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Em uma terra distante, erguia-se o imponente Império Quátez, conhecido tanto por sua grandiosidade quanto por sua reputação como o Império das Guerras.
Governado por uma sucessão de imperadores notáveis, o Império Quátez testemunhou uma mistura intrigante de inteligência, força e graciosidade em seus líderes, embora também fosse marcado pela ambição desmedida que impeliu os seus primeiros governantes.
Quátez, o primeiro imperador homem e filho bastardo da grande fundadora do Império, Cellestya, encarnava essa dualidade em sua essência. Fascinado pelo poder, riqueza e fama, a sua sede insaciável de conquista moldou o curso do Império.
Nos seus últimos anos, incentivou o seu herdeiro a buscar ainda mais poder, expandindo o Império com riqueza, sabedoria e um crescente número de súditos. Ao longo dos séculos, essa busca por poder se tornou um legado, moldando o Império Quátez no maior deste mundo.
Após um milênio de história, o Império foi abençoado com o nascimento de dois príncipes, frutos da união entre a imperatriz consorte Anna Beatriz Toners e o imperador Louys III Quátez. Desde o momento em que o primogênito nasceu, rumores ecoaram pelos vastos corredores do castelo, descrevendo-o como o "menino mais lindo nascido em décadas".
Seu nome era Gilbert Quátez, o príncipe herdeiro, e sua aparência era de tirar o fôlego: olhos azuis claros que refletiam a vastidão do oceano, cabelos loiros de um tom meio claro, símbolo do Império, que brilhavam como raios de sol, e uma boca cor de rosa que lembrava uma delicada flor de cerejeira. Sua pele clara e seus traços lembravam quase que perfeitamente os do imperador Louys, o que era surpreendente, pois não havia nele nenhum traço da imperatriz consorte.
O segundo príncipe, Danyel Quátez, diferente do irmão, parecia uma réplica da mãe. Seus cabelos ruivos, cor de fogo, contrastavam com seus olhos verdes, tão intensos quanto esmeraldas. Pequenas sardas adornavam seu rosto, conferindo-lhe um charme particular. Enquanto Gilbert conquistou os corações do imperador e da imperatriz desde o primeiro instante, Danyel trouxe consigo uma lembrança vívida da imperatriz consorte, fortalecendo ainda mais o vínculo da família imperial com o povo.
Após o nascimento dos príncipes, o Império celebrou por um mês inteiro, marcando o evento como um glorioso festival. Nobres e plebeus uniram-se para comemorar os novos membros da família imperial.
Dois meses após o grandioso festival, a esposa do Duque Sentiny deu à luz uma menina que logo se tornou um símbolo de beleza e encanto por todo o Império. A pequena Karoll, com sua pele parda que refletia a herança multicultural de seus pais - um duque branco e uma duquesa negra -, era um bebê que parecia irradiar uma luz própria. Seus cabelos castanhos já apresentavam cachos suaves, um prenúncio de que herdaria as deslumbrantes madeixas cacheadas de sua mãe.
Seus olhos, de um raro tom violeta, capturavam a atenção de todos, brilhando como pedras preciosas sob a luz. Esses olhos eram um traço incomum e fascinante, que faziam com que todos que a vissem ficassem imediatamente encantados.
Apesar de ser apenas uma bebê, Karoll já exibia os traços marcantes de seu pai, com uma estrutura facial bem definida e um olhar expressivo que parecia transmitir uma sabedoria além de sua idade.
A chegada de Karoll foi vista como um presságio de um futuro promissor, e sua presença despertava um misto de fascinação e esperança entre aqueles que tinham o privilégio de conhecê-la. A pequena duquesa em formação prometia ser uma figura deslumbrante, destinada a cativar e inspirar todos ao seu redor.
Os rumores sobre a recém-nascida se espalharam como fogo, não tardando a chegar aos ouvidos do imperador. Intrigado e curioso, o imperador imediatamente quis saber mais sobre essa criança que tanto fascinava a todos.
— O Duque Sentiny é um nobre de grande estatura, conhecido por suas habilidades políticas incomparáveis — o imperador refletiu profundamente após ouvir as notícias por meio de seu conselheiro imperial, Conde Connell. — Certamente, ele transmitirá essas habilidades aos seus descendentes. Creio que encontrei a futura imperatriz.
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Após dias de viagem pelas estradas sinuosas e colinas ondulantes do Império, o imperador finalmente chegou às terras do Duque Sentiny. As paisagens ao redor eram um espetáculo de beleza natural — florestas densas e verdes que pareciam se estender até o horizonte, com rios cristalinos serpenteando pelas colinas e alimentando os lagos tranquilos. O céu era vasto e limpo, refletido pelas águas límpidas, enquanto a brisa suave carregava o frescor do sul.
No coração desse cenário exuberante, erguia-se o majestoso Castelo de Sentiny. A construção impressionante dominava a vista com suas torres de pedras claras e seus telhados azulados, que brilhavam sob o sol. Suas muralhas, altas e firmes, cercavam o castelo como um símbolo de poder e proteção. O castelo parecia flutuar sobre a margem do oceano, onde as ondas batiam suavemente contra as pedras negras da costa.
Várias pontes conectavam diferentes partes da construção, com passagens que levavam a vilarejos e áreas externas, onde a população local vivia sob a sombra protetora do ducado. À distância, pequenas vilas podiam ser vistas, refletindo a riqueza e prosperidade das terras. Os arredores eram cuidadosamente cultivados, e a natureza parecia entrelaçar-se harmoniosamente com a arquitetura magnífica, dando a sensação de que o castelo fazia parte daquele ambiente desde tempos imemoriais.
Ao chegar, o imperador foi recebido pelos servos do duque, que o conduziram para o interior do castelo. O Duque Sentiny o aguardava no grande salão, ladeado por tapeçarias ricas e brasões familiares que testemunhavam a longa linhagem da casa Sentiny. O duque, um homem de postura imponente, mas claramente surpreso, adiantou-se para recebê-lo.
— Sua majestade imperial, a que devo a honra de sua visita inesperada? — questionou Sentiny, ocultando a perplexidade sob um tom respeitoso.
O imperador, com um sorriso astuto, observou-o por um momento antes de responder:
— Sabe que, entre velhos amigos, não devemos nos prender a formalidades, Denarius. Vim ver com meus próprios olhos o que dizem os rumores... e também discutir um grande acordo contigo.
O duque franziu o cenho levemente, mas não teve tempo de questionar. O imperador mudou de assunto com facilidade, conduzindo a conversa para questões triviais, enquanto os serviçais preparavam o jantar.
Mais tarde, sentados à mesa iluminada por velas, o imperador, o duque e a duquesa trocavam comentários sobre o estado do Império, as movimentações dos nobres e o equilíbrio das alianças. No entanto, mesmo entre palavras corteses e risadas ocasionais, o duque Sentiny não podia ignorar a sensação incômoda de que algo estava por vir.
Então, em um momento calculado, o imperador pousou seus talheres e recostou-se levemente na cadeira. Seu olhar percorreu a sala antes de pousar diretamente sobre Sentiny.
— Meu caro amigo, onde está sua filha? — perguntou com um sorriso quase casual, mas com um brilho enigmático nos olhos. — Esperava vê-la esta noite.
A duquesa, rápida em sua resposta, interveio antes que o duque pudesse dizer algo.
— Vossa majestade imperial, ela já descansa. Como qualquer recém-nascido, precisa de seu sono.
O imperador manteve o sorriso, inclinando-se ligeiramente para a frente.
— Entendo perfeitamente, minha senhora. — Ele fez uma pausa significativa, como se estivesse refletindo. — No entanto, essa bela criança de olhos tão promissores merece muito mais do que um berço aconchegante. Merece um futuro grandioso.
O duque Sentiny, que já conhecia bem a arte de ler entrelinhas, sentiu o coração acelerar. O imperador continuou, sua voz agora carregada de intenção.
— Por isso, pretendo abençoá-la no templo do sul em uma semana. Um evento digno da herdeira de sua casa... e da futura imperatriz consorte deste Império.
A sala mergulhou em silêncio. O duque Sentiny arregalou os olhos, a mão apertando instintivamente o cálice de vinho. A duquesa ficou pálida, e sua respiração tornou-se curta. O imperador observava a reação deles com a calma de quem já conhecia a resposta.
— Perdão, majestade? Poderia repetir? — balbuciou o duque, ainda tentando processar as palavras.
O imperador sustentou o olhar, sem um traço de hesitação.
— Sua filha será minha nora e a futura imperatriz. Esse é o destino que proponho.
O duque Sentiny piscou algumas vezes, sua mente já pesando as implicações. A duquesa, porém, ergueu-se bruscamente da cadeira, os olhos estreitados em preocupação.
— E se ela se apaixonar por outro? — sua voz era firme, mas havia algo mais ali. Um medo velado.
O imperador sorriu, dessa vez com uma confiança inabalável.
— Meu filho será um homem digno. Não haverá motivo para tal. Mas, se um dia o amor não lhes bastar, sempre haverão concubinos.
As palavras do imperador fizeram a Duquesa estremecer de desgosto. A tensão em seu rosto era evidente enquanto ela se levantava da mesa com um movimento brusco, os olhos cheios de desaprovação. Com passos decididos, ela se dirigiu à saída da sala de jantar, mas não antes de lançar um olhar preocupado ao Duque. Ela sabia que ele não teria outra escolha senão aceitar a proposta do imperador, e essa percepção aumentava sua inquietação.
Enquanto a porta se fechava atrás dela, o Duque permaneceu sentado, seus pensamentos agora mergulhados nas complexas consequências da decisão que acabara de tomar.
Quando a Duquesa partiu, o imperador dirigiu-se novamente ao Duque:
— Então, vai recusar?
Com um olhar triste e duvidoso, o Duque Sentiny resignou-se e respondeu:
— Eu aceito a sua proposta, vossa majestade imperial.
Com isso, o imperador pulou da mesa e envolveu o seu amigo Duque em um abraço reconfortante, celebrando a aliança que selaria o destino dos seus filhos e do Império.
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Uma semana se passou desde a solene declaração do imperador. No coração do majestoso templo, cujas colunas imponentes erguiam-se como guardiãs do destino imperial, Karoll Sentiny recebeu a bênção que selaria seu futuro. O brilho das tochas refletia nos ricos ornamentos dourados, enquanto sacerdotes entoavam cânticos ancestrais que ecoavam sob a cúpula sagrada.
A cerimônia transbordava grandeza. Nobres de todas as províncias se reuniram, seus olhares atentos à criança no centro do altar. O Imperador, com sua voz firme e inquestionável, proferiu as palavras que selavam seu destino:
— A partir deste dia, diante da Deusa Cellestya e de todo o Império, nomeio Karoll Sentiny como futura princesa herdeira.
Um silêncio reverente tomou conta do templo antes que os murmúrios irrompessem entre os presentes. O Duque Sentiny, mantendo a compostura, apertou discretamente os punhos, enquanto a Duquesa desviava o olhar, o rosto impassível, mas com a rigidez de quem carregava um fardo que não podia recusar.
Dias após a cerimônia, o imperador retornou à capital, e seu decreto percorreu o Império como um incêndio levado pelo vento. De mercados movimentados a salões aristocráticos, o nome de Karoll era sussurrado com curiosidade e expectativa.
— A filha do Duque Sentiny… escolhida pelo próprio imperador? — questionavam-se em tavernas e corredores de palácios.
A notícia ultrapassou fronteiras, chegando ao Reino Escarlate e ao Império de Tynes, onde monarcas e cortesanos ponderavam sobre as implicações dessa aliança.
Convites para bailes começaram a chegar à residência dos Sentiny, cada envelope selado com brasões de casas nobres que ansiavam por uma chance de conhecer a menina que, um dia, governaria ao lado do príncipe herdeiro.
Quando Karoll completou três anos, o imperador enviou os mais ilustres mestres do Império para instruí-la. Seu cotidiano tornou-se uma sequência de lições rigorosas: etiqueta refinada, administração do palácio e terras, línguas estrangeiras de impérios aliados, contabilidade avançada. Apesar da pouca idade, a menina absorvia o conhecimento com uma inteligência afiada, deixando mestres admirados com sua rapidez de raciocínio.
Mesmo aos quatro anos, sua sede por aprendizado ia além do esperado. Durante uma manhã fria, surpreendeu o pai ao interromper um treino de esgrima entre os cavaleiros da casa Sentiny.
— Quero aprender também — declarou, os olhos brilhando de determinação.
O Duque, primeiro tomado pela surpresa, lançou um olhar avaliador para a filha. Então, para espanto de seus conselheiros, entregou-lhe uma pequena espada de madeira.
— Então, mostre-me do que é capaz — disse, com um raro sorriso de aprovação.
Desde então, entre aulas de diplomacia e estratégias militares, Karoll começou a moldar-se não apenas como uma princesa prometida, mas como alguém destinada a deixar sua própria marca na história do Império.
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Dez anos haviam transcorrido desde o nascimento de Karoll, e o Império estava em frenesi. A chegada do tão esperado momento pelos nobres havia finalmente surgido no horizonte: o deslumbrante e majestoso baile imperial, onde o príncipe herdeiro Gilbert conheceria pela primeira vez sua futura esposa.
A expectativa permeava o ar do castelo imperial, com cada detalhe minuciosamente preparado para garantir que a ocasião fosse impecável.
A ansiedade era palpável entre os nobres e servos, todos desejando que o encontro ocorresse sem contratempos. A imperatriz, em particular, dedicara-se incansavelmente aos preparativos do jantar. Ela havia supervisionado pessoalmente cada aspecto, desde a escolha dos ingredientes mais finos até a disposição meticulosa das mesas.
Sua dedicação era tão intensa que suas olheiras, testemunhas de noites mal dormidas, eram claramente visíveis à luz do dia, refletindo o peso de sua responsabilidade e o desejo de perfeição para a noite memorável.
Assim que todos os convidados chegaram, anunciaram a entrada do príncipe herdeiro:
— Vossa alteza imperial, príncipe herdeiro, Gilbert Quátez!
Gilbert estava deslumbrante, deixando todos os presentes encantados.
No entanto, ele era uma criança tímida e apreensiva, quase à beira das lágrimas de nervosismo. Em sua mente, ele sabia que precisava agir de maneira impecável, como os tutores o ensinaram, e também queria encher os seus pais de orgulho em seu primeiro baile. Gilbert mal podia esperar para conhecer a sua futura noiva, e não conseguia deixar de se perguntar se estava suficientemente apresentável para Karoll.
Chegou então o momento tão esperado de anunciar a entrada da "princesa herdeira".
A sala estava mergulhada em um silêncio ansioso, com todos os olhares fixos na grande entrada, onde Karoll faria sua estreia na alta sociedade pela primeira vez. A expectativa pairava no ar, densa e quase palpável.
O mestre de cerimônias, com uma voz clara e ressonante, declarou:
— Lady Karoll Sentiny, herdeira do ducado e futura princesa herdeira!
No instante em que Karoll entrou, a sala inteira pareceu prender a respiração. Ela era deslumbrante. Seus cabelos castanhos cacheados caíam em cascatas suaves sobre seus ombros, complementando perfeitamente seus olhos violeta. Sua pele bronzeada brilhava sob as luzes do salão, destacando-se ainda mais com o vestido dourado que ela usava, adornado com finos bordados que refletiam a luz como estrelas.
Cada movimento de Karoll era gracioso e delicado, como se estivesse flutuando. Ela parecia uma verdadeira boneca de porcelana, sua presença irradiando uma elegância quase etérea. Os murmúrios de admiração se espalharam pela sala, mas um em particular ficou em completo silêncio.
O príncipe herdeiro Gilbert, postado no centro do salão, ficou completamente encantado. Seus olhos não conseguiam desviar-se dela, e ele permaneceu paralisado, absorvendo cada detalhe de sua beleza. O mundo ao redor parecia desaparecer, deixando apenas a imagem de Karoll gravada em sua mente, como uma visão de perfeição.
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A escadaria central parecia ter sido feita para esse momento.
Cada degrau que a jovem descendia era acompanhado por um silêncio crescente no salão. Os músicos ainda tocavam, mas ninguém mais ouvia. Os olhos de todos estavam voltados para ela.
Então essa é Karoll Sentiny...
Gilbert recuperou a postura, endireitando-se ao máximo enquanto se aproximava da escada do salão, sua mente atordoada pela expectativa da dança com sua noiva.
Karoll desceu a escada com uma graça que parecia desmentir sua juventude, os olhos fixos em Gilbert, mas sua expressão demonstrava apenas uma confiança tranquila, sem sinais de nervosismo.
— É um prazer conhecê-lo, vossa alteza imperial, príncipe herdeiro Gilbert Quátez. — curvou-se levemente diante do príncipe, mantendo uma postura impecável.
Gilbert, tomado por uma ansiedade quase sufocante, gaguejou ao tentar responder:
— S-sim! O prazer é... é todo me-eu, lady Karoll Sentiny. — a sua voz falhou em meio às hesitações, enquanto ele estendia a mão trêmula em direção à dela. — Go-gostaria de me conceder... uma dança?
Karoll, por sua vez, teve uma primeira impressão equivocada do príncipe, julgando-o de forma precipitada.
— Eu adoraria, vossa alteza. — respondeu com um sorriso gentil, aceitando o convite.
Gilbert, aliviado por sua proposta ter sido aceita, soltou um sorriso tímido, acreditando ter causado uma boa impressão. Juntos, eles dirigiram-se ao centro do salão para realizar a sua primeira dança como noivos.
Apesar do nervosismo que ainda o consumia, o príncipe movia-se com graciosidade ao lado da sua futura esposa, demonstrando habilidade e elegância. Não houve erro em nenhum passo, e a dança transcorreu de forma fluida e harmoniosa, deixando os presentes encantados.
Ao final, foram agraciados com uma salva de palmas e uma série de elogios.
O imperador e a imperatriz também se aproximaram para parabenizá-los, irradiando orgulho.
— Vocês dançaram com tamanha harmonia que parecia até que já ensaiavam juntos desde o berço — elogiou a imperatriz, exibindo um sorriso largo e gracioso.
— Muito obrigado, mamãe. — o príncipe alegre respondeu.
A alegria, no entanto, durou pouco.
— Por Cellestya, olhe os modos, menino! — cortou a imperatriz, em voz alta o bastante para ser ouvida pelas damas mais próximas. — Não me chame de “mamãe” em público, e muito menos diante de toda a corte! E, francamente, eu nem estava falando com você. Você mal conseguiu terminar uma frase sem gaguejar na frente da sua noiva!
O salão silenciou por um breve instante, desconfortável.
O rosto de Gilbert mergulhou num tom escarlate. O peito apertou-se de imediato, como se as palavras de sua mãe tivessem empurrado todo o ar para fora de seus pulmões. Ele tentou responder, qualquer coisa, mas a garganta travou.
Sentia-se ridículo.
Com a cabeça baixa, as lágrimas começaram a ameaçar seus olhos. "Eu sou um fracasso", pensou, e as palavras pareciam se repetir em sua mente como uma sentença implacável. "Sempre fui... E ninguém vai ver isso, exceto eu."
— M-me desculpe... vossa majestade — murmurou, a voz fraca e trêmula, sem conseguir erguer o olhar.
A vergonha ardia. O olhar de sua mãe o esmagava mais que qualquer castigo, e ele mal teve coragem de encarar Karoll ao seu lado.
Fez uma reverência apressada — ou algo próximo disso — e se afastou com passos nervosos, atravessando o salão em direção à sala das crianças nobres. Ali, entre móveis cobertos por cortinas, brinquedos de madeira esquecidos e o cheiro levemente adocicado de velas gastas, esperava encontrar algum tipo de refúgio. Não do mundo — mas dele mesmo.
No salão, a imperatriz suspirou fundo, passando a mão pela testa como se sentisse uma leve dor de cabeça.
— Oh Santa Cellestya... Peço desculpas por presenciar esse tipo de comportamento do príncipe, Lady Karoll. Ele é difícil de ensinar boas maneiras. — A Imperatriz disse, seu tom grave refletindo uma sensação de falha também, mas talvez mais pela sua impotência do que pela vergonha do próprio filho.
Karoll, embora chocada com a situação, manteve-se serena, controlando as suas emoções e mantendo um sorriso polido no rosto.
— Fico muito grata pelo elogio à minha dança, imperatriz. Mas agora, com sua permissão, gostaria de conhecer meus futuros amigos nobres. — disse, educadamente, solicitando permissão para se retirar.
— Ah, sim. Você é tão elegante que esqueço às vezes que é apenas uma criança. Tem a minha permissão para se retirar.
Karoll curvou-se com delicadeza, afastando-se com passos calculados, como se nada tivesse acontecido — ainda que, por dentro, já começasse a formar sua primeira impressão real sobre o império que a aguardava.
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Quando Karoll entrou na sala, a cena diante dela era de pura indiferença infantil: as crianças se esbaldavam nos quitutes espalhados pela mesa, e outras brincavam alegremente, imitando cachorrinhos, com risadas despreocupadas. No entanto, seu olhar logo encontrou o príncipe, sentado encurralado em um canto escuro da sala, com os ombros sacudindo com soluços silenciosos.
"Que tipo de herdeiro se esconde assim?" Karoll pensou, irritada. Ela se aproximou dele, seus passos firmes ecoando no ambiente.
— O que você está fazendo, Vossa Alteza? — sua voz cortante preencheu o ar, e ela cruzou os braços, esperando uma explicação.
Gilbert tentou, mas a vergonha o impediu. Suas palavras ficaram presas na garganta, engolidas pela dor que o consumia. Ao invés disso, ele soltou um soluço abafado, mais uma vez envergonhado pela própria fraqueza. Ele queria se esconder ainda mais, mas sabia que não podia.
— Então, é isso? — Karoll continuou, o tom sarcástico emergindo. — O príncipe herdeiro do Império, futuro imperador, se encolhe no canto e chora depois de ser humilhado como um garoto qualquer? Uma pessoa com um título como o seu não pode se dar ao luxo de se esconder atrás de lágrimas, não quando o que está em jogo é o destino de um Império. Não é qualquer mulher que pode te derrubar dessa maneira, especialmente uma mulher que se acha acima de tudo e todos.
Ela falava sem filtro, esperando que suas palavras cortassem, que ele sentisse a pressão de ser alguém com uma responsabilidade além de suas inseguranças. Ela queria vê-lo reagir, queria tirar Gilbert daquele estado de vulnerabilidade. Mas ao olhar para ele, sentia que estava falando com um homem partido.
— Você, o príncipe herdeiro, vai se permitir ser destruído por uma mulher que se acha o centro de tudo? — ela continuou, seu olhar frio e determinado. — Ela, uma velha obsoleta que está mais próxima de perder tudo do que de controlar o Império, vai te humilhar assim, sem nem ao menos hesitar? E você vai simplesmente ficar aí, chorando como se não fosse capaz de se defender?
Gilbert ergueu a cabeça, mas ao invés de uma resposta desafiante, ele se encolheu mais ainda, como se o peso de suas palavras o esmagasse. Não era apenas o desprezo de sua mãe que o afetava; era a própria percepção de sua inadequação. Ele não sabia como agir, como ser o príncipe que todos esperavam que ele fosse.
— Você quer morrer? — Gilbert finalmente conseguiu murmurar, a voz fraca. — Se alguém ouvir isso, vão te considerar como uma traidora. Ela é minha mãe, lady Karoll. Ela é a esposa do imperador, não posso falar assim dela.
— E daí? — Karoll retrucou, sua voz fria como gelo. — Ela não te trata como um filho, vossa alteza. Que tipo de mãe trata seu filho dessa forma, especialmente diante de todos? Como pode permitir que ela destrua a sua confiança, humilhando você assim? Não estou pedindo que você a destrua, mas é hora de se levantar e lutar por si mesmo. Se você não conseguir se impor agora, como vai governar um Império?
Gilbert ficou em silêncio por um momento, o peso de suas palavras se aninhando em seu peito. Ele estava completamente perdido entre o desejo de ser o filho perfeito e a dor de ser tratado com desprezo pela própria mãe.
— Eu posso não ser tudo o que ela queria, Karoll, mas... eu ainda a vejo como minha mãe — ele murmurou, os olhos baixos, as lágrimas surgindo de novo, desta vez mais pesadas, mais implacáveis.
O coração de Karoll vacilou por um momento, mas ela se manteve firme, sua expressão intransigente. Ela não podia ceder, não agora. Não se ele quisesse realmente mudar, crescer e se tornar o homem que o Império precisava.
— Então, faça o que quiser - disse ela, o tom cortante agora suavizado por um leve suspiro. — Mas pelo menos ouça o que estou dizendo. Não vou ficar aqui para sempre tentando te proteger dos próprios fantasmas. Se quiser continuar sendo esse príncipe fraco, então, que seja. Mas o Império não vai esperar por você para sempre.
Karoll se virou e saiu, os passos ecoando na sala enquanto ela caminhava em direção ao jardim interno. Gilbert permaneceu ali, perdido em seus próprios conflitos emocionais, enquanto a distância entre ele e o futuro que deveria abraçar só aumentava.
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O jardim imperial interno, com suas flores exuberantes e paisagens bem cuidadas, era um refúgio para aqueles que buscavam paz e silêncio. Karoll entrou com passos leves, deixando que a brisa suave da tarde acariciasse seu rosto. O céu se tingia de laranja e rosa enquanto o sol desaparecia lentamente no horizonte. O perfume das rosas preenchia o ar, criando uma atmosfera serena e acolhedora.
Ela se sentou nos degraus de mármore de uma escadaria, com as mãos repousadas no colo e os olhos vagando pelo jardim. Por um instante, sentiu-se mais leve, como se o mundo ao seu redor tivesse parado. Era bom não ser observada, julgada ou medida. Era bom apenas... estar ali.
Mas, inevitavelmente, os pensamentos retornaram à cena do salão.
Ela mordeu o lábio inferior, pensativa. Teria sido rude com o príncipe? Talvez. Mas ele também não havia dito quase nada, apenas ficado ali, parecendo perdido. Karoll não sabia o que esperavam dela — ainda mais quando ninguém lhe explicara o que fazer caso seu noivo corasse e fugisse.
"Ele só tem dez anos... Eu também", pensou, desviando o olhar para uma flor roxa que tremulava ao vento. "Talvez estivesse nervoso. Ou com medo, como eu."
Sentiu uma pontada incômoda no peito. Não gostava da ideia de ter contribuído para a humilhação dele — mesmo que não tivesse sido de propósito.
Estava ainda imersa nesses pensamentos quando uma voz suave atravessou o silêncio do jardim:
— É bem relaxante, não?
Karoll virou-se, surpresa e cautelosa, para encontrar a origem da voz. Um jovem estava se aproximando, seus passos leves e seguros. Ele tinha cabelos castanhos curtos e ondulados, que reluziam à luz do entardecer. Seus olhos azul-escuros eram intensos e penetrantes, quase hipnotizantes. O rosto triangular, com traços marcantes, dava-lhe uma aparência distinta e nobre. Embora ainda jovem, já era alto o suficiente para sugerir que, em alguns anos, ele se tornaria um homem de estatura imponente.
— Quem é você? — indagou Karoll, sua curiosidade crescendo à medida que o observava.
O rapaz parou diante dela com uma elegância natural, inclinando-se em uma reverência respeitosa. Em seguida, pegou suavemente a mão de Karoll e depositou nela um beijo leve, seus olhos nunca deixando os dela.
— Prazer, chamo-me Gustav Elenorv, filho do Barão Elenorv. — apresentou-se com cortesia, um leve sorriso nos lábios.
Karoll sentiu um calor subir por suas bochechas ao ver Gustav mais de perto. Seus olhos desviaram timidamente, tentando esconder o rubor que a surpreendeu. A presença dele era inesperada, mas também intrigante.
— O prazer é todo meu, senhor Gustav Elenorv. Eu sou Lady Karo—
— Eu sei quem é você, futura imperatriz, Karoll Quátez Sentiny. — Gustav a interrompeu com um tom de voz que demonstrava conhecimento e talvez uma pitada de ousadia.
Karoll sentiu-se estranhamente envergonhada, sem motivo aparente. Havia algo na maneira como ele a olhava, como se já a conhecesse de alguma forma. Ela mordeu o lábio inferior, buscando palavras para continuar a conversa.
— Posso me juntar à futura imperatriz? — perguntou Gustav, sua expressão serena enquanto aguardava a resposta.
Karoll hesitou por um momento, sentindo-se desconfortável com o título que ele usara.
— Claro. E não precisa me chamar assim, não tenho certeza se me casarei com o príncipe herdeiro... — corrigiu-se, tentando parecer casual.
Gustav se sentou ao lado dela nos degraus, mantendo uma distância respeitosa. O silêncio entre eles era preenchido pelo som do vento nas árvores e o suave canto dos pássaros. A presença dele, embora inesperada, trouxe uma nova dinâmica ao ambiente, e Karoll não pôde deixar de se perguntar o que aquele encontro significava.
— Me perdoe, fui muito lento em perceber minhas palavras, mas pensei que todas as damas deste Império gostariam de ser chamadas assim...
— É que eu não sei se quero me casar com o príncipe...
Gustav percebeu o desconforto em suas palavras e mudou rapidamente de assunto.
— Eu gosto deste jardim, parece trazer uma sensação de paz indescritível. — disse ele, olhando ao redor.
— Parece que você frequenta muito este lugar, senhor Gustav.
— Para dizer que verdade, é a primeira vez que venho a este castelo. — admitiu Gustav, com um sorriso sincero.
— Mesmo assim, compartilhamos a mesma opinião. Parece que aqui podemos esquecer todos os problemas e nos sentir relaxados.
— Que bom que concordamos em algo. Sendo sincero, nem sabia o que dizer.
Os dois continuaram conversando animadamente por um tempo, explorando temas leves e triviais. Karoll se sentia cada vez mais à vontade na presença de Gustav, que se mostrava um excelente ouvinte. Havia uma conexão inesperada entre eles, uma compreensão mútua que era difícil de ignorar.
— Mas por que você está aqui no jardim? — perguntou Karoll, curiosa sobre o motivo de sua presença.
Gustav suspirou, parecendo por um momento mais velho do que realmente era.
— Meu pai não para de me pressionar em relação à sucessão do título de Barão, e minha mãe insiste em encontrar uma nobre rica para que eu me case e salve nossa família da pobreza. Eu só tenho doze anos, sou apenas uma criança, mas parece que ninguém se importa... — desabafou, com um sorriso triste.
Karoll sentiu um aperto no coração ao ouvir isso. Ela sabia muito bem o peso das expectativas familiares e o fardo de responsabilidades que pareciam prematuras.
— Então somos semelhantes nesse aspecto. Neste Império, as crianças muitas vezes precisam ser mais maduras do que os adultos. Às vezes, isso até parece engraçado! — Karoll sorriu, compartilhando um momento de compreensão com Gustav.
Um silêncio se instalou entre eles, enquanto trocavam olhares significativos. Nesse momento, havia uma conexão genuína, uma troca silenciosa de empatia e compreensão. Ambos estavam presos em papéis que não haviam escolhido, mas que tinham de desempenhar. O entardecer se transformava lentamente em noite, e as primeiras estrelas começavam a aparecer no céu escurecido.
Nesse momento, as palavras se tornaram desnecessárias. Eles apenas se olharam, admirando-se mutuamente e encontrando consolo na presença um do outro, até que...
— Karoll, o que está fazendo aqui com Gustav Elenorv? — a Duquesa Sentiny apareceu, surpreendendo-os.
— Estávamos apenas nos conhecendo, mamãe...
A Duquesa lançou um olhar suspeito em direção ao jovem Barão por alguns momentos.
— É uma honra conhecê-la, Duquesa. — Gustav levantou-se rapidamente, envergonhado sem motivo aparente.
— Prazer, Gustav. Gostaria de ter mais tempo para conversar, mas agora estou com pressa. Nos vemos em outra ocasião. Parece que seu pai também está à sua procura.
A Duquesa puxou a mão de Karoll, apressando-se para sair do jardim. Karoll lançou um último olhar para Gustav antes de deixar o local, acenando-lhe com um sorriso esperançoso, ansiosa para encontrá-lo novamente em outro momento.
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A Duquesa Sentiny, com uma expressão rígida, atravessou o salão com passos apressados, segurando a mão de sua filha firmemente, como se a puxasse para longe de algo perigoso. A pequena Karoll, ainda confusa, tentava acompanhar o ritmo rápido de sua mãe, os olhos arregalados observando as figuras ao seu redor que sussurravam e lançavam olhares curiosos.
— O que a mocinha estava fazendo com o herdeiro do Barão Elenorv?
Karoll sentiu o coração disparar. A vergonha queimava suas bochechas ao lembrar-se da breve conversa que teve com Gustav, o jovem herdeiro. Ele parecia ser sua única companhia amigável na capital até agora. Mesmo assim, ela sabia que sua mãe não estava satisfeita.
— Só estávamos nos conhecendo — retrucou Karoll, tentando manter a voz firme. — Somos duas crianças normais! Agora não posso nem fazer amigos também?
Sua voz saiu mais alto do que pretendia, ecoando em sua própria cabeça, e ela logo desviou o olhar, encarando o chão de mármore, evitando o olhar penetrante da mãe.
A Duquesa suspirou, observando a filha por um momento antes de suavizar o tom, mas sem perder a firmeza.
— Minha filha, é claro que eu quero que você faça vários amigos — a voz da Duquesa parecia mais suave, mas havia uma tensão subjacente, como se estivesse tentando encontrar as palavras certas para proteger sua filha sem assustá-la. — Mas você sabe como é esta capital. Se alguém te ver com um nobre cavaleiro, vão pensar coisas erradas, e isso pode chegar ao imperador ou à imperatriz. Uma palavra mal falada pode prejudicar nossa família, e principalmente sua autoridade. Mesmo sendo uma criança, você está sob o olhar de muitos aqui.
Karoll mordeu os lábios, sentindo uma mistura de frustração e tristeza crescendo dentro de si. Ela não queria causar problemas, mas parecia que tudo o que fazia tinha implicações maiores do que conseguia entender. Olhando para o chão, sentiu-se pequena diante de todas essas expectativas.
— Me desculpe, mãe... — respondeu baixinho, um nó se formando em sua garganta. — Gustav é o meu primeiro amigo desde que vim para a capital. Neste breve momento que conversamos, percebi que ele é engraçado e me entende bem, sabe?
Ela mal conseguiu segurar as lágrimas que ameaçavam surgir, sua voz vacilante e o olhar fixo no chão revelavam o quão perdida se sentia.
A Duquesa observou a filha com uma mistura de preocupação e ternura. Embora soubesse como o futuro poderia ser cruel, ela não queria sufocar a alegria momentânea que Karoll parecia ter encontrado.
— Tudo bem então. Você pode conversar ou mandar cartas para seus amigos, mas sem que seu pai ou mais ninguém saiba, ouviu?
Karoll levantou os olhos rapidamente, surpresa pela resposta da mãe. Um sorriso, ainda tímido, iluminou seu rosto, e ela se inclinou para dar um beijo na bochecha da mãe, sentindo uma onda de alívio.
— Obrigada mesmo, mamãe — sussurrou, tentando esconder o sorriso genuíno. Mas a curiosidade logo a tomou, e ela olhou ao redor, notando os rostos tensos dos nobres, a atmosfera do salão, de repente, parecia pesada. — Mas... por que saímos correndo daquele jeito? E por que todos no salão estão com uma expressão preocupada? Aconteceu algo com o príncipe Gilbert?
O rosto da Duquesa mudou levemente, a sombra de preocupação passando por seus olhos. Ela hesitou por um breve momento antes de responder, como se não quisesse alarmar a filha.
— Esqueci de te contar... O imperador desmaiou no meio do salão — disse a Duquesa em um tom mais grave, a seriedade das palavras ecoando entre elas. — Servos e médicos entraram para ajudar, e seu pai foi junto para ver o que aconteceu. Ele está nos esperando na carruagem neste momento. Não precisa se despedir do príncipe, pois ele já se retirou.
O coração de Karoll gelou, uma onda de choque percorrendo seu corpo. Ela ficou parada por um momento, assimilando as palavras da mãe. O imperador? Desmaiado? O medo e a ansiedade tomaram conta dela, suas mãos começaram a tremer levemente.
Sem dizer mais nada, ela seguiu a mãe em direção à carruagem, o som dos seus passos ecoando no grande salão, enquanto o mundo ao redor parecia subitamente muito maior e mais perigoso do que antes.
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Na carruagem...
O pai de Karoll a observa com um sorriso cheio de orgulho, os olhos brilhando como se ainda a visse pequena.
- Você estava linda hoje, minha filha... - diz ele, com a voz embargada. - Quase chorei. Parece que foi ontem que eu te carregava no colo.
Karoll encontra o olhar carinhoso do pai e sente um calor familiar no peito, mas também uma pontada de melancolia.
- Obrigada, pai... Mas você sabe que não gosto quando me chama assim. "Bebezinha" já não combina mais comigo - diz ela, tentando conter a emoção.
- Ah, mas você vive dizendo isso... - comenta a Duquesa, ajeitando o vestido com delicadeza. - Ainda tem só um décimo de vida. É uma criança, sim.
Karoll engole em seco, sentindo o peso daquela verdade.
- É... você tem razão - murmura, e seu sorriso vai se desfazendo aos poucos. - Pai... eu fiquei preocupada com o imperador. Não consegui vê-lo, mas a mamãe comentou que ele desmaiou no meio do banquete. Ele está melhor?
As palavras escapam antes que ela perceba, sua voz levemente trêmula.
- Bom... o imperador já não é jovem, você sabe. A idade cobra o preço - responde o Duque, suspirando fundo. - Quando fui ao quarto com a imperatriz, ele estava tossindo sangue e se contorcendo de dor no peito. Gritava... gritava muito. E só chamava pelo nome de uma antiga concubina dele. Foi uma cena horrível.
Denarius olha nos olhos de Karoll com seriedade, compartilhando o peso da preocupação.
Ao ouvir aquilo, a pequena lady sente um arrepio subir pela espinha. O peito se aperta, sufocado pela incerteza e pelo medo do que está por vir. A ideia de perder o imperador - e com ele a estabilidade de tudo o que conhecia - a faz estremecer.
- Então... você está dizendo que o imperador está morrendo... e que eu vou ter que me casar com um príncipe mimado que vive chorando pelos cantos? - a voz de Karoll treme, carregada de desespero. As lágrimas já ardem nos olhos, mas ela se recusa a deixá-las cair. - Por que não posso simplesmente herdar o seu título, papai?
Denarius abaixa o olhar por um instante, como se aquela pergunta o atravessasse. Quando finalmente fala, sua voz é baixa, mas firme:
- Porque esse acordo foi selado desde seu nascimento. Eu não tinha escolha. O imperador... é o meu melhor amigo. E eu devo isso a ele.
Karoll se encolhe, como se as palavras do pai a golpeassem de verdade. O coração lateja com uma raiva contida, um sentimento de traição que cresce dentro dela.
- Então é isso? Seu melhor amigo vale mais do que sua filha? A sua única filha?
Denarius cerra os punhos, e por um instante parece não saber se grita ou chora. Ele inspira fundo e encara Karoll com uma expressão carregada.
- Sim, ele vale. Porque se não fosse por ele, talvez você nem estivesse aqui. Você foi um milagre nas nossas vidas, Karoll... Depois de tantas perdas, de tantos anos sem esperança, você nasceu. Mas até milagres carregam responsabilidades. E a sua é essa.
As palavras pairam no ar como lâminas. Karoll não responde. Apenas abaixa a cabeça, como se algo dentro dela tivesse quebrado.
A carruagem segue em silêncio até a mansão do Duque, mas ali dentro, não há mais espaço para palavras. Apenas o peso do que foi dito - e do que não pode ser desfeito.
...⚜🔅⚜...
Na manhã seguinte, Karoll foi despertada pelas servas antes mesmo de o sol subir por completo. O quarto ainda estava mergulhado em penumbra, mas a luz pálida do amanhecer já esgueirava pelas frestas da janela. Ela se mexeu com preguiça entre os lençóis, ainda agarrada ao travesseiro, com os olhos pesados e a mente turva dos acontecimentos da noite anterior.
Uma das servas mais velhas se aproximou em silêncio. Tinha o rosto sério e gentil de quem cuidava dela desde pequena, e sua voz saiu num sussurro conspiratório, como se temesse que alguém pudesse ouvir:
- Minha senhora... chegou esta manhã uma carta. É do Barão Gustav Elenorv. Muito estranho... achei melhor entregar direto à vossa alteza.
Karoll piscou algumas vezes, sem entender de imediato. O nome soava distante e familiar ao mesmo tempo. Gustav. O menino dos olhos brilhantes que tinha aparecido de repente em meio ao estresse do banquete, que falava de um jeito diferente, e que a fizera rir quando tudo parecia estar desmoronando.
Seu coração acelerou. Uma carta dele?
Ela se sentou depressa na cama, ainda com o cabelo bagunçado e a camisola amarrotada, e estendeu as mãos trêmulas. A serva lhe entregou o envelope com cuidado, o papel grosso e o selo de cera escura parecendo sérios demais para algo vindo de outro garoto.
Karoll segurou a carta contra o peito por um instante. Não sabia exatamente por quê. Talvez fosse medo, talvez fosse só o alívio de pensar em outra coisa que não fosse o imperador, ou o destino que diziam já estar traçado para ela. Naquele pequeno objeto havia mistério, e ela era apenas uma menina com medo do que não entendia - mas também curiosa demais para não descobrir.
Respirou fundo, tentando conter o tremor nas mãos, e levou os dedos até o selo.
"Minha cara amiga, Lady Karoll Sentiny. Não deu para nos despedir apropriadamente ontem do baile imperial, então queria que aceitasse as minhas humildes desculpas. Conhecer-te ontem foi a única coisa boa que aconteceu comigo durante o dia inteiro. Adorei também conhecer o outro lado da 'futura imperatriz', séria e forte, um lado fofo, engraçado e bondoso.
Adoraria que nos encontrássemos novamente, mas acho que isso manchará sua reputação. Espero realmente que no futuro nos veremos novamente.
De seu belo amigo, Gustav Elenorv."
Terminando de ler a carta, Karoll dá um pequeno sorriso no canto de sua boca, um lampejo de alegria surgindo em meio à tempestade emocional que a assola. Ela se senta em sua mesa para escrever uma resposta, a pena tremendo em suas mãos enquanto ela luta para encontrar as palavras certas.
"Fiquei muito feliz em receber uma carta sua, meu 'belo' amigo Gustav. Suponho que é muito novo para ter um ego assim. Adoraria também saber mais de você, mas como mencionou, vai ser difícil nos encontrarmos novamente. Podemos combinar isso no próximo baile que acontecerá, se você puder comparecer.
De sua bela amiga, Karoll."
Depois de envelopar a sua carta, Karoll chama sua serva, pedindo para entregar a carta ao Barão sem que ninguém saiba.
...⚜🔅⚜...
Depois de duas estações se passarem...
Na propriedade do Barão Elenorv, os dias pareciam longos e pesados para Gustav. Apesar de ser um jovem cheio de energia, ele não tinha permissão para sair e aproveitar o sol ou os jardins. Seus dias eram divididos entre os bailes formais e a rígida academia imperial. Ainda assim, nas sombras de sua vida controlada, ele encontrava pequenas brechas para se sentir vivo. Eram as saídas secretas que faziam seu coração bater mais rápido - momentos em que escapava para entregar e receber cartas de Karoll.
Essas cartas se tornaram a essência de suas alegrias. Depois da primeira troca, os dois se comunicavam com frequência. Cada carta era um pedaço de uma conversa que nunca terminava, sempre com uma nova pergunta ou uma resposta inesperada. Com o tempo, os encontros em bailes foram seguidos por combinações de encontros secretos, onde podiam ser apenas dois jovens, livres das correntes da nobreza.
Certa vez, durante um desses encontros às escondidas, decidiram explorar o centro da capital em um dia de festival, algo inédito para ambos.
A cidade pulsava com vida.
Os cheiros doces de maçãs caramelizadas e tortas recém-assadas enchiam o ar. Músicos de rua tocavam melodias alegres enquanto malabaristas e artistas encantavam as multidões com suas habilidades. Karoll e Gustav, vestidos com trajes simples e discretos, como se fossem plebeus, misturavam-se entre os cidadãos comuns.
Os olhos de Gustav brilhavam. Ele parecia um menino vendo o mundo pela primeira vez, seus passos ágeis, quase ansiosos. Cada novo detalhe capturava sua atenção: as luzes coloridas que adornavam as ruas, o som rítmico dos tambores à distância, o riso das pessoas ao seu redor.
- Nossa, qual é o motivo de toda essa animação? Parece que nunca viu um festival antes... - provocou Karoll, com um sorriso malicioso dançando em seus lábios.
Gustav parou abruptamente, constrangido. Ele baixou o olhar, coçando a nuca, suas bochechas corando de leve.
- Bom, na verdade... eu nunca vi mesmo - respondeu ele com um sorriso envergonhado, tentando disfarçar sua timidez.
Karoll, percebendo o desconforto de Gustav, mudou de assunto rapidamente, os olhos brilhando de excitação ao ver algo à frente.
- Olha aquilo! Aquele cara acabou de soprar fogo do nada! Vamos, quero ver de perto! - exclamou ela, agarrando a manga da camisa de Gustav com gentileza e o puxando pela multidão, como uma criança curiosa.
Eles se infiltraram no mar de pessoas, rindo e tropeçando juntos, enquanto os sons e cores do festival os envolviam. O mundo ao redor deles parecia desaparecer conforme o dia se transformava em noite. O calor das tochas e o brilho das lanternas criavam um ambiente mágico, onde os rostos iluminados das pessoas ao redor pareciam tão distantes quanto as estrelas.
Quando a noite finalmente caiu, o coração da capital estava tomado por um grupo de músicos que tocavam na praça central, e as pessoas se moviam ao som de uma melodia doce e contagiante. Karoll e Gustav observavam de longe, lado a lado, sentindo o vento leve e fresco da noite passar por seus rostos.
Gustav, com uma expressão séria, olhou para Karoll, uma determinação suave em seus olhos.
- Quer dançar? - perguntou ele, estendendo a mão com um sorriso tímido, mas caloroso.
Karoll ficou surpresa por um momento, mas seus lábios logo se curvaram em um sorriso contido. Ela aceitou a mão dele com leveza.
- Claro - respondeu ela, com um brilho travesso no olhar.
Gustav a puxou delicadamente, sua mão pousando na cintura dela com cuidado, como se estivesse temeroso de quebrar algo precioso. Eles se aproximaram o suficiente para que suas respirações se misturassem, as bochechas de ambos corando levemente pela proximidade. Os olhos de Karoll observavam cada detalhe de seu rosto, e ela notou o pequeno sorriso que ele tentava disfarçar enquanto conduzia a dança.
A música envolvia os dois, e seus movimentos se sincronizavam com o ritmo da melodia. Eles riam e conversavam enquanto dançavam, esquecendo-se do tempo, dos olhares e das preocupações que sempre os rondavam.
Quando a última música terminou, eles pararam, um diante do outro, ofegantes e sorrindo.
- Uau! Você até que é um bom dançarino, vossa graça.
Gustav sorriu, um pouco mais confiante, e respondeu com uma leve reverência, os olhos azuis brilhando de orgulho.
- Estou apenas seguindo os passos da melhor dançarina da noite - disse ele, inclinando-se para mais perto dela por um breve momento, antes de recuar, tímido.
Foi nesse instante que o céu se iluminou com um espetáculo deslumbrante de fogos de artifício. O som das explosões suaves no ar foi seguido pelas cores vibrantes que dançavam no céu, refletidas nos olhos de Gustav, que olhava para cima, fascinado. Karoll o observou em silêncio, sentindo uma leve pontada de alegria ao vê-lo tão absorto no momento, como se todas as suas preocupações tivessem desaparecido.
A cada explosão, ele sentia uma emoção renovada, maravilhando-se com a beleza efêmera que se desdobrava no céu noturno. Mas quando seus olhos se encontraram com os de Karoll, sua admiração cresceu ainda mais.
O brilho radiante em seu rosto, a expressão de fascínio em seus olhos violetas, tudo isso mexeu com algo dentro de Gustav.
Um calor se espalhou por seu peito enquanto ele observava Karoll, percebendo que compartilhavam aquele momento especial juntos. Por um instante, eles se perderam um no olhar do outro, uma conexão silenciosa que os envolveu na magia da noite.
No entanto, logo se desviaram, suas faces coradas de vergonha diante da intensidade daquele momento. Gustav sentiu seu coração bater mais rápido, uma sensação estranha de excitação misturada com nervosismo. Aquele breve instante de conexão deixou uma marca indelével em sua mente, alimentando uma esperança tímida de algo mais entre eles.
- É... acho que já está tarde, temos que voltar para casa.
- Está certo, tenho que estar em casa antes das luzes vermelhas se acenderem... - concordou Karoll.
Com um aceno de despedida, seguiram caminhos separados, mas o brilho daquela noite permaneceria vivo em suas memórias por muito tempo.
...⚜🔅⚜...
Ao chegar à sua residência, Gustav evitou os portões principais de sua residência como um ladrão voltando ao esconderijo. Entrou pela ala dos servos, os passos ecoando como marteladas pelos corredores vazios. O ar da casa, embora conhecido, parecia agora opressor, e a cada passo seu peito se apertava mais, como se algo invisível o estivesse sufocando.
Quando empurrou a porta do próprio quarto, o mundo pareceu congelar por um segundo.
Sentado em sua cama, como um juiz à espera da confissão de um criminoso, estava o Barão Elenorv. As mãos cruzadas, os olhos frios, e sobre os lençóis, cuidadosamente alinhadas... as cartas. Todas as cartas que Karoll lhe havia enviado.
O coração de Gustav caiu no estômago.
- Você realmente acreditou que poderia esconder encontros secretos com a futura imperatriz? - a voz do Barão cortou o silêncio como uma lâmina, gélida e dura. - Com a noiva do príncipe herdeiro?
Gustav caiu de joelhos sem hesitar, como se suas pernas simplesmente tivessem desistido de sustentá-lo. Lágrimas brotaram dos olhos ainda antes que ele pudesse formar as palavras.
- Por favor, pai... me perdoe! Eu não queria te envergonhar... Eu juro que não há nada desonroso nisso. Nunca mais... nunca mais vou me aproximar dela sem permissão, mas por tudo que é sagrado, não conte ao imperador ou à imperatriz. A culpa é minha. Karoll não merece carregar isso. A reputação dela... - sua voz embargou, e ele se curvou ainda mais, o rosto contra o chão frio. - Eu suplico...
O Barão permaneceu imóvel por um momento, observando o filho com uma expressão indecifrável. Depois, se inclinou para frente, os olhos cintilando com algo que Gustav conhecia bem demais: cálculo.
- Vocês dois se importam um com o outro, hein? - ele perguntou com um tom quase irônico. - Desde quando estão se encontrando?
- Desde o baile de apresentação do príncipe herdeiro - sussurrou Gustav, ainda de joelhos.
O sorriso que surgiu nos lábios do Barão foi tão inesperado quanto inquietante.
- Então são como... amantes. Que precoce. Parece que puxou mesmo a mim. - Ele soltou uma risada baixa, sem humor.
Gustav ergueu a cabeça, revoltado.
- Pai, por Cellestya... isso é um absurdo. Somos apenas crianças! Eu nunca toquei nela, nunca tive sequer um pensamento desrespeitoso. Seria uma traição ao Império, à confiança que ela depositou em mim.
O Barão estreitou os olhos, ainda sorrindo, como quem achava graça na inocência do filho.
- E mesmo assim, continua pensando na honra dela enquanto se encontram escondidos... curioso. - Ele se levantou, começou a andar pelo quarto, como quem vê um tabuleiro de xadrez se formar diante dos olhos. - Sabe, essa relação pode não ser um escândalo... mas uma oportunidade. Ela está crescendo cercada por víboras da corte. Se conseguir conquistar a confiança dela de verdade, fazê-la se apaixonar... pode convencê-la a colocar nosso nome nas graças do trono. O imperador escutaria. E quem sabe... no futuro, você não se torna o braço direito dele. Ou mais.
Gustav levantou-se com um salto, como se as palavras do pai tivessem lhe atingido com violência. Seus olhos estavam úmidos, mas agora em chamas.
- Você é um miserável! - gritou, a voz tremendo de raiva. - Quer me transformar num manipulador? Usar a Karoll como uma escada?! Ela é minha amiga, confia em mim... E eu nunca - nunca - a trairia desse jeito! Prefiro ser exilado, virar um mendigo no fim do mundo, do que olhar nos olhos dela com mentira.
O silêncio que seguiu foi pesado como pedra. O Barão apenas o encarava. Mas Gustav não recuou. Pela primeira vez, seu coração batia mais forte que o medo.
O Barão arregalou os olhos, chocado com a súbita explosão de fúria do filho. Antes que pudesse recuar, Gustav já havia avançado, suas mãos tremendo ao envolverem o pescoço do pai. Os dedos se fecharam com força, o ódio queimando em seus olhos como brasas vivas.
- Mas o que...?! - o Barão engasgou, tentando puxar o ar. - De onde veio essa força...?
A surpresa deu lugar a um sorriso debochado, mesmo com a respiração falha.
- Então é isso... você se apaixonou... está perdendo o juízo por causa de uma garota.
Foi como se essas palavras o quebrassem de dentro pra fora. Gustav recuou num sobressalto, como se tivesse acordado de um transe terrível. Soltou o pai de imediato, os olhos arregalados ao perceber o que acabara de fazer.
- Eu... eu não... - murmurou, mas não teve tempo para terminar.
O Barão, com o orgulho ferido e a raiva pulsando nas veias, revidou com brutalidade. Um soco seco atingiu o estômago de Gustav, que caiu de joelhos com um gemido abafado, o ar esvaindo-se de seus pulmões. Antes que pudesse se erguer, o pai o golpeou novamente - um chute, outro soco - a fúria se revelando em cada impacto cruel, sem piedade.
- Você acha que pode levantar a mão contra mim, seu ingrato?! - o Barão rugiu, golpeando-o com mais força. - Espero que aprenda a respeitar quem te deu a vida!
Gustav se encolheu no chão, os braços protegendo a cabeça, o rosto sujo de poeira e lágrimas. Sua respiração era curta, trêmula, enquanto a dor física se misturava com uma vergonha corrosiva.
- Me perdoe, pai... - ele murmurou, a voz embargada. - Eu perdi o controle. Nunca mais... nunca mais farei isso de novo...
- Tanto faz! - rosnou o Barão, ajeitando as vestes, ainda ofegante. - Sua punição será a guerra. Daqui a um mês, você estará ao lado do príncipe herdeiro no campo de batalha. E até lá, vai treinar como nunca antes. Vai arriscar sua vida por ele, conquistar sua confiança, e provar que ainda serve para algo!
Ele cuspiu as últimas palavras com desprezo antes de sair, batendo a porta com força.
O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor. A respiração de Gustav era um sussurro entrecortado pelo choro contido. Aos poucos, a dor física se transformou em algo pior: uma tempestade dentro de si.
E então, sem aviso, ele explodiu.
Gustav se ergueu cambaleante e começou a destruir tudo o que havia ao seu redor. A madeira estalava, o vidro se despedaçava, os livros rasgados voavam como folhas ao vento. Cada objeto que caía era um grito - um grito que ele não conseguia soltar.
Quando não restava mais nada a quebrar, ele tombou ao lado da janela, os punhos sangrando, o peito arfando de angústia. A lua brilhava lá fora, fria, alheia à sua dor. Sua luz pálida banhava o quarto destruído como um julgamento silencioso.
E, mesmo assim, no meio da dor, foi Karoll que lhe veio à mente.
Seu sorriso. Seu jeito espontâneo, sincero. A lembrança dela era como uma ferida aberta, que latejava com a ausência.
As lágrimas voltaram, agora mais pesadas, mais silenciosas. Ele chorou até que seus olhos ardessem, até que o tempo deixasse de fazer sentido.
Chorou por ela. Por si mesmo. Por um futuro que talvez nunca chegasse.
...⚜🔅⚜...
Com o passar de um mês, Karoll começou a se inquietar. Nenhuma carta de Gustav havia chegado. Nenhuma palavra, nenhum sinal. Temia que alguém tivesse descoberto seus encontros secretos e, em silêncio, encerrado aquilo. Por cautela - ou por medo da verdade -, ela também deixou de escrever.
Então, chegou o dia da partida do príncipe para sua primeira guerra. Como ditava a tradição, a noiva deveria se despedir de seu futuro marido.
- Filha, você pegou o lenço?
- Peguei, pai. Afinal, estou indo só por ele, não é mesmo? - respondeu Karoll, com um toque ácido na voz.
- Hoje, você precisa agir como se gostasse do príncipe. Ninguém pode suspeitar que a relação de vocês é... complicada.
- Eu sei. Só queria voltar logo para casa, para o sul... Depois que terminarmos as coisas aqui na capital, podemos voltar?
O Duque sentiu pena de sua filha. Tudo o que desejava era que ela encontrasse a felicidade.
- Eu prometo, Karoll! Vamos voltar para casa ainda nesta primavera!
A chegada ao castelo foi marcada por uma multidão em prantos. Cavaleiros se despediam de suas famílias, mulheres seguravam filhos pequenos com olhos marejados, e o som abafado das armaduras misturava-se ao lamento do povo. Karoll detestava aquela atmosfera - aquele cheiro de adeus.
Ela desceu as escadas com um pouco de vergonha até chegar ao portão principal do castelo, onde Gilbert a esperava.
Lá estava ele: usando uma armadura dourada com detalhes prateados que parecia grande demais para seu corpo esguio de menino. Tinha as mãos apertadas ao lado do corpo e os pés inquietos, como se tentasse manter a compostura que aprendera há pouco tempo.
- Saudações, príncipe herdeiro do Império, Gilbert Quátez. Estou bastante triste com a sua partida - disse Karoll, mantendo o tom formal, embora um tanto desconfortável.
Gilbert forçou um sorriso e respondeu com a voz um pouco trêmula:
- A... honra é minha, Duquesa Karoll. Eu... também estou triste. Quer dizer, por não termos... nos conhecido melhor. Desde aquele dia. - Ele desviou os olhos por um instante, pigarreando nervosamente antes de continuar: - Mas... quando eu voltar da guerra... eu queria... marcar mais encontros com você. Pra gente se conhecer. Melhor.
Karoll piscou, um pouco surpresa com a tentativa desajeitada dele. Era visível que o discurso fora ensaiado - talvez até decorado - mas havia sinceridade por trás das palavras. Ele estava tentando.
Ela então estendeu um pequeno lenço com o símbolo imperial bordado.
- Fiz este lenço para você. Leve consigo. Para não se esquecer de mim.
Gilbert pegou o lenço com cuidado, quase hesitante, como se temesse amassá-lo. Enfiou-o com delicadeza no bolso da armadura, e por um momento seus olhos se fixaram no chão, antes de erguer o olhar de novo.
- O-obrigado. Eu... eu não vou esquecer. Da sua... da sua gentileza.
O silêncio entre eles pesou por um instante. Então, Gilbert, meio sem jeito, se inclinou rápido e depositou um beijo na bochecha de Karoll. Ela ficou paralisada, surpresa com o gesto - e o rubor em seu rosto denunciava a vergonha. A multidão pareceu prender a respiração por um momento.
Karoll recuou um passo, tocando a bochecha e murmurou:
- Espero que volte em segurança, Vossa Alteza Imperial.
Gilbert sorriu de novo e subiu em seu cavalo, dando um último olhar para trás.
Karoll o acompanhou com os olhos... até notar, ao lado do príncipe, uma figura que fez seu coração parar por um instante. Gustav.
Ali, montado e pronto para partir, ele também cavalgaria para o front. Sem cartas. Sem explicações. Apenas distância.
Foi só então que ela entendeu: algo tinha acontecido. E só descobriria o quê se ele voltasse.
A guerra levaria o príncipe. Levaria Gustav. Levaria também os últimos traços da infância.
Nos dias que se seguiram, Karoll passou a viver com uma única esperança no peito: que ele voltasse. Que ambos voltassem. E que, talvez, não tivessem mudado tanto ao longo do caminho.
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