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Fragmentos Da Morte

Prólogo

  A escuridão da noite, assustadoramente confortável, por mais duradoura que seja, sempre acaba sendo modificada pela bela luz que a grande Lua emana. Dentro da imensa floresta Mávros a situação não se difere. Todas as noites, após o Sol se por no horizonte, o ambiente abaixo das grandes copas das árvores se torna sinistro, mas, belo, com vários filetes de luz branca que escapam por entre as folhas. Inesperadamente, essa noite possuía mais algumas características únicas.

  Um jovem, que não possuía aparência comum, com uma grande cicatriz no rosto, e cabelos sujos pela poeira de carvões, corria por entre as árvores e plantas do interior da floresta, com um grande brilho desesperado em seus olhos. Seus pés descalços, latejavam mais forte a cada passo dado, e, por mais que não parasse para conferir, ele sentia que um rastro de sangue ficava em suas pegadas. Assim, como seus pés se feriam em pedras e raízes, seus braços e peito expostos, possuíam várias linhas vermelhas das quais escorriam um líquido vermelho rubro.

  Sua mente não discernia os vários barulhos vindos de dentro da floresta ao seu redor, pois seus passos pareciam preencher todo o espaço entorno dele. Mas, infelizmente, um som pesado que o acompanhava era fácil de se perceber. O garoto estava sendo perseguido por algo que jamais vira.

  Os grandiosos deuses, que tanto glorificava em sua infância, pareciam ter lhe abandonado naquela situação desesperadora. "Por favor, me ajudem!". Seus pensamentos se repetiam, como as curvas de um infinito labirinto, e, em sua cabeça, algumas cenas de sua vida começaram a surgir. Ele estava se recordando de quando corria entre as árvores ao redor de sua casa, que ficava no limite da cidade, um pouco antes da entrada da floresta.

  Naquela época, ele possuía pouco tempo de vida, apenas algumas primaveras, e ele corria com seus irmãos, estampando um sorriso ingênuo em seu rosto. Sua mente desejou retornar para aquela época. Sua mente desejou poder correr feliz e tranquilo mais uma vez, ao invés de brincar de pega com a morte.

  "Por que isso está acontecendo?". Sua memória feliz foi sobrepujada por um cenário oposto. Ele se viu amarrado em um tronco, ao centro da pequena cidade, cercada por todas aquelas pessoas que um dia considerou como família, mas que, infelizmente, agora lançavam-lhe, ofensas e injúrias, acompanhadas de pedras pequenas que feriam sua carne, deixando hematomas e cortes por todo seu corpo.

  Pouco antes de alcançar sua maioridade, ele fora acusado de causar um pequeno massacre, o qual fizera em busca de um objetivo egoísta e pessoal. Não haviam razões para ele ser acusado, já que sua família também foi assassinada naquele dia fatídico, mas, uma infelicidade lhe aconteceu. Uma tatuagem. Uma marca colocada pelos deuses em seu corpo, definiu que ele era o assassino, apesar de que suas memórias só mostravam a inocência de um garoto.

  As pessoas, entristecidas e enraivecidas, o espancaram, mas, por intermédio do representante da cidade, não o mataram, apesar de desejarem. Aquele homem não havia os interrompido por pena do garoto, mas, apenas para a sua própria satisfação, já que a sua filha única havia sido morta também.

  Um sentimento de desespero se cravou na alma do garoto naquele dia, no momento em que viu o olhar daquele homem. O representante era sempre bondoso e alegre, e possuía o sorriso mais belo da cidade. Mas, quando ele olhou para o garoto no chão, seus olhos brilhavam com a cor do ódio, e sua face representava o imenso nojo que ele sentia.

  Para que o garoto pudesse viver mais um pouco, sofrendo a pena por suas ações, foi proposto que o tornassem o sacrifício daquela estação. Normalmente, aquilo era feito com animais criados exclusivamente para o ritual de passagem das estações, mas, não haviam leis que proibiam o uso de uma pessoa. Muito pelo contrário. O ritual era originalmente feito com pessoas, exclusivamente, prisioneiros em tempos de guerra.

  Algumas pessoas quiseram negar aquela possibilidade, mas, após um curto e intimidante discurso, o representante convenceu a todos que não havia uma maneira melhor de fazê-lo sofrer o que era necessário.

  "Eu juro que eu não fiz nada, então por quê? Por que tinha de ser eu?"

  O garoto agora se encontrava dentro da floresta, após ser solto ali dentro para ser devorado por algum tipo de criatura, durante a última noite do inverno.

  Estava frio abaixo das árvores, mas, o garoto escorria suor sem parar, e sua respiração estava bastante ofegante. Apenas os deuses sabiam o quanto ele estava correndo naquele ponto. Já faziam horas que ele estava naquele ritmo, apesar de seu corpo não aguentar mais um passo.

  O esgotamento então surgiu, e, após um passo em falso, ele caiu rolando no chão, batendo de costas em uma grande rocha, com o pé enganchado em uma raiz. Sua cabeça doía, e seu folego estava quase no fim, o deixando com um pouco de dificuldade para se levantar. Sua visão, apesar de turva, estava acostumada com o breu da noite, então, enxergar os movimentos das plantas ao seu redor era bem fácil.

  _ Por favor...

  Sua voz rouca, mal podia ser escutada por si mesmo. O desespero em sua mente, continuou aumentando à medida em que aqueles movimentos se intensificavam, ao mesmo tempo que se aproximavam dele cada vez mais. Um grito seco começou a se formar na garganta do garoto, se tornando algo insuportável de segurar após alguns segundos. Os movimentos na mata já estavam bem próximos dele, quando o som de sua voz finalmente saiu, esgotando o seu último fôlego controlado.

  _ POR FAVOR, ME DEIXA EM PAZ!

  Após o grito moldado por desespero, a respiração dele se tornou quase incontrolável, e ele teve de se esforçar por alguns segundos, para voltar a respirar normalmente. Sua mente parecia mais clara quando seu coração se acalmou e sua batidas normalizaram. O desespero alucinante ainda estava vivo em sua mente, mas, um alívio repentino começou a se espalhar por seus pensamentos, quando ele se viu novamente em meio a floresta, que, felizmente, agora estava apenas quieta e escura, como deveria.

  O garoto se viu apoiado em uma pedra imensa, enquanto se esforçava para soltar o seu pé da raiz que provocou a sua queda. Uma luz clara iluminava tudo ao seu redor, criando algumas sombras entre algumas arvores e outras.

  Quando finalmente conseguiu soltar a raiz de seu pé, o garoto se levantou apoiando uma de suas mãos na rocha atrás de si, e sentiu uma sensação nostálgica ao ver a paisagem ao seu redor. Ele estava no centro de uma pequena clareira, que formava um semicírculo em volta da rocha na qual batera. Ao se virar, ele percebeu que atrás de si, também havia uma árvore grande, mas, não o suficiente para alcançar o topo da floresta. Ela possuía galhos longos e fortes, que se ramificavam de um tronco não muito grande, mas, grosso e rígido. Surgindo de alguns galhos menores, cercadas por folhas verdes vívidas, ele conseguia ver algumas frutas pequenas e com um formato levemente arredondado.

  _ É um pouco irônico, sabia?

  Uma voz grossa e amplificada, ecoou por aquela pequena clareira, o que fez com que o garoto se assustasse, virando abruptamente, procurando o dono daquela voz. Naquele movimento assustado, ele não foi capaz de enxergar ninguém ao seu redor, mas, uma coisa prendeu a sua atenção.

  Em meio as várias sombras que se formavam a partir da luz da lua, dezenas de pequenos brilhos o encaravam fixamente. Ele conseguiu distinguir aqueles brilhos, como vários pares de olhos, pertencentes a dezenas de kouks que o observavam em meio a profunda escuridão da noite.

  (Kouks: corujas)

  _ Animais malditos, vocês não sabem fazer outra coisa além de assustar as pessoas?

  Um longo pio surgiu de um ponto mais a sua frente, e ecoando pela floresta, pareceu responder à pergunta do garoto. Ignorando aquela resposta sinistra, ele se virou, e tornou a observar aquele árvore, com curiosidade e nostalgia no olhar. O garoto reconhecia aquele lugar, mas, não conseguia se lembrar de onde. Parecia um lugar que tinha visitado em sonhos perdidos em sua memória.

  _ Por favor, trate as nossas amigas com um mais de respeito, você não se lembra delas, mas, felizmente, elas ainda se lembram de você. Ou melhor, do seu cheiro.

  Aquela voz surgiu novamente, acompanhada de alguns pios de kouks, e, dessa vez, o garoto encontrou o dono dela. Ou o que parecia ser o dono.

  Em meio aquelas kouks empoleiradas em diversos galhos, uma sombra especifica se destacava dentro da própria sombra da floresta. Aquela figura possuía uma forma humanoide, mas, era impossível distinguir sua aparência da escuridão ao seu redor. Ela era formada apenas por breu, e nem sequer a luz da lua era capaz de iluminar seus traços.

  _ E quem seria você? – o garoto se esforçou para que a sua voz soasse firme, e forçou seu corpo a manter uma postura corajosa, mas, um sentimento aterrador incitava uma ideia em sua mente. Aquele breu que o observava de volta, também estava o perseguindo esse tempo todo.

  _ Eu sou seu amigo. Ou melhor, seu aliado. Também posso ser considerado seu salvador. Mas, infelizmente, você ainda não possui lembranças sobre isso!

  Algumas kouks piavam enquanto aquela voz se manifestava, acompanhando cada palavra com uma sonoridade diferente.

  _ Me desculpe, mas, acho que nós não nos conhecemos! – a voz dele saiu trêmula, mas, ele estava se esforçando para manter a postura.

  _ Creio eu, que isso seja algo até compreensível. Já fazem algumas estações desde a última vez que nos vimos.

  Naquela figura, que antes apenas se via o breu, surgiram dois brilhos avermelhados no local que seriam os olhos. Aqueles olhos sinistros começaram a o encarar, e, mesmo a distância, era possível notar a firmeza e penetração daquele olhar.

  _ Também creio que nunca o vi antes.

  O garoto estava tateando a superfície atrás de si, buscando por um apoio melhor, para que pudesse se preparar para fugir novamente. Sua mão encontrou algumas saliências na rocha, e ali ele segurou firme. Infelizmente, ele não era o único que estava prestes a se mover.

  Durante o curto espaço de tempo gasto em um piscar de olhos, aquela sombra se moveu de onde estava, parando em frente ao garoto. Agora que aquele ser estava bem perto dele, era possível notar a diferença de altura entre os dois. O garoto, mesmo possuindo uma altura mediana, não chegava nem perto dos dois metros e meio que aquela sombra ostentava sobre ele. Aqueles olhos vermelhos vidraram no garoto, e era como se a própria morte estivesse o observando.

  Aquela sombra se aproximou ainda mais, e, o que deveria ser o seu rosto, encarou o garoto bem perto, quase o tocando. A leve brisa causada pela respiração daquele ser, provocava arrepios ao tocar a pele do garoto, pois não existia calor naquele toque de ar. Apenas o frio o acariciava.

  _ Essa casca nunca me conheceu, mas, nós dois sabemos que o seu eu verdadeiro, me reconhece independente de minha aparência.

  Apesar de sua voz soar forte e evidente, era impossível discernir uma boca se movendo em meio a toda aquela escuridão. Mas, uma boca definitivamente existia naquele breu, já que a cada palavra dita, um hálito frio e seco era sentido pelo garoto em seu rosto.

  _ Casca?

  O garoto se sentiu pressionado, e, por um mísero segundo, suas pernas vacilaram, fazendo com que ele fosse ao chão novamente.

  _ É aterrador saber que a pior situação aconteceu, mais uma vez. Você ainda não possui lembranças sobre si mesmo, Thanatos?

  _ Thanatos? Me desculpe, mas, infelizmente, eu não sou um deus, e nem sequer nasci abençoado por um!

  _ Até um certo, isso é uma grande verdade, mas, felizmente, nem tudo é igual ao que parece!

  O garoto estava sentado encarando aquele ser acima de si, com um desespero forte em seu olhar. Ele estava cheio de pensamentos negativos, onde a maioria mostrava a sua morte diante da luz da lua. Mas, novamente, uma surpresa mudou um pouco sua mente.

  O braço direito daquela sombra se tornou visível, e, para a felicidade do garoto, um braço humano surgiu, se estendendo para ele, como se quisesse ajudá-lo a se levantar. Pacientemente, a sombra ficou esperando que o garoto pegasse a sua mão.

  _ Pensei que você queria me matar!

  _ Acho que nós começamos com o pé esquerdo. Creio eu que você se precipitou sobre as minhas reais intenções!

  _ Então... Você não vai me matar?

  _ Eu prefiro resolver esse assunto de uma forma mais pacífica.

  O garoto parecia indeciso, e sua mente começou a se dividir sobre o que era o certo para se fazer naquele momento. Suas emoções entraram em conflito dentro de si, e nenhuma solução racional surgiu daquela briga interna. Por fim, ele agarrou aquela mão paciente à sua frente, se entregando ao destino do qual não poderia escapar.

  O braço o ergueu facilmente, colocando-o de pé novamente, e até servindo de apoio quando ele quase mais uma vez.

  _ Bem... como posso ajudar?

  _ Seria interessante se você fosse capaz de me explicar que árvore é essa.

  O braço apontou para a grande árvore que crescia atrás da rocha.

  _ Ela me parece familiar, mas, infelizmente, eu não sei o nome dela!

  _ Você já escutou alguma vez sobre a Macieira da Areia? Ou talvez a conheça por seu apelido único, a árvore da Morte!

  _ Na minha cidade, existiam alguns livros que contavam sobre essa árvore, mas eu nunca tinha visto nenhuma pintura dela.

  _ Ela é bela, não é?

  _ Magnífica. Seus galhos refletindo a luz da lua, parecem ter saído do interior de um belo sonho.

  _ É irônico, pois mesmo sem suas memórias, você sempre recita as mesmas palavras diante dessa visão!

  _ Sempre?

  _ Quando eu disse que já nos conhecíamos, me referi a suas vidas passadas. É um pouco forçado esperar que você se lembre, mas, nós sempre nos encontramos neste mesmo lugar, em seu último dia vivo.

  _ Mas, você não disse que não me mataria?

  _ Novamente, você me interpretou mal. Eu não quero te matar, mas, me vejo obrigado a fazer isso, já que você não se lembra nem de uma de suas criações favoritas, Thanatos.

  O garoto não parecia tão desesperado quanto antes, mas, seu olhos ainda possuíam o brilho do medo. Ele já estava aceitando aquela ideia terrível que sua mente vinha lhe mostrando. Seus sentidos pareciam desaparecer um pouco a cada segundo, e, aos poucos, a floresta foi se tornando mais escura do que estava.

  Ainda existia um pouco de esperança em sua mente, o que enrijeceu seu corpo, quase que o preparando para um último movimento.

  _ E não existe nenhuma outra saída?

  _ Você se lembra de mim, Thanatos?

  _ É claro que me lembro, eu nunca me esqueceria de você! Eu estava apenas brincando!

  _ Então, qual é o meu verdadeiro nome?

  O garoto estremeceu. Ele já sabia que seu blefe não o levaria a lugar algum, mas, a voz da sombra soou tão fria, que ele não pôde conter o seu medo. Em um movimento desesperado, ele saiu correndo na direção oposta em que estavam, se afastando cada vez mais daquela árvore, e da sombra que estava abaixo dela.

  Ele correu por alguns metros, mas, foi derrubado novamente, quando um calor repentino atravessou a sua coxa esquerda, o fazendo gritar e se contorcer de dor e agonia. Uma flecha construída com madeira negra e uma ponta de aço vermelho, fora atirada em sua perna, e, ainda em atravessada em sua carne, criou um buraco do qual escorria bastante sangue, de forma descontrolada.

  Se passaram alguns segundos, e o garoto foi erguido pelo pescoço, sendo mantido erguido no ar por aquela mão humana.

  _ Por quê? Por que você sempre insistir em agir de maneira idiota? Não era evidente que você não conseguiria fugir de mim? Então, por quê?

  A sombra parecia irritada e desapontada. Mais uma vez, ela aproximou seu rosto do garoto, e encarou seus olhos, como se enxergasse seus pensamentos.

  _ Infelizmente, eu sou humano. Nós costumamos fazer muita coisa idiota!

  O garoto estava se debatendo um pouco, tentando se soltar daquela mão, mas, ele se sentia fraco demais para lutar. Ele já havia perdido bastante sangue, o suficiente para que uma pequena poça se formasse no chão abaixo dele.

  _ Eu não queria, Thanatos, mas, não existe outra saída. Enquanto você não voltar a ser quem era, eu não poderei descansar verdadeiramente.

  _ Me desculpe, mas, infelizmente, não vai ser nesta vida que você vai descansar!

  Enquanto se debatia, o garoto agarrou a flecha em sua perna e a puxou, rasgando a sua carne mais um pouco. A dor era alucinante, mas, ele lutou para não desmaiar. Com a flecha em sua mão, ele encarou aqueles olhos vermelhos com muita raiva, e cravou a ponta afiada no olho esquerdo.

  _ Por quê? Você não consegue entender que isso é inútil?

  A flecha perfurou aquele olho vermelho com facilidade, e, no mesmo instante, um liquido vermelho rubro começou a escorrer pelo corpo da flecha. Infelizmente, aquela mão não o soltou. Pelo contrário, ela começou a apertar o pescoço do garoto com mais força, limitando o ar que chegava ao seu pulmão.

  _ Isso tudo é inútil! Você só está prolongando o seu próprio sofrimento.

  O rosto do garoto começou a ganhar uma tonalidade roxa, e, seus olhos, se tornaram cada vez mais vermelhos, devido à falta de ar em seus pulmões. Sua visão já estava parcialmente embaçada, e seu corpo começou a perder o movimento.

  O garoto teve direito a uma última visão antes de seu ultimo suspiro. Da escuridão que formava aquele ser, o braço esquerdo surgiu, mas, este era mais monstruoso e se assemelhava bastante com o braço de um arkou adulto.

  (Arkou: urso)

  Na mão daquele braço monstruoso, um grande machado também surgiu, moldado em madeira negra e aço vermelho. Como se o corpo daquela sombra tivesse aumentado, a escuridão se espalhou ao redor dela, e escondeu o machado mais uma vez, que se ergueu atrás da sombra. O garoto apenas conseguia ver a base do cabo negro do machado.

  Aqueles olhos vermelhos encararam-no uma última vez, observando o brilho desesperado de seus olhos, antes do instante de sua morte. Alguns segundos se passaram, e, no momento em que o pio de uma kouk ecoou pela floresta, a mão largou o garoto no chão, que teve um último segundo para observar a grande lua no céu, que o iluminava e abraçava naquele momento final.

  O machado ressurgiu mais uma vez, e, em um movimento rápido, decepou a cabeça do garoto sem nenhuma dificuldade. Antes que aquela lâmina afiada trouxesse a sua morte e levasse seu último suspiro embora, o garoto conseguiu ouvir a sombra dizendo algumas palavras de despedida.

  _ Adeus, Thanatos. Não foi nesta vida, e talvez não seja na próxima, mas, nós nos reencontraremos.

...Ó,ti zei proérchetai apó káti pou péthane!...

^^^(Tudo aquilo que vive, vem de algo que morreu!)^^^

Primeiro dia, de muitos...

_ Diaz... Diaz... ACORDA, SEU PREGUIÇOSO!! – Nick, irritado pelo sono profundo do homem e por causa de tentativas falhas de despertá-lo normalmente, acordou o colega de quarto com um tapa no rosto, assim como sempre acabava fazendo todas as manhãs.

_ Por que você sempre me acorda assim, Nikolas? – enquanto se sentava, jogando os cobertores para o lado, ele massageou sua bochecha direita, que agora estava vermelha.

_ Porque você dorme demais! – apesar de falar alto, seus olhos castanhos o entregavam com um brilho de diversão.

_ Mas precisa ser um tapa mesmo? Não tem outro jeito?

_ Você gosta de banho frio? – usando o polegar da mão direita, ele apontou para um copo vazio, que estava em cima de uma das mesas do quarto, logo atrás dele.

_ A gente mora em frente ao mar, então uma ameaça dessas nem assusta! – apesar de está convicto sobre sua coragem, o que ele disse não passou de um simples blefe, já que se desculpou rapidamente, quando Nick se virou para pegar a jarra de água que estava ao lado do copo.

_ E a sua mão? Como está agora? Ainda dói?

_ Queria dizer que está melhor, mas durante a noite incomoda bastante! – ignorando sua bochecha que agora apenas ardia, ele abaixou sua mão direita, e deslizou o dedo indicador levemente, por cima das faixas de pano velho que cobriam um ferimento no lugar onde uma faca atravessara a palma da outra mão, algumas semanas antes.

_ Os remédios não ajudam? -Nick se mostrava bastante preocupado.

_ Um pouco, mas é por pouco tempo!

_ Bem... queria ajudar de alguma forma, mas estamos sem tempo. – com cuidado, ele jogou para Diaz, uma calça de couro gasta que possuía alguns furos abaixo do joelho e uma camisa de pele simples e azulada com manchas vermelhas. – Se veste rápido e vamos logo para o cais, porque ainda temos que ganhar o almoço!

Nick já estava saindo, dando privacidade para Diaz, quando este o chamou, interrompendo seu movimento.

_ Faz quanto tempo desde que saímos do orfanato, Nikolas?

_ Mais ou menos, dois anos. – ele respondeu sem se virar.

_ Nesse tempo a gente passou por tanta coisa juntos, né? – um sorriso decorou seu rosto bronzeado.

_ Mesmo quando não tínhamos o que comer...

_ Mesmo quando estávamos doentes...

_ A gente continuou cuidando um do outro...

_ Como uma verdadeira família!

_ Diaz... Obrigado por me aturar esse tempo todo! – mesmo estando de costas, ele sabia que o outro também sorria e fez de tudo para disfarçar as pequenas lágrimas que surgiam.

_ Nós ainda vamos nos aturar por muito tempo!

_ Que os Deuses ouçam as suas preces! – ele encostou as palmas das mãos uma na outra em frente ao rosto, como se fizesse uma reza, sabendo que Diaz o acompanharia, e após alguns segundos, ele enxugou a última lágrima do rosto. – Agora se apressa aí! Ou eu vou acabar chorando de verdade!

Assim que a porta fechou, Diaz se levantou quase pulando da cama, ficando em pé com a camisa em umas das mãos. No quarto que ele dividia com Nikolas todos os dias, haviam duas camas simples com cobertores de couro escuro, e aos pés de cada, um criado de madeira vermelha servia de apoio para um pedaço de espelho e uma bacia de barro, que eles enchiam de água e usavam para a higiene do rosto e boca pelas manhãs.

Diante do espelho de sua cama, Diaz jogou água fria em seu rosto para afugentar o sono que ainda restava em seus olhos. “Faz quantos dias que não faço a barba?”, ele pensou enquanto olhava a pequena lâmina prata que servia de navalha, mas decidiu deixá-la para outro momento.

Por sempre dormir sem camisa, ele podia ver os hematomas e cicatrizes que possuía no abdômen e peito, resultados de brigas e alguns acidentes no porto. A camisa escondia facilmente esses aspectos de seu corpo, evitando perguntas irritantes. Por mais que estivesse bastante em forma, Diaz sentia que a camisa ficava apertada em seus ombros e sempre reclamava sobre isso para Nick, que apenas dizia para levá-la nas módes que atendiam mais ao centro de Típhia, mas ele nunca ia até lá, principalmente por preguiça.

( Em Típhia, módes são pessoas especializadas em costura e artesanato )

O reflexo do espelho também mostrava os cachos negros e bagunçados dele que iam até o pé da orelha e que sempre se embolavam durante a noite, o que era irritante de arrumar no outro dia, principalmente com o pente de madeira quase sem dentes. “ Será que deixo assim hoje?”, ele quase manteve o penteado bagunçado, mas ao passar os dentes por entre os fios e ter dificuldade para tirá-lo, decidiu os pentear, o que acabou fazendo com muito esforço.

Ao vestir a calça, teve a mesma sensação que tinha todas as manhãs de que alguém vestiu um choi (porco) com elas, já que o couro possuía uma folga enorme entre suas pernas. Por fim, ele amarrou uma par de sandálias desgastadas de tanto ser usada em seus pés e saiu pela porta, encontrando Nick, sentado em uma cadeira de ferro, o esperando com um caneco de madeira em uma das mãos.

_ Kaire, Diaz! – ao mexer a cabeça para observar Diaz, os cabelos castanhos que agora estavam amarrados em um pequeno coque, balançavam acompanhando o leve o movimento.

(Kaire: cumprimento usado normalmente entre pessoas próximas, ou que possuam respeito uma pela outra.)

_ Kaire, Nick. Parece que o dia vai render hoje. - no cômodo que servia como cozinha e sala, haviam algumas pequenas janelas, de onde era possível observar as ondas do oceano que batiam contra alguns pequenos barcos, como se estivessem em uma longa e lenta dança.

_ Você diz isso por quê?

_ O sol! – no horizonte azul, marcando o limite do que podia ser visto das águas, o brilho da majestosa estrela podia ser visto atrás de algumas nuvens, marcando o início de uma manhã calorosa.

_ Você ama o sol, não é? – Nick acabara de esvaziar um copo de chá doce, e enquanto se levantava, matou o último pedaço de pzari (peixe) que havia sido preparado na fritura. – Espero que ele também goste de você! Já está na hora, vamos!

_ Vamos! – enquanto se despedia da vista de sua janela, Diaz jogou um pedaço de pão dentro da boca, e saiu junto de Nick, em direção ao porto Sunny.

Ao sul do grande reino de Drum, uma enorme floresta cercava todo o litoral banhado pelo mar Warm e a partir de uma pequena clareira em meio as árvores, a cidade litorânea Típhia foi fundada, após décadas de aventuras que resultavam na maior parte em mortes violentas.

Em Típhia, três grandes portos regem a maior parte da economia local: Sunny, Moon e Eclipse. O primeiro e também o maior, Sunny, localiza-se no extremo sul da cidade, aonde várias mercadorias de valores exorbitantes são descarregadas diariamente; Moon, o segundo maior, localizado mais ao oeste da cidade, possuindo uma estrutura mais elegante, recebe pessoas de títulos importantes toda semana, indo de reis até burgueses ricos; e Eclipse, o menor mas não menos importante, possui uma infraestrutura capaz de suportar cinco dezenas de barcos de pesca, e por está ao leste, aonde as águas são mais profundas, é o principal fornecedor de recursos marinhos.

Nos grandes cais de Sunny, que se estendiam por mais de quilômetros de distância, várias barracas eram montadas todo dia, que serviam de tudo um pouco, indo de pequenos bares até mercadinhos baratos. Nick e Dias trabalhavam como Thyos (peixeiros, sendo quase um açougueiro) em uma barraca que conseguiram alguns meses atrás, e suas principais vendas eram de cabeças de lykopzari (bagre) pescados no porto ao leste.

_ Kaire, Brena! O mesmo de sempre? – sorrindo, Nick atendia uma garota de cabelos negros e longos e de pele clara, que sorria ingenuamente, deixando claro que mal havia contado oito estrelas no céu.

_ Sim, Tio Niko! – ela segurava uma bolsinha de couro em uma das mãos, que ao balançar, faziam tinir algumas moedas de bronze, que mal pagavam um pzari inteiro – Você comprou uma roupa nova, Tio Niko?

_ Não, senhorita, é a mesma de sempre, eu apenas lavei ela melhor dessa vez! – Nick usava a mesma roupa de Diaz mas só que um pouco mais nova, e apesar de não ser muito engraçada, sua piada arrancou um sorriso torto da boca da criança – E você, Brena, cortou o cabelo?

_ A mamãe cortou ontem, você gostou? – após colocar a bolsa na bancada de madeira, ela afastou as mechas da franja que tapavam seus olhos, mostrando a tinta que havia por cima deles – E a Tia Yuu coloriu meus olhos! Ela disse que eu fiquei igual a uma flor!

_ Ficou muito lindo, parece até uma princesa arco íris! – a menina sorriu com mais vontade ao ouvir os elogios de Nick – Pronto, esse daqui é o seu, três pzaris frescos!

_ Obrigado, Tio Niko! – ela pegou a sacola com os pzaris da mão de Nick, e saiu correndo em direção de uma mulher, que possuía a pele um pouco mais escura que a da garota, e um cabelo castanho amarrado em forma de coque - Tia Yuu, o Tio Niko disse que eu estou parecendo um arco íris!

Enquanto as duas iam embora, conversando e rindo, Diaz observava Nick conversando amigavelmente com as pessoas que andavam pelo cais de madeira, muitas das quais apenas olhavam a barraca, mas não compravam nada.

_ Você faz isso pra ela desde quando? – Nick havia acabado de vender um pote de algas secas, e acabou sendo surpreendido pela pergunta de Diaz.

_ O que exatamente?

_ Eu digo para a garota arco íris, a Brena!

_ Ah, entendi! – ele sorriu, lembrando da conversa com a garota – Sim, sempre que ela vem aqui, a bolsinha dela não possui nada além de cinco moedas de bronze, que mal pagam uma alga seca!

_ Então, por que você dá ela três pzaris? Não me diga que você... – Diaz olhava de forma desconfiada, e felizmente, Nick não o deixou terminar a frase.

_ Não é nada tão ridículo, Diaz! A mãe dela está doente tem algum tempo, e o seu pai mal ganha cinco moedas de prata por dia, então pra ajudar, eu digo que as duas moedinhas da bolsa dela valem muito!

_ Mas a gente consegue menos que o pai dela!

_ Fica tranquilo! Apesar de eu ter feito isso sem avisar ninguém, o pai dela acabou descobrindo, e com medo de ficar com alguma dívida para comigo, ele me paga o restante no final de semana sem que a filha saiba.

_ Mas e aquela mulher que parecia cuidar da menina?

_ Não vou mentir que eu não a conheço de lugar algum! – Nick tentava se esforçar para lembrar do rosto da mulher, mas apenas a voz da criança dizendo Tia Yuu passava pela sua cabeça – Mas, pelo que eu sei, a família dela recebe ajuda de outras pessoas, então aquela mulher deve ser uma dessas.

_ Bem, faz sentido! – terminando sua frase, o som da enorme e afiada faca batendo sobre a tábua de madeira, decepando mais um pzari, assustou alguns peris (pombos), que comiam migalhas entre as madeiras do cais.

Por entre a multidão de pessoas que circulava em Sunny, alguns se destacavam entre marinheiros e turistas na grande passarela de carvalho marrom. Com suas camisas de mangas longas e negras detalhadas com finas linhas brancas atravessando de um lado a outro no tecido, vários guardas chamavam atenção para si mesmos, com suas lanças e revólveres ameaçadores. Os guardas de Típhia eram considerados os mais capacitados em todo o reino, e por isso, respeitados dentro e fora da cidade por qualquer um que seguisse a lei do papel. Dentre esses guardas, alguns conquistaram feitos dignos de nobres honrarias ou alcançaram um nível de força fora do comum, tendo assim recebido o título de asters acompanhado de um uniforme branco com adornos em formatos de curvas e prateados, feitos para lembrar o brilho de uma estrela. Não se sabe ao certo se foi uma piada no passado ou algum acontecimento que originou o título mas, ao ser nomeado como aster, a pessoa passa a ser chamada pelo nome de umas das infinitas estrelas que enfeitam o céu noturno e a imensidão do universo.

_ Deve ser legal, não é Diaz? – o olhar de Nick seguia um guarda, que possuía o colarinho da camisa dourado, mostrando que ele possuía uma patente mais alta.

_ O que exatamente? – sem se importar muito com o assunto da conversa, Diaz continuou preparando um molho picante, que era vendido pelo dobro do preço que os pzaris.

_ O brilho que eles trazem!

_ Como assim? – ele encarou Nick, que agora sorria para as pessoas que passavam em frente a tenda.

_ Graças aquelas pessoas, as que portam armas, nós podemos viver livres! – Nick sonhava em ser um guarda desde que ambos era crianças, e ele sempre dizia que iria fazer de tudo para se tornar um.

_ Existe vantagem em ser “livre” e morrer de fome?– a lâmina em sua mão, agora descia com mais força sobre a tábua.

_ Já tem muito tempo que nós não passamos fome!

_ Mas e eles? – com a ponta da faca, ele apontou para um grupo de pessoas, que dormiam sobre caixotes sujos, vestindo farrapos velhos. – Enquanto aqueles que possuem ouro no pescoço jogam o “lixo” fora, nós que vestimos couro, usamos esse “lixo” todo dia!

_ Você tem uma ideia muito geral das coisas! Nem tudo é assim, Diaz! – o sorriso que estava em seu rosto sumiu, conforme sua voz se tornou cada vez mais séria. – Existem sim, pessoas que desfrutam de um luxo desnecessário, é verdade, mas também existem os que passaram anos de suas vidas acumulando ouro pra descansar por um tempo, então, me diga Diaz, você acha que essas pessoas nunca estiveram em nosso lugar?!

Diaz não disse nenhuma palavra, talvez não tivesse ideia de como prosseguir, mas o silêncio que surgiu entre eles, se tornou muito desconfortável.

Por mais que ambos estivessem calados, o mundo não fazia o mesmo, tanto que o som de vidro quebrando chamou a atenção deles, para a barraca ao lado, aonde um homem baixo e gordo, espancava um garoto de olhos negros iguais aos seus cabelos, que não parecia ter contado nem dezoito estrelas após seu nascimento.

_ Seu merda! Eu disse que se eu te visse novamente, nem os deuses te salvariam!

_ O que tá acontecendo? – Diaz pretendia se aproximar, com a intenção de apaziguar a confusão, mas Nick o deteve, segurando a gola de sua camisa.

_ O de sempre, Diaz! – apesar de parecer sério, sua voz soava um pouco triste – Só mais algum garoto que está com fome.

_ Mas...

_ Você sabe o que vai acontecer se a gente se envolver, certo? Para o bem ou para o mal, se nossos nomes forem ditos, a gente perde a tenda.

_ Eu já entendi. – ele se virou, se esforçando para ignorar aquela situação, e voltou a cortar alguns pzaris.

Mesmo que ninguém movesse um dedo para ajudar, uma pequena multidão se formou ao redor da confusão. O garoto que estava quase desmaiando devido aos golpes que levou na cabeça, já nem se esforçava para se defender, e em meio ao sangue que se espalhava em seu rosto, lágrimas pareciam brotar de seus olhos inchados.

Felizmente, a confusão se acalmou e o homem levantou de cima do garoto, quando o som de uma explosão, vindo de um revólver, assustou a todos na multidão, que voltaram a atenção para um aster que tinha acabado de chegar no cais, acompanhado de dois guardas armados de lanças afiadas de quase dois metros de altura.

_ Bom, agora que tenho a atenção de vocês, eu só tenho uma pergunta, o que está acontecendo aqui? – o aster aumentou um pouco a sua voz para que todos pudessem ouvir, e som de suas palavras parecia cortar o ar poluído do local.

A multidão que antes se aglomerava no local, começou a se dissipar sem que ninguém ousasse responder o aster.

_ Vejamos, acho que vou ter que ser mais direto. – em sua mão direita, um pequeno revólver prata, marcado com o símbolo de Típhia na extremidade do cano, uma esfera negra com algumas sombras brilhantes em volta, foi erguido para cima e ao fim de sua frase, disparou duas vezes, provocando um barulho ensurdecedor – Eu quero saber que merda aconteceu aqui sem a minha permissão!

Várias pessoas correram para longe, fugindo da visão do aster e as poucas que restaram, abriram caminho para que chegasse na tenda onde a confusão começou.

_ Ainda bem que você chegou! – o homem que espancava o garoto, se aproximou do aster e ainda com sangue nas mãos, implorou que fosse ouvido – Aquele ladrãozinho andou me roubando nas últimas semanas, mas dessa vez eu o peguei!

Ignorando o vermelho ferrugem que escorria entre os dedos do homem, o aster passou por ele sem olhá-lo e se dirigiu ao garoto, que entre longas e pesadas respiradas, tossia um pouco de sangue.

_ Garoto, você ainda consegue me ouvir? – ele se abaixou para alcançar o garoto e limpou um pouco do líquido nos olhos do garoto com a mão nua – Se sim, você acha que consegue me dizer o que aconteceu?

_ Senhor! – o homem o interrompeu e manteve suas mãos escondidas atrás do corpo – Como eu ia dizendo, ele roubou algumas de minhas mercadorias alguns dias atrás e...

_ Você tem certeza que foi ele? – o aster nem se deu ao trabalho de virar o rosto.

_ Sim!

_ Você prestou queixa? – o aster parecia se irritar com alguma coisa.

_ Não! – a voz do homem ao responder, acabou soando um pouco nervosa e trêmula.

_ Por quê? – por mais que fosse uma palavra, a fala do aster fez o homem se tremer.

_ Eu... eu não sei...

_ Para mim, isso significa apenas umas coisa! – ele se levantou mas se manteve de costas para o homem – Você não deu queixa porque não sabia quem o roubava, e agora está descontando nesse garoto, certo?

O homem se manteve calado, e enquanto apertava suas mãos atrás das costas, ficou olhando para o chão, irritado e envergonhado.

_ Eu te fiz uma pergunta! – o aster se virou, irritado com o silêncio do homem, e sem aviso, puxou o revolver do coldre em sua cintura com a mão direita, e apontou para o rosto dele – RESPONDA!

_ Sim...

_ EU NÃO OUVI DIREITO! – o click que o gatilho fez ao ser levemente pressionado, assustou mais ainda o homem que simplesmente gritou, com desespero em sua voz.

_ SIM... FOI ISSO MESMO...

_ Me diga... me diga o por quê? – com um leve movimento para frente, ele encostou a boca da arma na testa do homem, que se arrepiou ao sentir o aço gelado em sua pele.

_ Eu não sei... eu só estava irritado e precisava descontar em alguém, aí eu acabei perdendo o controle quando aquele garoto tentou me roubar mais cedo, me perdoe! – em meio as palavras assustadas, lágrimas começaram a surgir no olho do homem que tentava se manter firme – Agora, por favor, tira isso de mim!

_ Tudo bem!

Quando o cano frio da arma saiu de sua testa, o homem se sentiu aliviado mas, não por muito tempo, porque com a mão esquerda, o aster o pegou pelo pescoço, enforcando o homem contra uma das vigas da barraca.

_ E se eu descontar a minha raiva em você? Vai ser bom para você ou só para mim? – a voz do aster agora estava ameaçadora, e suas palavras possuíam uma entonação assassina – Nem precisa me responder, eu tenho certeza de que eu iria me sentir muito bem fazendo isso!

_ Por favor... não... – o homem ficava cada mais sem ar e com dificuldade de falar, a medida que a sua garganta era apertada com mais força contra a madeira.

_ Me diga, seu merda, o garoto te implorou também?

_ Por... favor... eu...

_ É bom você rezar para o deus que te abençoou ao nascer! – o aster o largou deixando que caísse sentado no chão, e deu sinal para que os guardas o tirassem dali, junto do garoto desmaiado – Porque se esse garoto morrer, eu garanto que você vai pedir perdão para ele pessoalmente!

O aster retirou um lenço prata do bolso, e após limpar sua mão, o jogou fora como se quisesse esquecer uma lembrança ruim.

_ Agora, vamos ao assunto mais importante! – virando-se para a barraca aonde Nick e Diaz estavam, o aster tirou um papel de um dos bolsos internos do uniforme e começou a ler em voz alta – Primeiro, qual de vocês dois seria o cidadão sem sobrenome Diaz? – Foi Nick quem fez um sinal de mão apontando para Diaz – Bem, vejamos... Hoje, no cais de Sunny, no momento em que o sol chegou ao topo do céu, eu aster Vênus, declaro o cidadão sem sobrenome Diaz, acusado de infringir uma das seis grandes leis: número cinco, posse de uma benção proibida. E aqui eu também declaro a prisão do mesmo.

(Em Típhia, por motivos desconhecidos, todos que nascem ou crescem em um orfanato, são chamados de sem sobrenomes.)

Assim que ele terminou de falar, outros dois guardas apareceram e usando um material flexível e resistente, amarraram as mãos de Diaz que acabou resistindo um pouco.

_ Espera, isso deve ser um engano, eu nunca faria algo assim, diga para eles Nick... – a voz dele falhou quando olhou para trás e viu que Nick nem olhava para ele – Nick?

_ O seu amigo também está envolvido nisso? – um dos guardas perguntou enquanto o puxava.

“ A tenda!”, um pensamento passou pela cabeça de Diaz, “ Mesmo eu sendo inocente, se ele também for envolvido, a gente vai perder a tenda, e junto, nossa única fonte de renda! “

_ Não! – Diaz respondeu com um olhar cansado, e deixou que os guardas o levassem embora.

Por mais que a prisão dele não tenha sido escandalosa, as pessoas ao redor logo começaram a sussurrar coisas que Diaz entendia muito bem, mesmo sem ouvi-las.

Ele andou até a entrada do porto, o que era mais ou menos a um quilômetro de sua barraca, sendo puxado pelos guardas toda hora, e ao chegar lá, uma carruagem branca, puxada por dois álos (cavalos) negros, estava parada alguns metros de distância do grande portão dourado que dava passagem para o porto Sunny e antes de entrar nela, Diaz resolver perguntar uma coisa para o aster.

_ Como você tem certeza de que eu consegui uma benção proibida?

_ Essa cicatriz coberta por faixas em sua mão é a prova! – o aster apontou para a mão esquerda de Diaz.

_ Essa? Isso foi apenas um acidente com uma faca alguns dias atrás!

_ Então você não vai se importar se eu tirar as faixas?

_ Pode tirá-las mas você não vai encontrar nada de mais... – a voz dele falhou novamente, quando viu que no local aonde era apenas uma cicatriz nojenta, agora uma tatuagem negra preenchia o dorso e a palma da mão, com círculos irregulares que se sobrepunham um sobre o outro.

_ Agora eu tenho total certeza, de que você, Diaz, obteve a bênção proibida: A Bênção de Thanatos!

Último Cântico para os deuses

_ Ó leve sopro do vento trazido por Éolo nessa linda noite fria, envolvendo o verde incessante das árvores, transforma a grande floresta em um imenso e magnífico palco, permitindo que a dança da mãe Gaia se prolongue por mais e mais séculos...

Na grande floresta Mávros, em uma época na qual um pequeno vilarejo surgira em meio as espessas copas de árvores o qual se transformaria na cidade de Típhia, uma garota de cabelos longos e grisalhos, com olhos que brilhavam tanto quanto as estrelas do céu em um tom esmeralda, cantava para a lua cinzenta no céu que mais se assemelhava a uma pintura natural.

A garota, que não possuía as mesmas emoções que as outras pessoas, apenas conseguia admirar o céu noturno, sob o qual dormia quase todas as noites sonhando em poder voar por entre os grandes e brilhantes corpos celestes. A garota não sentia medo, tristeza ou raiva, ela só era capaz de se sentir alegre ao observar o céu... e também inveja... inveja da liberdade que os astros possuíam, já que ela não podia caminhar para além da floresta, longe dos limites do vilarejo. Tinha inveja do brilho da lua, que mesmo na noite mais escura continuava brilhar forte no céu negro, diferente dela, que sempre que o frio surgia, se via obrigada a se aninhar dentro de sua casa, de onde não conseguia ver o mar escuro que existia acima de todo o mundo. Sentia tanta inveja da lua, que sua pele morena se tornou tão clara quanto o leite, na tentativa de competir com a grande estrela. Pequena Luna foi o apelido que ganhara no dia em que sua pele se tornou completamente de outra cor, apesar de seu nome ser diferente.

_ Ó Selene, doce Selene, por que és tão bela? E por que não me enxerga? Será que Urano, aquele que rege o grande e magnífico oceano celeste não permite que me responda? Ó Selene, doce Selene...

O vento da noite trazia consigo os sons que a floresta emitia, tornando a noite mais barulhenta mas não menos bela. Em meios aos sons de animais e outros seres, haviam alguns que ela já ignorava fazia minutos mas que ainda assim se tornavam cada vez maiores.

_ Pequena Thanatos, por que me ignora? - o ser que se escondia em uma sombra atrás da garota, a observava atentamente como se a qualquer momento ela fosse fazer algo importante.

_ Ó belíssima Nix, com suas asas negras e decoradas de brilhantes, me carrega e me leva para longe dessa vida! Ó grandiosa Nix, com sua força infinita, destrói toda luz que brilha ao contrário e preenche esse vazio com o seu breu...

Seu longo vestido vermelho ferrugem, que se assemelhava à uma tinta de sangue fresco, se mexia em ondulações na medida que ela também se movimentava em cima da pedra cinza na qual estava sentada. Em seu pescoço, um colar de joias coloridas pendia de um lado para o outro, fazendo com que ela se arrepiasse toda vez que a superfície gelada tocava em sua pele nua.

_ Que colar magnífico, Thanatos, digno o suficiente para ser seu! - a voz continuava tentando obter a atenção da garota, que mantinha seu olhar virado para o céu, a ignorando continuamente.

_ Ó doce Afrodite, que seu perfume intoxicante não se perca nessas névoas espessas, e chegue até o último brilho! Ó Afrodite, que sua beleza que encanta até mesmo demônios, possa ser o fim dessa sórdida guerra...

_ Se você procura um fim definitivo para seus problemas, eu posso ajudar Thanatos!

_ Eu já te disse, meu nome não é Thanatos! - apesar de falar normalmente, a voz da garota seguia o fluxo do vento, dando a entender que ela ainda cantava para o nada, sempre mantendo seus olhos no céu.

_ Mas também não é "Luna", não é mesmo? - a voz provocava a garota, tentando provar a sua ideia.

_ Os meus amigos têm o direito de me chamar assim!

_ Você tem mesmo amigos entre esses animais?!

_ Você já teve amigos, Caçador? - apesar de tentar ignorar, a garota acabou lembrando da apresentação que a voz havia feito, então não pode evitar de chamá-la por seu título.

_ Eu já tive um amigo. Você, Thanatos! - apesar de não demonstrar totalmente, a voz do Caçador pareceu falhar por um segundo.

_ Me desculpe, mas eu não posso ser sua amiga! - o olhar dela parecia ainda mais distante, talvez por saber o que o destino havia reservado para ela.

_ Eu temia essa resposta, mas não há nada que eu possa fazer! - o Caçador soltou uma adaga no chão, adaga qual possuía um cabo de madeira negra manchada de vermelho sangue, e sua lâmina afiada reluzia em prata junto ao brilho da lua.

_ Você pretende me matar, Caçador? - por instante, o olhar da garota encarou a sombra sólida que a observava, mas ao não conseguir enxergar nada além do breu, voltou a observar o céu.

_ Eu queria poder escolher, mas esse é nosso destino, Thanatos! A morte é o nosso único laço! - a última palavra foi pronunciada na mesma entonação que a garota falava, o que a fez sentir-se um pouco aliviada.

_ Você parece dizer a verdade! - ela suspirou enquanto fazia uma pausa, e logo voltou a falar - Então se apresse, Caçador, pois já me cansei de te ignorar!

_ Você consegue ouvir também, não consegue? - a voz se referia aos sons que vinham do centro do vilarejo, aonde uma luz forte iluminava o local.

_ Por que eu deveria me importar com eles? Nenhuma das pessoas que estão ali se importa verdadeiramente comigo.

_ Você tem certeza disso?

_ Quando fui marcada pela Morte, todos eles desistiram de mim!

_ Eu sempre estarei ao seu lado, Thanatos! - a sombra diminuiu de tamanho por alguns segundos, como se estivesse se curvando para a garota.

_ Nós dois sabemos que nessa vida, você não é a minha salvação, Caçador! - a voz, que antes soava forte, agora parecia se lamentar a cada palavra dita.

_ Por que você é tão diferente do meu Thanatos, mas ao mesmo tempo, tão semelhante?

_ Talvez, eu seja a verdadeira, e você conheceu a errada!

_ É possível, mas agora não tem mais volta, eu já dei o primeiro passo! - o Caçador, se aproximou da adaga no chão, ficando a um passo de alcançá-la.

_ Quantas vezes você já "me" matou, Caçador? - os olhar dela voltou a encarar a névoa sólida, dessa vez encontrando um par de olhos vermelhos sangue repletos de ódio e tristeza.

_ Já passaram mais de quinhentas primaveras desde que você morreu pela primeira vez!

_ Quantas ainda faltam?

_ Muitas!

A garota suspirou fundo, e voltou a observar as estrelas. O cheiro de fogo se tornou mais intenso, e a chama que queimava as casas do vilarejo, se tornou totalmente visível em uma dança de calor e cinzas. Os gritos já haviam cessado, o que deixava claro que todos também já haviam morrido.

_ Só sobrou você, Luna!

_ Pensei que você não me aceitasse com esse nome?!

_ Agora não existe mais sentido em continuar com isso. - a mão humana do Caçador saiu de dentro das sombras, pegando a adaga no chão e a entregando para a garota com o cabo virado para ela - Precisa de ajuda para o próximo passo?

_ Não me resta mais nada, então pelo menos esse momento tem de ser meu! - ela pegou a adaga e enquanto passa o dedo pela lâmina afiada, se encantou com o brilho da prata.

Com um movimento lento, ela segurou o cabo de madeira com as duas mãos, apontando a ponta da lâmina para o seu peito e pulou da pedra onde estava, caindo de bruços no chão, com a lâmina prata cravada em seu coração. Uma poça de sangue se formou no lugar onde o corpo dela caiu que se tornou um com o longo vestido, e antes que seu último suspiro fosse dado, um último verso de sua canção, ecoou pelas chamas vivas que queimavam o vilarejo, e adentrou a floresta escura e sombria.

_ Ó impiedoso Hades, o seu anjo negro e belo me alcançou, então o que me acontecerá agora? Ó benevolente Hades, me permita mais uma vez, enxergar a bela luz das estrelas, antes que eu retorne para ti! Ó assustador Hades, se meus olhos te enxergarem, então esse será mesmo meu fim? Ó Hades, é mesmo meu fim?...

_ Esse não é seu fim, Thanatos, mas esse também logo chegará, para nós dois!

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