
— Ah, não senhor, nada de… fogo senhor Lorenzo.
Sacudiu a cabeça, como se estivesse
recuperando a imagem familiar do homem cujo corpo estava sempre coberto
por trajes finos.
— Eu que estou preocupada com o senhor.
— Por qual motivo senhorita Giovanna?
Indaguei, sossegado quanto a isso, pois eu checava os canais de comunicação de minha empresa a cada cinco horas.
Os relatórios de vendas e quebras dos dias anteriores também já haviam sido
analisados e, como sempre, estavam satisfatórios.
— Está tudo certo na empresa, senhor Lorenzo, inclusive estou quase de saída. Acontece que passei aqui na recepção e fiquei sabendo que você agrediu um dos seguranças ontem a tarde e por motivo banal. Você viajou e não me deixou ciente…
— Já resolvi a situação senhorita, não tem porque se preocupar.
Interrompi.
— Se for só isso, pode seguir seu caminho e descansar sossegada.
— Você não acha melhor sondar o rapaz e eliminar qualquer brecha de escândalos ou…
— Repito: tudo resolvido, senhorita Giovanna! vá para casa descansar.
Puxei a toalha do aparelho ao lado para secar o suor do meu rosto. Definitivamente, não me orgulhava de atitudes impetuosas no
ambiente de trabalho.
Até assinaria uma bela justa causa se eu não fosse o próprio CEO fundador do grupo.
Não que fosse uma justificativa madura para ter quebrado o nariz do meu funcionário, mas acontece que os dias turvos estavam me fazendo perder o controle diante de situações rotineiras e isso mexia com o ego foda que
construí ao longo de quinze anos.
Você é forte, líder, exemplo para um grande time. Reaja! Eu dizia a mim mesmo, mas nada estagnava a terrível dor que massacrava a minha alma desde que me vi sem dona Pietra Varrialle, minha mãe, meu único laço
sanguíneo, que mesmo lutando com determinação, acabou perdendo a batalha
contra o câncer.
Era difícil de acreditar que há alguns meses ela estava ali, exercitando-se, rindo, abraçando os empregados e dançando com eles, sem saber que dentro dela existia uma bomba relógio.
Agora, trinta e cinco dias depois de seu último suspiro, a casa de veraneio estava vazia. Apenas eu, o luto e a solidão ocupavam o ambiente que, por muito tempo, foi o nosso refúgio.
— Não quero ser insistente, Senhor Lorenzo.
Dei-me conta de que a mulher ainda estava na linha.
— Mas sei que está vivendo os piores dias da sua vida e me preocupo com a sua estabilidade emocional. Todos aqui estão
preocupados. Seu comportamento nunca beirou à delinquência, no entanto…
— Se estivessem trabalhando, não sobraria tempo para preocupações desnecessárias! Por que é tão difícil de entender que preciso de um tempo sozinho?
— T-tudo bem… Não vou mais atrapalhar seu dia.
A voz de Giovanna estremeceu.
— A única intenção é ajudar o senhor.
Suspirei sem paciência, ciente de que do outro lado estava uma mulher sensível e tão competente que eu tinha delegado a ela uma estreita brecha da minha vida pessoal.
— Está tudo dentro do meu controle, senhorita.
Blefei, forçando um tom amável.
— Só preciso de um tempo para colocar a minha cabeça em ordem e viver um pouco mais desse luto que destruiu o meu pedaço de humanidade.
— Tudo bem. Você já se alimentou hoje?
Perguntou, as bochechas pálidas ganhando um tom avermelhado de puro constrangimento.
— Vou marcar uma sessão terapia para o senhor.
— Não há necessidade senhorita Giovanna. —
Suspirei impaciente, querendo permanecer
isolado, escondendo minhas inabilidades do mundo.
— Obrigado pela preocupação, querida, agora vá para casa e fique longe de álcool. Me ligue
apenas se surgir alguma eventualidade na Varrialle.
Desliguei a tela do celular e desci da esteira sem olhar para trás, direcionando meus pés para a minha suíte.
A casa de noventa e nove metros quadrados em arquitetura moderna e aconchego rústico, situada na beira da praia de Sardenha, na Itália, foi o meu primeiro imóvel adquirido com lucros da Varrialle.
Pertencia à minha mãe. Um presente que planejei na adolescência, quando ela, mãe solteira, desdobrava-se em duas para dar conta da casa e fazer massas em todos os
dias da semana, incluindo feriados, a fim de pagar meus estudos na Universidade Sanpieza de Roma.
Ainda no corredor, afrouxei o cordão da minha calça e a puxei para fora das coxas. Antes de alcançar a porta do quarto, tocaram a campainha da casa com uma certa insistência tão descontrolada que pensei ter abalado o microfone do meu implante auditivo.
Voei nervoso na direção da sala, recompus minha calça no caminho, bati na parede e cheguei ofegante ao destino.
— Cazzo!
Reclamei antes de alcançar a porta. Quando a puxei, deparei-me com um casal de desocupados fugindo pela saída.
Eles atravessaram a rua de paralelepípedo, correndo na direção de um bug velho.
— Cazzo! Vai apertar a campainha do inferno ou vem aqui que aperto para vocês!
Gritei, vendo o casal escapar, fazendo uma barulheira infernal.
"Nossas vidas são definidas por momentos. Principalmente aqueles que nos pegam de surpresa."
Lorenzo Varrialle.
— Blavo, mui blavo. Rum! Mamãe não gosta.
Ouvi uma reclamação infantil e engoli em seco, sentindo uma força estranha travar meus músculos no lugar.
Tenso e irritado, investiguei o vulto pelo reflexo.
Roupa masculina, triciclo infantil, bichinho de pelúcia na mão do garoto, mochila nas costas e bochechas…
Che palle! Abandonaram um menino na minha porta!
Olhei para os dois lados e recuei sorrateiramente, atravessando a divisa da porta, pronto para fingir não ter visto nada.
— É dejenho?
Murmurou o pequeno ser desconhecido, trazendo dois dedos na direção das minhas tatuagens.
— Shi! Fique aí!
Dei outra olhada no perímetro.
— Uau, muito dejenho.
Evitando olhá-lo diretamente, manobrei e empurrei o triciclo com o peito do pé, presenciando minúsculos sapatinhos trabalharem ligeiramente nos pedais do veículo infantil.
— Eles vão voltar para buscar você. Fique aí.
Estacionei o triciclo fora da varanda.
— Figlio di buona donna irresponsáveis!
Deixei a criatura na grama e voltei para dentro de casa, soltando xingamentos em italiano, lembrando-me do episódio de anos atrás, quando uma mulher maluca e pistoleira tentou me aplicar o golpe da barriga e provocou um alvoroço desgraçado nas redes sociais.
Entrei no meu quarto já nu e joguei a calça perto da porta. Fui direto para o banho e, enquanto a água naturalmente morna acalentava meus músculos exaustos pelo excesso de exercícios físicos, meu subconsciente tentou me acusar.
A criança ficou sozinha do lado de fora.
Firmei minhas mãos no azulejo, sentindo uma inquietação fora do comum atravessar o meu peito.
Não é minha responsabilidade, retruquei, respirando calmamente e engolindo um pouco de água.
A imagem da criança sendo levada por um maníaco, traficantes de órgãos ou qualquer coisa do gênero assombrou meus pensamentos ao ponto de a culpa pesar sobre minhas costas.
— Ah, cazzo!
Agoniado, desliguei o chuveiro e deixei o banheiro para entrar no quarto, pingando água no assoalho. Puxei a primeira bermuda do guarda-roupa e corri nu até a sala, onde me vesti com a bermuda antes de abrir a
porta.
Vi o pequeno corpo de bruços no final da trilha de grama e ouvi seu pranto engasgado, misturados a gritos do que parecia ser “mamãe”.
Embalado pela terrível nuvem de culpa, praticamente saltei os três metros que nos separavam.
— Ei, como veio parar aqui, menino?
Consegui dizer antes de virá-lo e ser atingido por um choque de surpresa que estremeceu cada parte do meu corpo.
Que cazzo era aquilo?
Com olhos arregalados e coração acelerado, desabei sentado na grama, fitando esferas enormes e castanhos, um nariz minúsculo que liberava bolhas de secreção e mãos pequenas estendidas, pedindo algum tipo de ajuda que eu não era capaz de oferecer no momento por estar paralisado.
Quando? Obriguei meu cérebro a trabalhar nas possibilidades.
Era novinho, certamente nascido depois do escândalo que me fez recorrer a um procedimento de esterilização e proteger minhas sementes para uma futura barriga de aluguel na Itália.
Não era possível ser meu, mas qual outra explicação para ter uma pequena cópia minha diante dos meus olhos?
A ideia de abandonar o ceticismo não soou tão estranha, mas meu cérebro contra-atacou com dados exatos. O menino à minha frente estava longe de ter dois anos.
— Remédio…
A bochechuda arrebitou o lábio inferior e liberou um soluço.
Re… médio?
Era bom não ser uma pista, porque eu não fazia ideia do que se tratava.
— Oi?
Indaguei, vendo-o levantar um dos sapatos na minha direção.
— Er… Ahn… É um sapato muito bonito
e… combina com sua roupinha.
Cazzo! De repente, eu era um idiota. Pela primeira vez, estava nervoso diante de alguém. Um projeto de homem que, por alguma razão, tinha os meus olhos.
"E de surpresa em surpresa, o inesperado. E quando o inesperado lhe sorri, como não lhe sorrir de volta?"
Lorenzo Varrialle.
Corri para pequena criança que chorava.
— Dodói, Luquinha dodói!
Soluçou com os lábios trêmulos e a perna
erguida.
Assustado diante dos olhos familiares, segurei o pequeno sapato que
liberava um cheiro incrível de goma de mascar e fiz uma rápida conferência,
encontrando o motivo do choro no centro da base pálida do joelho esquerdo.
Não era nada grandioso, contudo, eliminava uma linha de secreção vermelha aguada, que escorria na direção da minúscula panturrilha e passava sobre um sinal amarronzado, idêntico ao que eu carregava desde o
nascimento.
Ele é meu?
Meu coração debateu feito um louco dentro do peito.
Era necessário estar em um nível elevado de confiança para não usar proteção em uma transa e, mesmo nunca me envolvendo emocionalmente com as mulheres que estiveram em minha cama, a evidência da falha estava escrita em cada traço da criança.
Sim, ele é meu, não tem como não ser!
Não percebi quando aconteceu, mas no momento seguinte, o pequeno estava em volta dos meus braços, sentindo o tremor das minhas mãos em seus cabelos, soluçando na curva do meu pescoço e infiltrando seu cheiro de colônia infantil em minhas narinas.
— Um pouquinho de remédio, tem?
Indagou.
Acomodei-o sentado sobre minhas pernas e passei a mão no rosto molhado, ficando mais surpreso com cada traço de semelhança.
— Oi, bebê.
Ele tinha muitos dentes na boca para ser considerado um bebê, mas "al diavolo questo", pois segundo o processamento do meu cérebro, o bolinho choroso não passava de um bebezinho recém-chegado.
— Remédio no dodói de Lucca.
— O seu…
Parei antes de testar a nova palavra.
— O seu dodói está muito forte?
Afastei os cabelos castanhos que alcançavam a curva do ombro. Era
assombroso, mas até o comprimento e a textura fina dos cabelos lembravam
os meus cabelos quando eu era criança.
— Luquinha muito felido. Ai!
— Onde está a sua mãe?
Passei meus polegares nos olhos do
menino e afastei mais da umidade excessiva.
— Quem trouxe você aqui?
— Catelina não gosta de Luquinha.
Não entendi claramente, mas consegui entedrr a tal Caterina.
— Esse é o nome da sua mãe, bebê?
— Mamãe não gosta de Caterina .
— Sua mãe não gosta?
Analisei a informação que não me ajudava
em nada.
— Tem papel na mochila.
— O quê, menino?
— Dento da mochila na costa de Lucca.
Ele bateu as mãos na alça grossa da mochila com uma esperteza surpreendente.
— Posso ver a sua mochila?
— Rum! mochila meu!
Resmungou com a fisionomia de menino bravo e finalizou com um soluço, o choro já se esvaindo.
— Não, bebê. Não vou pegar sua mochila. Só quero ver o conteúdo, o que tem aí dentro. Pistas sobre você, entende?
— Mochila de Luquinha! Tudo meu!
Cerrou o pequeno punho e escorregou para fora do meu colo, engatinhando até o triciclo, deixando o joelho ferido longe do chão.
Quando virou o pequeno veículo e se apoiou nele para se levantar, dando sinais de que estava bem, dei-me conta de que prendia a respiração.
A preocupação inesperada deu os primeiros sinais.
— Que loucura é essa?
Puxei uma longa respiração e pendi meu
corpo para trás, deitando minha cabeça na grama e olhando para o céu tão azul quanto a água do mar que enfeitava a vista de minha casa.
— Mãe, não brinca comigo, mulher! Eu precisava da senhora aqui, neste exato momento.
Gargalhei nervoso, lembrando-me dos momentos em que dona Pietra criava mil possibilidades a fim de requerer um neto.
Na remota possiblidade, eu não estava mais sozinho no mundo.
Existia um herdeiro do meu sangue antes mesmo de procurar uma barriga de aluguel para gerar meu filho. Cazzo! Sem planejamento, com uma mãe golpista, ou o que fosse, era problema.
Isso não se encaixava na minha ideia de família.
— Cateline fez uma carta pala você.
Um papel pousou sobre meu rosto. Depois de apanhá-lo, sentei-me rapidamente para checar o conteúdo.
"A Lorenzo Varrialle
Você não se lembra de mim, pois fui apenas uma distração casual, mas acredite, sou a mãe do seu filho.
Não procurei você antes, pois sou muito orgulhosa e acredito fielmente nos meus poderes de Mulher-Maravilha. Mas quer saber? Não dá mais para segurar tudo sozinha. Lucca tem um pai e ele precisa assumir responsabilidades.
Por enquanto, você só precisa ficar com o menino por alguns dias.
Vou buscá-lo a qualquer momento e esteja pronto para cumprir suas obrigações financeiras.
Lucca é saudável, mas o deixe longe de gelados e doces.
PREPARE O BOLSO!
Atenciosamente, Solange Moretti, mãe de Lucca, seu filho."
Olhei assustado para a criança, que agora retirava pequenas dinossauros coloridos de dentro da mochila e organizava sobre a grama.
Lucca?
— Cazzo!
Exclamei com as mãos na cabeça.
— Cazzooo?
O menino reproduziu em tom de curiosidade antes de erguer um dos dinossauros e correr com o vento como se voasse.
— Cazzo é muito legal.
— Não, não pode, neném!
Abracei o pequeno pelo meio da cintura e levei-o para dentro de casa.
Desorientado, tropecei no degrau da porta e por pouco não derrubei a criança.
Diavolo! Mil vezes Diavolo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!