MARIANA
Bebeu mais um gole de café e circulou o último anúncio nos classificados do jornal. A vaga era para empregada doméstica e, diferente das outras ofertas, aquela não exigia experiência prévia, nem um mínimo de idade, apenas informava que a pessoa deveria dormir no local de trabalho com uma folga por quinzena, além disso o salário era mais do que ela precisava para sobreviver no mês.
Olhou para o relógio no pulso e cogitou se seria adequado ir até a casa do anúncio naquela hora, quase 17:00. Lembrou que aquele café foi comprado com as últimas moedas que tinha, o quarto da pensão em que ela estava só havia sido pago até aquela noite, o desespero tomava conta dela, precisava de um emprego o mais rápido possível.
O endereço era próximo da cafeteria, então não custava nada tentar. Com um suspiro de cansaço, Mariana levantou-se da cadeira, pegou a bolsa e saiu. Tinha começado a procurar emprego às 08:00 da manhã, sentia-se desanimada e cansada, recebeu respostas negativas em todos os locais que visitou, tinha tentado todo tipo de vaga: secretária, auxiliar de escritório, empregada doméstica… mas parecia que ela não era adequada para nada.
A jovem moça de 28 anos não tinha experiência no mercado de trabalho, apesar de ter formação técnica em enfermagem. Mas durante toda a vida só se dedicou a serviços domésticos, nada mais. A morte dos pais em um trágico acidente, quando ela estava no ensino médio, mudou o rumo das coisas.
Mariana era a mais nova de três irmãos. O mais velho saíra de casa muito cedo, em busca de uma carreira artística e se falavam muito pouco, enquanto sua outra irmã já tinha um emprego e era noiva de um rapaz da vizinhança. Quando os dois se casaram, ela foi morar com o jovem casal e, para “pagar” sua estadia na casa, fazia todos os serviços domésticos sem reclamar. Depois do nascimento dos sobrinhos, ela se dividia entre os cuidados com as crianças e os afazeres da casa.
Aquela vida simples era bastante para Mariana, não queria nada além de estar ali com a família, mas de repente tudo mudou. Em uma noite em que dormia na cama da sobrinha mais nova, o cunhado apareceu e tentou violentá-la. O homem nem mesmo se importou se a filha dormia ao lado da tia, ele tocou as partes íntimas de Mariana como se tivesse direito sobre ela. A moça tentou afastá-lo e chutá-lo, mas ele só soltou a cunhada quando a esposa entrou no quarto e o.pegou em flagrante.
A irmã nem quis ouvir Mariana, puxou a moça pelos cabelos e a expulsou de casa, afirmando que ela era uma traidora e uma prostituta.
Sentiu que as lágrimas que vinha reprimindo há alguns dias começavam a fugir dos olhos, por isso respirou fundo, limpou o rosto e seguiu. Não ia permitir que a dor da injustiça que sofreu a afetasse. Não deixaria que a tristeza tomasse conta dela, precisava do emprego, era imprescindível que estivesse bem quando chegasse ao local da vaga.
Poucos minutos depois parou em frente ao número 2708, um enorme portão de ferro ladeava o jardim da casa. A moça apertou a campainha e esperou. Alguns minutos depois, uma senhora rechonchuda de meia-idade, de cabelos cobreados presos em um rabo de cavalo, que trajava um uniforme branco, veio em sua direção, parecendo apressada.
- Pois não? – a mulher falou educadamente, a senhora parecia aflita, provavelmente não era a melhor hora para ir atrás daquela vaga.
- E-eu vim pela vaga de emprego. – gaguejou e mostrou o jornal – Mas se não for um bom momento...
- Não, querida, entre. – a mulher abriu o portão e permitiu que a moça entrasse – Nós estamos um pouco atarefados…
Então a mulher, que se identificou como Marta, a governanta da casa, explicou que o patrão, Sr. Eduardo, chegara do hospital há poucos dias, depois de algum tempo internado.
Ela explicou que essa era a razão da vaga, a pessoa ficaria responsável por ajudar o homem, servi-lo e cuidar da limpeza dos cômodos em que ele ficava.
As duas entraram numa cozinha enorme, decorada em detalhes escuros e com os aparelhos de última geração. A mulher falava sem parar e explicava que a casa na verdade era uma Mansão de três andares. O patrão ocupava o terceiro andar que tinha a suíte dele, um escritório, além de uma pequena cozinha e, claro, o quarto que a nova empregada ocuparia. O andar de baixo e o intermediário eram ocupados apenas pelos pais do homem, mas estes já eram servidos pelos outros empregados.
A mulher não disse quantos empregados havia ali, mas a moça percebeu que precisaria de muita gente para manter aquela casa limpa. Marta não pediu referências, nem currículo, apenas perguntou quando Mariana poderia começar. Não sabia se aquilo era bom ou mau sinal, mas não estava em condições de desperdiçar um trabalho.
-Bem... – começou, sem saber se tinha entendido o que a governanta dissera.
- Eu sei que parece tudo apressado, mas estamos precisando de uma pessoa com urgência. Você acha que pode fazer tudo, querida? – a mulher perguntou, parecendo esperançosa.
- Claro que sim, senhora. - disse, embora tivesse receio de decepcionar a mulher e, claro, o homem que seria seu patrão.
- Então não vejo razão para que não comece imediatamente. – a mulher mais velha afirmou, sorrindo.
- A-agora? – perguntou confusa.
- Sim. Você tem filhos ou marido? - a mulher perguntou, preocupada – Talvez esse seja um problema.
- Não. Eu... – ela respirou fundo – Eu estou sozinha no mundo, mas não trouxe roupa, nem nada mais. Preciso ir até... – ela suspirou – até onde estou hospedada e pegar minhas coisas.
- Tudo bem. Posso pedir ao Pedro para ir até lá com você. – vendo que a moça não sabia quem era o homem, ela sorriu e completou – Ele é meu marido, é o motorista da casa.
- Ah, tudo bem. – Mariana disse, embora não estivesse menos nervosa. Aquilo tudo parecia ser sorte demais para ela.
A grande verdade sobre Mariana era essa: ela não tinha sorte, em nada... há poucas horas estava sem esperanças e, de repente, tudo parecia dar certo. Era estranho. MUITO estranho.
Ainda sentindo o corpo anestesiado pela sorte repentina, entrou no carro preto que esperava por ela e encontrou um homem de cabelos grisalhos, vestindo roupas formais, ao volante.
- Boa tarde. – disse, enquanto tentava se acomodar no banco de couro de cor creme.
- Boa tarde, senhorita. – o homem falou – Para onde vamos?
A moça explicou o caminho para ele e durante o percurso os dois conversavam sobre o patrão. Na verdade, o homem, sr. Pedro, era quem falava, explicou que aquela família era muito rica e importante, o patrão mais velho, Geraldo, era dono de indústria têxtil, e o mais novo, Eduardo, era o braço direito do pai, até o dia em que sofreu um acidente.
- Infelizmente, o sr. Eduardo sofreu um acidente terrível. – lamentou – Uma fatalidade. - o homem respirou fundo e continuou - A esposa e o irmão do patrão morreram, enquanto ele ficou preso àquela cadeira de rodas.
O motorista, que parecia gostar muito de contar histórias trágicas, falava que tudo era pior porque a moça estava grávida, então a situação se tornava mais triste.
Mariana ainda nem conhecia o tal homem, mas ficou comovida com a história. Ela sofrera perdas suficientes para entender a dor.
- Sinto muito por tudo isso. - disse.
- Nós também, menina. Ele passou meses internado, entre a vida e a morte. Voltou do hospital há poucos dias e não parece o mesmo de antes, é ranzinza e quer sempre ficar sozinho. Além disso, a mãe dele… - o homem não completou a frase, deu um suspiro de lamento e continuou - Não fique triste se ele for duro, menina. Ele é como um animal ferido, está acuado, dolorido, mas é uma pessoa maravilhosa.
Mariana não disse nada, de certa forma já estava habituada a ser tratada com dureza, por isso só suspirou e pediu forças aos céus para suportar mais isso, precisava daquele emprego e estava disposta a aguentar o que fosse preciso para mantê-lo.
EDUARDO
Os olhos azuis frios observavam o pátio da casa. Há muito tempo não olhava aquela paisagem que conhecia desde que nascera. Quando ele e o irmão, Edgar, eram crianças, corriam pelo pátio, subiam nas árvores, se escondiam dos pais para não serem punidos por alguma travessura… aquele lugar lembrava sua infância. E agora também lhe relembrava sua maior dor...
O pátio era grande e arborizado. A mãe sempre cuidou bem das plantas, principalmente do canteiro de flores, mas agora não havia mais cuidado ali. Tudo parecia sem vida e sem cor, os galhos não eram mais aparados, as folhas secas preenchiam o chão todo. A alegria daquele lugar não existia mais, assim como ele, que ocupava um corpo sem espírito.
Lembrou do dia em que ele, Rafaella, sua esposa e Edgar estavam ali, discutindo. Eduardo acabara de descobrir que a esposa, sua linda e amada esposa, o traíra por anos com o irmão e que aquele bebê que ela trazia no ventre não era seu filho.
A dor que surgiu em seu peito fez Eduardo desferir um soco no rosto de Edgar. Ele e o irmão sempre foram unidos, melhores amigos, mas naquele momento tudo mudara. Rafaella falava, mas o rapaz não conseguia compreender. As duas pessoas que ele mais amava tinham lhe roubado a confiança. Só isso importava, nada mais.
A mãe gritava para impedir a briga entre os filhos, a mulher era amparada pelos empregados que viam a cena do jardim, sem realmente saber a razão da briga entre os irmãos.
Ele desferia socos no rosto do irmão e também era golpeado, mas não sentia dor, seu objetivo era acabar com o traidor, enquanto a esposa tentava proteger o amante com o próprio corpo.
Rafaella dizia que ela e Edgar iam embora para o exterior, eles iam para longe e lá criariam o filho. Tudo que ela pedia era que Eduardo não dificultasse o processo de divórcio. Aquilo foi o bastante. Ele não queria ouvir mais nada, nem queria ver a cara dos dois traidores, por isso correu até o carro que estava estacionado ali no pátio e saiu em alta velocidade, sem um destino certo.
Viu o carro do irmão do lado do seu, Edgar sinalizava para que ele parasse, mas Eduardo ignorou. Afundou o pé no acelerador, tudo que queria era fugir dos dois e da realidade. Ele viu o caminhão vindo do lado contrário, então fechou os olhos, acelerou e foi na mesma direção, um barulho forte e a escuridão fria lhe envolveu, cessando a dor que sentia naquele momento.
Quando acordou no hospital foi informado pela mãe, aos gritos, que Edgar e Rafaella morreram no local do acidente, que ele era o culpado de tudo e que Deus o castigasse para sempre. A mulher amaldiçoou o filho inúmeras vezes e tentou agredi-lo, mas foi contida pelo marido. A mãe o odiava, Eduardo era o responsável pela morte do irmão, o filho preferido.
Sempre soube que Edgar, o caçula era o preferido, afinal tudo que ele fazia de errado era perdoado, assim o irmão se tornou um adulto mimado. Mas nunca imaginou que a mãe pudesse odiá-lo tanto.
Agora Eduardo estava ali, preso à cadeira de rodas, sem os movimentos dos membros inferiores, confinado ao terceiro andar da casa, pois a mãe não suportava vê-lo ou lembrar da existência do filho. Ela exigiu que Eduardo ficasse no último andar, sozinho, sem nenhum contato com ela.
Ela repetira que não tinha mais filho e desejou sua morte em todas as ocasiões que esteve no hospital. Então ele se convenceu que teria sido melhor se tivesse morrido ao invés do irmão, todos estariam bem e ele não sentiria mais aquela dor que queimava dentro de si.
MARIANA
Voltaram para a mansão por volta das sete horas da noite. Mariana tinha apenas uma pequena mala no quarto da pensão, nada mais além disso. Quando ela e o motorista retornaram encontraram Marta esperando.
- Vamos, menina. Vou mostrar seu quarto e o terceiro andar. - a mulher disse, apressada. Mariana pensou que a governanta estivesse aflita, mas suspeitava que aquele era o seu jeito natural, ela parecia sempre estar com pressa.
A mulher mais velha levou a moça até um pequeno elevador que havia na lateral da cozinha, as duas entraram e a governanta apertou o número três no painel.
- Você pode usar esse elevador ou as escadas, o que preferir. - explicou – Vou mostrar tudo para você.
Poucos segundos depois, a porta abriu e Mariana viu um cômodo muito amplo, todo decorado em tons escuros.
- Aqui é a sala de estar. - Marta apontou para o cômodo à esquerda. Era uma sala ampla, com um sofá cinza, uma televisão na parede e uma estante com alguns objetos de decoração. Tudo era impessoal, nada estava fora do lugar e nem tinha rastros de que estava habitado, não havia fotos nem quadros que humanizassem a paisagem.
As duas andaram até o corredor e a mulher mais velha abriu a primeira porta.
- Aqui é a cozinha. - o cômodo era uma réplica da cozinha que Mariana já conhecia, tons escuros e objetos de tecnologia avançada adornavam o espaço. A mulher mais velha abriu os armários, mostrando os utensílios e mantimentos que havia ali.
Saíram para o corredor novamente e entraram em outra porta que levava ao quarto de Mariana, um cômodo mais simples, com uma cama de casal, um guarda-roupa, uma penteadeira e uma escrivaninha.
- Pode deixar suas coisas aí, querida. - Marta falou, sorrindo – Venha aqui. - disse enquanto ia até uma porta no canto do quarto – Aqui é o seu banheiro particular. - o pequeno cômodo era simples, mas tinha tudo que a moça precisava.
As duas voltaram para o corredor, mas não avançaram. Marta tocou o braço da moça e disse:
- Ali é o escritório e o quarto do Sr. Eduardo. - a governanta apontou e de repente, sem explicação, Mariana se sentiu nervosa, não sabia o que esperar daquele homem depois de tudo que ouvira sobre ele - Acredito que você não vai vê-lo...
Antes que a mulher pudesse terminar a frase, a porta foi aberta e de lá saiu um homem numa cadeira de rodas automática, ele não notara a presença das duas, por isso Mariana aproveitou para examiná-lo.
Era um homem de cabelos castanho-claros lisos, que pareciam precisar de um corte, pois caíam pelo rosto dele. Ele parecia alto e magro, as pernas pareciam grandes demais para aquela cadeira. Vestia um conjunto de moletom de cor preta e os pés estavam calçados com um tênis também preto. Ele exalava uma aura de autoridade, raiva e melancolia.
Quando os olhos azuis frios dele se fixaram nela, Mariana quis se esconder atrás da governanta. Era um olhar azul frio e perfurante, nada acolhedor, que lhe causou calafrios.
- Boa noite, Sr. Eduardo. - Marta disse numa voz calma – Esta é Mariana, a nova empregada. Ela vai ajudá-lo.
O homem a encarou sem piscar, sem fazer nenhum gesto.
- Eu não preciso de ajuda, Marta. Pode mandá-la embora. - falou enquanto se virava e entrava no quarto novamente.
Mariana fechou os olhos e sentiu o sangue gelando nas veias.
A maré de sorte tinha durado menos que o esperado.
EDUARDO
- Sr. Eduardo, perdão, mas a contratação dela foi uma ordem do seu pai. - Marta disse, calma – O Sr. Geraldo disse que, caso você a despedisse, desconsiderássemos a ordem.
A voz da empregada fez com que Eduardo parasse a cadeira. Ele não se virou para falar com a mulher.
Ele apertou as mãos em punho, tentando conter a raiva que sentia. Não bastava ter sido exilado na própria casa, agora era desautorizado pelo pai.
- Então, além de tudo, também perdi minha autoridade nesta casa. - disse, rilhando os dentes.
- Sr. Eduardo, eu só cumpro as ordens. - a governanta respondeu.
Apesar de tudo que sofrera naqueles meses, não ia discutir com a empregada. A traição, o acidente, não tiraram a sua humanidade totalmente. Eduardo a conhecia desde pequeno, ela fora uma parte importante de sua infância, não era capaz de desrespeitar a mulher que considerava como uma parte da família.
- Marta… - começou, um tom cansado, um pouco áspero.
- Senhor, vamos. - parecia que a mulher não se importava com os protestos dele – Mariana é uma boa moça e está disposta a ajudá-lo no que for preciso. - ela empurrou a cadeira dele para dentro do quarto e fechou a porta – Eu sei que você está triste, menino, todos nós estamos.
Era assim que Marta o tratava, como um menino, mesmo que ele já tivesse 35 anos. Ele sabia que ela o tratava de maneira formal apenas na frente de pessoas estranhas, mas a mulher sempre o tratou com carinho, como se ele fosse filho dela.
Ela era carinhosa com ele, amorosa e paciente, mesmo nos dias que ele se comportava como um garoto birrento.
- Você sabe que nós estamos tristes por você e por eles. - ela falou se referindo a Edgar e Rafaella – Mas a vida continua, menino. Você não pode ficar sozinho aqui, seja menos orgulhoso e aceite a ajuda da moça. E você sabe que precisa de ajuda.
A verdade era que os empregados não sabiam da história completa, ninguém sabia que o filho que a esposa carregava era fruto da traição… todos pensavam que ele estava apenas enlutado pela perda.
- É claro... eu sou um imprestável, mas devo dizer que foram meus queridos pais que me isolaram aqui, Marta. – relembrou, magoado – Minha mãe preferia me ver no túmulo, dentro de um caixão. Eu não preciso de ninguém. - disse, teimoso, afastando-se da mulher.
Não queria que Marta sentisse pena dele, não ia se tornar fraco só porque estava preso àquela cadeira, não queria que ninguém tivesse pena dele.
Sabia que tinha que sofrer, conformar-se com a vida preso à cadeira de rodas, aquele era seu castigo.
Ele ouviu a mulher suspirar, resignada.
- Não seja duro com essa garota, menino. - ela pediu – Lembre-se que ela está aqui apenas para fazer o trabalho dela. E seu pai irá mantê-la aqui de qualquer jeito, é para o seu bem.
Logo em seguida ouviu a porta ser fechada e estava sozinho novamente.
Sabia que Marta tinha razão, mas naqueles dias não agia racionalmente. A raiva era tudo que sentia, era seu alimento dia após dia.
A raiva o tornava forte, ele não chorava, não sentia saudade. Não sentia pena de si mesmo. Apenas raiva, pura e latente.
Se o pai pensava que poderia controlá-lo, estava enganado. Ele não precisava de cuidados, estava aleijado, mas ainda conseguia se virar sozinho. Provaria a todos que estava melhor sem companhia e, se precisasse infernizar a vida daquela moça, ele faria, sem remorso nenhum.
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