Bianca Diniz Garcia, 34 anos.
Quando entrei no edital MP SP do concurso para promotor da justiça, e tive o resultado oficial, fiquei numa espécie de transe, me senti num déjà vu, minha cabeça, como num clique automático, foi transportada há 16 anos atrás, quando era uma garota sonhadora, e tudo o que mais queria, era sair do interior de Pernambuco e realizar meu desejo de cursar Direito, e ingressar no mundo da advogacia. Defender os necessitados e carentes, lutar pela justiça.
Suspirei e soltei um riso nervoso. Era tão ingênua na época, mal sabia o rumo que minha vida tomaria. Confesso que São Paulo não era a minha primeira opção, não gostava de relembrar o que havia vivido naquele estado, mas era minha chance de realizar O SONHO, então embarquei nessa tentativa.
Voltei a olhar o resultado na tela do notebook, e não tinha como evitar não voltar ao dia que descobri que ingressaria na Universidade de São Paulo (USP). Na casa dos meus pais, foi motivo de comemoração, toda família, parentes e amigos se juntaram num churrasco. A primeira na família a passar numa universidade federal tão renomada. Eu também estava orgulhosa de mim, foi minha primeira conquista, e com apenas dezoito anos, naquele dia me senti uma adulta, pronta para qualquer adversidade, eu teria meu diploma, e com o tempo, teria meu emprego dos sonhos, ser promotora da justiça!
Embarquei na nova realidade da minha vida, deixei meus pais, irmãos, amigos, cultura, e parti para um lugar, onde eu não fazia idéia do que iria enfrentar.
De primeira, a gente estranha o ritmo acelerado da capital, a falta de empatia nas pessoas, e tudo gira em torno de ganhar dinheiro. Meu pai, Mauro, um técnico em eletrotécnica, que trabalhava na companhia de energia de Caruaru, também fazia bicos, só para poder enviar dinheiro e me ajudar com os gastos indispensáveis.
*Mauro Garcia, 58 anos*
Minha mãe, Rosana, trabalhava num fabrico de roupas, e aceitava costura particular, também foi essencial para o sustento da família, pois eu era a mais velha, e tinha meu irmão Maurício, cinco anos mais novo, além da caçula, Beatriz, de 7 anos na época.
Por sorte, eu consegui auxílio moradia, então não precisava pagar aluguel e tinha um quarto no alojamento da universidade, não era o melhor lugar, fedia á mofo e suor adolescente, roupas espalhadas, outras penduradas, mas não podia reclamar, não poderia pagar um apartamento, nem mesmo uma quitinete, tinha meus gastos básicos, além dos livros caros. Saí em busca de emprego, e acabei encontrando um trabalho de vendedora, numa lojinha de roupas que estava iniciando, mal sabia que me tornaria amiga inseparável da dona, Brenda, foi uma amiga daquelas que nunca se esquece.
Não era uma vida fácil, mesmo trabalhando, ainda precisei da ajuda dos meus pais inúmeras vezes, o custo de vida em São Paulo era muito alto. Mas estava obstinada, nada me tiraria daquele curso. O cansaço às vezes era tão grande que era capaz de dormir em pé. Lembro de tantas vezes, de madrugada, querer apenas ir para cama e dormir, mas tinha que ler, e ler até os olhos ficarem embaçados. Era movida a café e energético, mas gostava do que fazia, quanto mais me adentrava no mundo das leis e direitos, mais eu me apaixonava, sentia que havia nascido para aquilo.
Bom, mas isso é a parte boa, o que deu tudo errado, estava por vir, eu só não sabia na época, era muito inocente e carregava uma paixão platônica. Na minha turma, tinha um garoto do tipo conquistador, ele era lindo, Gabriel Fontes Salazar! Era um sonho de consumo para qualquer garota, e até às professoras davam cantadas, pois os olhos sedutores, a vasta cabeleira escura, o rosto numa simetria perfeita, conquistaria qualquer uma, e comigo não foi diferente, me encantei com o garoto popular, mas não ousei falar ou demostrar isso, somente a Brenda ouvia os meus suspiros apaixonados. Não era tão tola, sabia da fama de "pegador", qualquer tentativa de aproximação, seria por pura vaidade, e um coração partido.
O primeiro ano passou, ele nem mesmo reparava em mim, e também não dei motivos para isso, era uma garota focada, não ia nas festas, não saía para me divertir, e acabei não me enturmando. Foi um ano bem solitário, quando chegou as férias, mal podia esperar para estar na minha terrinha e poder ver minha família.
Em meados do segundo ano, percebi que Gabriel estava diferente, apesar do ar galanteador e malandro, ele sempre foi um aluno aplicado, mas naquele ano, ele não participava das aulas, vivia de mal humor, e fazia parte do grupo dos mäconheiros, lembro de passar inúmeras vezes naquele beco e vê-lo chapado. Ele estava bem diferente. Com certeza havia passado por algum problema. No segundo ano me enturmei mais, e até fui em algumas festas, mas não era do meu feitio participar daquelas bebedeiras, danças e sair beijando e transando como se não houvesse amanhã.
Bianca
No início do segundo semestre, um professor de Direito Administrativo criou duplas, e mal acreditei quando Gabriel foi escolhido para ser meu parceiro administrativo. Acredito que foi a primeira vez que ele me notou, estava feliz porque seria uma oportunidade de ficar próxima dele, ignorei todos os sinais de alerta, e me deixei apreciar a companhia do meu crush. Por outro lado, estava ciente que o trabalho seria somente meu, pois ele estava totalmente alienado nos últimos dias.
Mesmo sendo em dupla, nos juntamos com outras duas duplas, e nos encontravamos na biblioteca, ou em uma lanchonete próxima da universidade. Diria que foi a melhor fase da minha vida, eu me soltei, falava bastante, e a turma adorava ver meu jeito nordestino, e o sotaque característico, eles riam a beça do meu linguajar, e sempre perguntavam, como chamam "isso" no nordeste?
Gabriel também se divertia, e com o passar dos dias, notei que ele estava mais envolvido com o trabalho sobre direito administrativo, e mais atento aos horários que nós nos encontravamos.
Depois desse trabalho, Gabriel se aproximou de mim, mas não era com segundas intenções, eu sentia que ele só queria um amigo sincero, então foi o que fomos, mas não vou negar, que a cada dia que passava com ele, mais meu coração se apaixonava, ele me atraía devastadoramente. Foi nesse ponto, que descobri que ele era filho de um vereador da capital São Paulo, e além de tudo, seu pai era dono de uma grande empresa de advocacia. Salazar era um nome conhecido tanto na universidade como nas áreas nobres de São Paulo. Ele não gostava de falar muito da família, os pais eram divorciados e parece que ele tinha um irmão paterno e uma irmã materna. O que ele gostava mesmo, era de me ouvir falar, sempre me perguntava como era viver no interior, como era minha vida, e quando eu falava, os olhos dele brilhavam, como se ele desejasse aquela vida, que para mim era tão natural.
No terceiro ano, já estávamos íntimos, ele sempre ia no meu dormitório para estudar, e às vezes ele me levava no apartamento dele, na cobertura de um dos prédios mais luxuosos de São Paulo. Mas éramos só amigos, por incrível que pareça, ele respeitou o limite de amigos durante um ano. Ele disse que quando estudava comigo, eu o fazia gostar do que estava estudando, porque a minha paixão pelo curso, o animava. Obviamente, ele escolheu o curso por pressão do pai, ele era o herdeiro e tinha que continuar o negócio. Ele disse que não se importava em ser advogado, nunca se imaginou sendo outra coisa, mas o que o chateava, era que seu pai queria prepará-lo para o mundo político, e isso ele não tinha o menor interesse. Um ano de amizade, e falávamos sobre tudo, nesse ponto já éramos amigos inseparáveis.
No final do terceiro ano, estavamos nas provas finais, nesse dia estava no apartamento dele, já era tarde, estava pilhada com não sei quantas latas de energéticos, repetindo o assunto das avaliações por inúmeras vezes, enquanto ele estava rindo, já tinha tomado umas cervejas, e estava mais relaxado do que eu. Lembro de me jogar no tapete da sala, exausta e reclamar de dor de cabeça e cansaço. Ele ficou ao meu lado, deitado, e falou:"Fica linda quando está estressada!"
Meu coração faltou sair pela boca, meu crush estava me chamando de linda?
Eu sorri tímida, e ele se aproximou e acariciou meus cabelos com carinho. Eu me perdi nos olhos dele, e então aconteceu nosso primeiro beijo. Um beijo sereno, e cheio de paixão. Acabamos dormindo no tapete, estávamos exaustos. No outro dia, de manhã, acordamos mais quebrados do que no dia anterior, ele pagou um café da manhã numa padaria chique, me levou ao trabalho no carro esportivo dele, sem dizer uma palavra sobre o beijo. Quando foi de noite, que nos encontramos na universidade, ele me beijou outra vez, na frente de todo mundo. Eu fiquei morta de vergonha, mas por outro lado achei o máximo. Após as aulas ele declarou que estava apaixonado e não queria ser só meu amigo, queria mais, e pediu para eu namorar com ele. Nem preciso dizer que a resposta foi imediata, até aliança de compromisso nós usamos.
Daí pra frente, a nossa paixão só crescia, e quando fizemos amor pela primeira vez, eu nunca vou esquecer do cuidado e todo amor, me sentia a garota mais amada do mundo, foi minha primeira vez. No quarto ano, eu passei mais no apartamento dele, do que no meu dormitório, eu tinha colegas, e ele não podia dormir lá, então o jeito mais fácil foi ficar com ele. Gabriel era romântico, gentil, carinhoso de todas as formas, vivíamos num mundinho à parte.
Depois de seis meses, ele me chamou para morar com ele, eu praticamente já morava, mas ter um espaço no closet para minhas coisas, e finalmente sair do alojamento foi maravilhoso. Só que nem tudo que é bom dura para sempre, a mãe dele fez uma visita surpresa, e acabou com todo encanto da nossa vidinha perfeita.
Bianca
Depois daquele dia, foi uma enxurrada de ventos contrários, a família dele se levantou contra nosso relacionamento, e a minha, também não era muito á favor. Gabriel lutou contra a família dele com todas as forças, parecia que quanto mais as pessoas criticavam e tentava nos separar, mais unidos e apaixonados ficávamos. Eu amava aquele homem demais, chegava a doer no peito, e ele me venerava, era grande e avassalador o nosso amor. A gente era jovem, nos amávamos com ímpeto e vigor. E em meio essa veemência do nosso amor, veio a imaturidade, em meados do último ano do curso, descobri a gravidez. Eu fiquei fora de mim, chorei horrores, com medo, já tínhamos que lidar com a família, agora teríamos um bebê. Gabriel, me consolou, ele aceitou a gravidez com muito amor, e quando descobrimos que teríamos gêmeos, ele me pediu em casamento. O casamento foi algo simples, que contou com alguns membros da família dele, e apenas meus pais e irmãos. Da parte dele, eu tinha certeza que o pai dele não queria nada estrondoso, pois seu filho casar com uma nordestina qualquer, não fazia bem a sua imagem política. Estávamos remando contra a maré, mas ainda assim, nada nos impediu, nos amávamos e isso que importava.
Depois do casamento veio a colação de grau, o baile de formatura, e poucos meses depois, o nascimento dos gêmeos. Era tão inocente na época, pensava que ele ainda me amava como sempre havia sido. Com os bebês, o trabalho dobrou, Gabriel e eu estudavamos que nem loucos para o exame da OAB, e ele tinha que trabalhar na empresa do pai, enquanto eu tentava conciliar estudo com dois bebês, Miguel e Ariele. Não foi fácil, mas ambos conseguimos nosso número na Ordem dos Advogados do Brasil, agora só precisava começar minha jornada trabalhista. Ele quis que eu entrasse na empresa do pai, mas rejeitei na hora, não queria dever favor ao pai dele, queria dar meus próprios passos, e defender empresários ricos e corruptos, não faziam parte do que desejava para mim, não era apenas pelo dinheiro, eu queria fazer justiça. Ele ficou decepcionado, e acabamos nos afastando um pouco. Ele trabalhava demais, e eu era uma jovem mãe, frustrada. O tempo passou, tudo que havia conseguido foi trabalhar como gerente de banco. Não era meus planos, mas servia para meu currículo. Nessa fase, meus pais estavam mais receptivos, com os netos, tudo ficava mais fácil, mas a família dele continuava resistentes, e sempre que podiam, achavam algo para criticar, seja em mim, ou nas crianças. Sabia que eram consequências do amor jovem e obstinado, mas me peguei pensando várias vezes se valia a pena, eu e Gabriel parecíamos tão distantes. Quando os bebês fizeram seis meses, Gabriel mudou radicalmente, se tornou mais presente, ajudava com os bebês e voltou a ser aquele homem intenso e amoroso. Foram meses de puro amor, fui facilmente conquistada, já não me via longe dele. As crianças fizeram um aninho, e foi tão maravilhoso, éramos uma família feliz, cheia de amor. Mas tenho certeza que olhos do mal nos observavam, e não gostavam de ver nossa felicidade.
Três meses mais tarde, recebi um vídeo anônimo que mudou a minha vida. Naquele dia, todo castelo de princesa, toda magia que me envolvia com Gabriel, foi quebrada. No vídeo em questão, Gabriel estava fazendo sexö com uma das advogadas juniores da empresa do pai. Ele tinha seu próprio escritório, e segundo as datas, ele estava com aquela rapariga desde que estava com sete meses de gestação.
Com lágrimas nos olhos, e o coração partido em mil pedaços, eu ainda vejo na minha mente, as posições, as expressões do rosto dela, as coisas que ele fazia, quando achava que era exclusividade minha. Quão tola eu havia sido!
Naquele momento, se eu tivesse recebido a notícia que ele havia sido morto, não doeria tanto quanto foi vê-lo tocar outra mulher tão intimamente.
Estava arrasada, tudo passou pela minha cabeça, pensei em matá-lo, depois cogitei tirar minha própria vida, tal era a dor e raiva que sentia. Estava envergonhada, me sentia baixa, suja, mal amada, enganada, TRAÍDA!
Olhei para meus filhos, e foi aí que chorei mais, eles eram tudo de bom que me restava daquele casamento, e por eles, não valia a pena cometer assassinato ou suicídio, eu precisava ser forte, e dar um jeito de recomeçar.
Quando ele chegou, depois que os bebês dormiram, eu mostrei o vídeo, que assim que iniciou, fez ele arregalar os olhos e ficar assustado. Ele não quis continuar, mas eu o obriguei a ver até acabar. No fim, eu estava tão entorpecida de dor, que nenhuma lágrima saía mais, e ele não merecia nem minhas lágrimas. Mas ele chorou, disse que já havia terminado o caso, que se arrependia, que me amava, que faria de tudo para provar o amor dele e blá blá blá...
As palavras dele, já não significavam nada para mim, já tinha pedido para uma colega entrar com o divórcio, e nada faria eu mudar de idéia. Ele insistiu inúmeras vezes, chorava, chegou a implorar ajoelhado, mas foi tudo em vão, estava magoada demais, não ia dar certo perdoá-lo, estava com muita raiva, e nem era dele, mas de mim mesma, por ter acreditado em um conto de fada.
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