Quinze anos atrás.
— Vou me casar! — Olho para minha mãe, esperando sua resposta.
Ela me encara com a boca aberta, incrédula.
— Eu acho que não ouvi direito, Melissa. — Ela fala com aquela cara de quem está tentando controlar seu temperamento.
Meus sinais de alerta soam imediatamente. Conheço o temperamento da mulher em minha frente que, por sinal, é bem diferente do meu.
Ela vai querer explicações para isso e eu não estou preparada para lhe dar o que ela quer agora. Talvez, eu nunca estarei preparada para explicar para alguém porque tomei essa decisão, mas não existe outra saída para mim.
Na verdade, existe, Melissa!
Minha consciência fala. Mas minha consciência ainda é de uma pessoa sonhadora.
Embora os meus sonhos tenham sido esmagados, sendo totalmente invalidados — e, claro, meu lado racional faz questão de esbofetear minha cara para que eu me lembre disso —, sei que há em mim a vontade de voltar atrás, a vontade de correr para ele e contar tudo que ele tem o direito de saber.
No entanto, ele é uma pessoa horrível, um cretino, alguém que nunca mais quero ver na minha frente novamente. Com esse pensamento, digo novamente à minha mãe:
— Eu. Vou. Me. Casar!
Repito pausadamente, sentindo como se as palavras doessem a cada vez que as afirmo em voz alta.
— Você. Não. Vai. Não! — minha mãe repete, usando as mesmas pausas que eu.
Ótimo! Sabia que isso não seria fácil.
Respiro fundo. Preciso manter a calma e parecer segura o bastante com a minha decisão. Coisa que não estou.
— Não é um pedido, mãe. É uma informação. A senhora é minha mãe e precisa estar ciente das decisões que tomo em minha vida, mas isso não é um pedido.
Ela pisca várias vezes. Não sei de onde veio essa coragem de falar assim com ela, porém, ultimamente, eu não tenho sido eu mesma.
— Você só pode estar querendo matar sua mãe do coração! É a única explicação! — ela exclama em resposta. Percebo que seu tom vai de surpresa para raivosa.
Campo minado, Melissa. Cuidado!
— Você nunca teve um namorado antes de Daniel! Faz o quê!? Três semanas que você me apresentou ele!?! Agora você vem com essa de que vai se casar? Você só pode estar louca, menina!
— Eu não estou louca! — respondo, tentando parecer calma enquanto minha mãe tem um ataque de nervos.
Me sinto culpada. Eu não deveria esconder dela as coisas que me aconteceram no último mês. Contudo, só de pensar em lhe falar a verdade me dá um frio na espinha. Se ela acha essa minha decisão uma loucura, não quero nem saber como vai me olhar se souber de todas as coisas que fiz.
Me tornei uma enorme decepção
— Você está grávida? — ela inquire, enquanto analisa meu corpo.
Ora essa, era só o que me faltava…
— Claro que não! — respondo, me sentindo horrorizada. Engulo em seco. De onde ela tirou isso?!?
Ela não pode saber. Não pode. Tenho um acordo com Daniel, meu futuro marido. Um mês. Um mês e abrimos o jogo sobre tudo. Porém, conhecendo a mãe que tenho, isso será um desafio.
Talvez, ela me conheça mais do que imagino.
— Melissa Maria Vasconcelos, olhe nos meus olhos e me diz que não está grávida.
Oh, droga! Ela disse meu nome completo. Agora o pavor toma conta de mim. Tento manter a calma. Qualquer sinal de hesitação e ela pode perceber. A vontade de engolir em seco vem com força. Contenho.
— Eu não estou grávida, mãe! — afirmo, com veemência. Ela me encara com um olhar mortífero.
Seja corajosa!
Minha consciência ordena.
— Então, para quê casar agora? Você ainda é uma menina!
— Já vou fazer dezoito anos daqui a dois dias, por sinal.
— Você poderia ter trinta e eu ainda acharia você jovem demais para prender sua vida a alguém desse jeito.
Bufo. Minha mãe arregala os olhos, assim como eu. Também estou surpresa com minhas atitudes. Se meu pai presenciasse tal ato de minha parte, morreria novamente. Afinal, eu era a filha perfeita. Nunca havia levantado a voz ou bufado, como se as palavras de minha mãe fosse algo inútil e entediante.
Porém, ignorando o sentimento de culpa que me corrói por dentro ao fazer isso com a mulher que me trouxe ao mundo, falo:
— Não preciso saber o que a senhora acha. Sei que é o melhor para mim. E agora, o melhor é me casar com Daniel. É o que quero e é o que vou fazer. Se a senhora não quiser estar do meu lado nesse momento… não posso fazer nada.
Respiro fundo.
Minha garganta se fecha com o olhar magoado de minha mãe, mas sem dar nenhuma hipótese a ela para revidar minhas palavras ou me fazer mudar de ideia, vou para meu quarto e tranco a porta.
Sinto muito, mãe…
Meu coração, já destroçado, se torna ainda mais danificado com a ideia de saber que minhas escolhas podem deixar a pessoa que mais me amou magoada.
Me encosto na porta e deixo meu corpo deslizar na madeira até chegar ao chão. Quero chorar. Chorar até as lágrimas não saírem mais. Chorar até esquecer o que ele me fez.
Eu o odeio com todas as minhas forças.
Como ele pode? Como pode ser capaz de fazer o que fez?
Se não fosse Daniel…
Sei que irei aprender amá-lo, algum dia.
Tudo vai dar certo.
Ao menos, é o que espero…
Mas ele não sai dos meus pensamentos, não importa o que faça. Não consigo esquecê-lo.
Eu o amei!
Ele me usou.
Agora, estou prestes a entregar meu destino ao acaso. Não sei o que virá. Só quero pensar no agora. E o agora me diz para esquecê-lo. O agora me causa náuseas e me mostra que, quando entregamos nosso coração, entre outras coisas, a um canalha, ele pode te decepcionar e parti-lo em mil pedaços.
E foi o que ele fez.
Ele me usou da pior maneira, acabou com minha autoestima e destruiu meus sonhos. Eu jamais esperei que ele pudesse ser tão baixo, nunca irei perdoá-lo.
Thomas, eu te odeio!
Fevereiro de 2018
Eu ainda tento, a todo custo, entender o próximo.
Errar é humano.
Pelo menos, é o que as pessoas costumam dizer. E, embora tenhamos esse costume de dizer que nós, humanos, somos falhos, conviver com a culpa é algo que destrói sua paz dia após dia.
Talvez, tenha sido isso que fez minha vida chegar aonde chegou. Embora eu tenha conseguido encontrar o trabalho que jamais sonhei ter, e que tem sido minha única distração no último ano, me sinto vazia e infeliz.
Eu achei, de verdade, que estava fazendo a coisa certa quando decidi me casar com Daniel. E, por um tempo, tive a plena certeza disso; até ele me mostrar que eu estava totalmente errada.
Por mais que eu tente entender suas falhas, não canso de me perguntar se ele sente alguma culpa. Às vezes, desejo que ele seja assombrado por tal sentimento. E me sinto uma pessoa terrível por querer que ele sofra.
Pelo menos, um pouquinho.
Eu simplesmente fiquei cega por um tempo, a ponto de não perceber que minha vida era uma mentira. E só percebi quando o vi, em plena mesa de seu escritório, tendo relações com outra.
Aquilo doeu. Doeu como uma pancada forte na cabeça onde você fica desorientada, sem entender se o que está vendo na sua frente é real. Eu queria que tudo aquilo tivesse sido um pesadelo.
Infelizmente, eu já havia percebido alguns sinais de que ele era infiel. E o pior de tudo é que consegui fazer algo que eu queria. Com o tempo, aprendi a amá-lo. E com isso, confiei meu coração, meu corpo e todo meu ser a uma pessoa novamente. Então, era mais fácil pensar que os sinais poderiam ser apenas minhas inseguranças fazendo eu acreditar em algo que não existia.
Afinal, minha aparência pode ter deixado um pouco a desejar. Daniel fazia questão de deixar claro que minhas vestes não o agradavam. E minha falta de vaidade o deixava com vergonha de aparecer na mídia comigo ao seu lado.
Apesar de estar com o orgulho ferido, tentei a todo custo seguir em frente. Ainda assim, por mais que eu tentasse esquecer meus sentimentos, eles faziam questão de aparecerem com toda sua força para mostrar-me que ainda estavam ali, vivendo em mim. E, mais uma vez, o destino era cruel comigo.
O jornal do dia, agora em minha mão, mostrava em sua primeira página que o homem que eu aprendi a amar e que foi meu marido por treze anos, agora estava noivo. É claro que teria que ser com aquela com a qual ele fez questão de me trair várias vezes.
Destino, definitivamente, você não gosta de mim.
— Eu pretendia te contar. — Saio dos meus devaneios ao ouvir a voz dele. Só então, percebo que ainda estou parada em frente à minha porta, olhando a foto dele com ela.
Ele está na minha frente, com seu terno preto e caro perfeitamente ajustado em seu corpo, gravata azul, calça e seus belíssimos sapatos sociais; a vaidade em pessoa, o perfeito homem de negócios. O cabelo em um corte baixo e elegante combinando com seu rosto, que ostentava aquela barba por fazer que eu tanto amava. Os olhos azuis, nos quais eu costumava me perder, agora estavam ali me analisando, receosos.
Porém, no meio disso tudo, o que não dá para entender é que ele ainda me olha com carinho. Mesmo depois de um ano separados, ele ainda me olha como se eu fosse sua, mas ele mesmo nunca foi meu; não com exclusividade.
Ele parece cauteloso e dá mais um passo em minha direção, ficando agora próximo o bastante para que eu sinta seu cheiro. Ajeito meus óculos com o dedo indicador em um ato involuntário antes de lhe dirigir a palavra.
— Você não tem que me falar nada, Daniel. Sou apenas a mãe dos seus filhos. E, à propósito, você está atrasado. Eles já foram para a escola — falo friamente.
Ele me olha como um cachorrinho sem dono, como se meu modo de lhe dirigir a palavra o machucasse.
— Eu sei que estou atrasado. Na verdade, vim aqui para falar com você.
— Falar sobre o quê?
— Sobre... o casamento... eu queria me explicar...
— Não tem necessidade disso. Você é livre para seguir com sua vida — falo secamente, tentando a todo custo não desviar o olhar.
Eu não posso demonstrar fraqueza. Não quero que ele saiba o quanto essa notícia me afetou. Ele não tem que ser ciente sobre os meus sentimentos.
— Sou livre, mas não por opção. Largaria tudo e voltaria para você, se me perdoasse — ele diz sério, minha vontade é de rir.
— Por que eu preciso perdoar? Se você fosse feliz comigo, não teria me traído. Então, para quê voltar nisso? Você fez sua escolha e precisa ficar bem com ela. — As palavras saem de mim me causando uma tristeza terrível.
— Melissa! Eu errei feio com você. Sinto tanto a sua falta. Falta da nossa vida, de ver nossos filhos todos os dias. Você me mandou embora, mas eu nunca quis ficar longe de você. — Ele novamente me mostra sua cara de cachorrinho abandonado.
Devo ser muito trouxa por ainda ter vontade de acariciá-lo. Mas não quero mais abrir mão do meu orgulho. Eu perdi muito com tudo isso e o orgulho é tudo o que me resta.
— Eu não quero ouvir suas lamúrias, Daniel. Eu preciso ir trabalhar. E, à propósito, parabéns pelo seu noivado. — Dou um sorriso forçado.
Ele me olha como se eu o tivesse ofendido.
— Tchau, Daniel.
— Melissa...
Percebo que ele não tem pretensão de ir embora. Além disso, eu deveria comer algo antes de ir para o trabalho. Porém, não quero dar qualquer brecha para ele continuar com essa conversa. Então, pego minha bolsa pendurada ao lado da porta, as chaves do meu carro, e saio esbarrando nele de modo brusco.
Pelo menos, ele não tenta me segurar. Vou até meu carro na garagem e, sem olhá-lo novamente, me coloco dentro do veículo.
Ligo o carro. Mas sem conseguir me conter, acabo olhando em sua direção. Ele ainda está parado em frente à minha porta e olhando para mim. Seu semblante é triste, mas não posso me compadecer disso. Ele não merece minha compaixão.
Saio com meu carro em direção ao meu trabalho pouco me importando se o deixei para trás.
Ao parar em um engarrafamento, olho para o relógio no meu pulso esquerdo e deixo um suspiro frustrado sair.
Que ótimo! Vou acabar me atrasando.
Trabalho como programadora na empresa Santa Mônica Studio, uma empresa de jogos localizada em Santa Mônica, na Califórnia. Vim do Brasil há quinze anos junto com Daniel, que na época, era meu marido. Havíamos acabado de nos casar e estávamos felizes por termos a oportunidade dos nossos sonhos, mas toda a felicidade foi, aos poucos, sendo deixada de lado.
Tento espantar o pensamento. Não quero lembrar do meu passado.
Ainda mais hoje, no dia em que o novo sócio da empresa será apresentado para a equipe.
Solto um suspiro em frustração.
Richard, meu chefe e melhor amigo, não vai gostar do meu atraso. E, pior ainda, que eu não comi nada desde que acordei, o que é péssimo para alguém com hipoglicemia.
— Melissa! Já viu a hora? Richard está para me deixar louca do tanto que já perguntou por você! — Gessy, a mais nova programadora da empresa, fala assim que me vê. Largo minha bolsa na partição onde trabalho e me viro para ela.
— Sei que estou atrasada, mas não sobrevivo sem meu capuchino, Gessy. Vou buscá-lo rapidinho e já sigo para a sala de reunião. — Dizendo isso, saio praticamente correndo em direção à máquina de capuchino, que fica do lado oposto à sala para onde eu deveria estar indo.
A empresa onde trabalho está passando por algumas dificuldades e esse novo sócio apareceu, segundo as palavras do meu chefe, como um anjo na vida dele. Então, é de suma importância que eu, a programadora de jogos com maior experiência na empresa, esteja presente para receber essa pessoa.
Pessoa essa que eu não tive tempo de investigar. Aposto que deve ser algum riquinho metido a besta que não sabe nada do mundo dos games. Segundo o meu chefe, ele está só nos ajudando financeiramente. Ao menos, foi o que eu entendi. No entanto, fico na dúvida sobre isso, já que no dia em que houve a reunião onde ele explicou sobre o novo sócio, eu estava praticamente dormindo sentada, depois de passar duas noites em claro desenvolvendo um novo código para nosso próximo projeto.
Assim que vejo que minha caneca está cheia, saio andando às pressas em direção à maldita sala. Porém, um infeliz desastrado acaba esbarrando em mim com força o bastante para me fazer virar a caneca. Mas não, não foi em cima dele que a maldita caneca virou, isso seria muita sorte para mim. E sorte, é algo que faltou na receita que o papai do céu usou na minha composição. A maldita caneca com meu cappuccino, que graças a Deus, não está tão quente, vira sobre minha própria camisa e me deixa ensopada.
O infeliz nem presta atenção e continua andando a passos largos na minha frente. Bufo ao fitar aquela figura masculina de costas.
— Você está cego, seu idiota? Por que não presta atenção por onde anda? Seu troglodita de uma figa! — exclamo irritada, em um tom alto o bastante para que ele possa ouvir. No entanto, falo em português. É uma das coisas boas em ser a única brasileira na empresa. Pelo menos, ele não vai saber que o estou ofendendo.
Olho para minha enorme camisa com estampa do Guns'n Roses, que agora está totalmente encharcada, e sinto vontade de chorar. Ótimo visual para receber o novo sócio pelo qual meu chefe tem esperado todos esses dias.
Parabéns, Melissa! Seu dia está ótimo, começou uma maravilha!
— Eu não estou cego, apenas atrasado. — Fico estática e tenho plena certeza que todo meu sangue se esvai do meu rosto ao ouvir a voz grossa, marcante e máscula falando comigo, em português.
Assim que levanto meu olhar, vejo um belo homem sorrindo de lado para mim. Meu coração vai a mil por hora quando acho que conheço aquele maldito sorriso. No entanto, ele apenas vira as costas e sai logo em seguida.
— Boa sorte para limpar sua camisa, gatinha — ele fala, enquanto continua seu caminho. E eu fico ali feito uma boba, olhando ele tomar distância de mim.
Não pode ser. Tantos países, cidades e empresas nesse mundo e ele tem que vir justo para cá?
Qual é Destino! Você me odeia ou o quê?
Vaidade.
Nunca fui o tipo de garota que se importa muito com a aparência. Prefiro pensar que meu caso não tem solução e estou fadada a parecer essa pessoa desleixada pelo resto da vida. Sempre odiei maquiagens ou qualquer coisa que me fizesse parecer superficial. Roupas confortáveis, que escondem boa parte do meu corpo, sempre foram algo presente em meu guarda-roupa.
Enfim, sou uma mulher de trinta e dois anos que sempre teve seus cuidados de beleza bem limitados. O máximo que fiz foi pintar meu cabelo de loiro. E, raramente, usei maquiagem na minha vida. Às vezes, Daniel pedia para que eu me ajeitasse mais e tentei fazer o que ele queria por algum tempo. Aderi a alguns vestidos e roupas elegantes, mas eu não me sentia bem quando me portava como ele queria. Eu via as fotos de nós dois depois e parecia que aquela mulher que estava ao lado dele não era eu.
— Melissa, você morreu aí dentro? — ouço Gessy batendo na porta do banheiro e respiro pesadamente.
Eu não trouxe outra camisa comigo. E, quando Gessy me viu naquela situação, tratou de me empurrar para o banheiro mais próximo, me jogando uma camiseta branca, regata e decotada. Tão colada no meu corpo que parece mais uma segunda pele do que o tecido de uma vestimenta. Eu simplesmente estou me sentindo nua da cintura para cima.
Gessy é uma programadora de jogos assim como eu, no entanto, ela é novata e eu a auxilio. Ainda estamos nos conhecendo. Então, ela não faz ideia do quanto é difícil para mim sair daqui com esse tipo de roupa. Eu quero morrer!
Literalmente.
Como que eu vou entrar na sala de reuniões usando isso? E, para piorar, minha calça jeans é super justa. As camisas grandes e largas escondiam isso, mas agora, todas as curvas do meu corpo estão expostas. Não que eu tenha muitas, mas não costumo exibir o pouco que tenho por aí.
— Melissa? — ela me chama de novo. Tenho vontade de chorar enquanto me encaro no espelho.
Eu poderia simplesmente fingir que estou doente e mandar uma mensagem para meu chefe, dizendo que não posso ir para a reunião. Mas isso não é algo legal a se fazer. Não quando Richard é um grande amigo e precisa de mim agora. E ainda tem o maldito sócio.
Ah meu Deus! O sócio!
Olho mais uma vez no espelho e ouço a porta se abrir e uma Gessy preocupada entrar.
— Ah, sua louca, custa responder? Achei que você tinha desmaiado aqui dentro — ela fala, de modo repreensivo. Eu ignoro seu tom e me viro de frente para ela.
— Nossa, você tem seios! — ela afirma de modo brincalhão, enquanto analisa aquela camisa grudada no meu corpo.
— É claro que eu tenho seios!
Ela sorri diante de minha afirmação indignada e abre a boca para falar algo, mas antes disso, eu saio andando e passo por ela rapidamente.
Meus quinze minutos de atraso se transformaram em meia hora. E agora, eu tenho que encarar todos, a equipe, meu chefe e o tal sócio, usando isto.
Assim que chego em frente à porta, respiro fundo e lentamente abro a mesma. Percebo Richard em pé enquanto fala com os demais que estão sentados ao redor da enorme mesa redonda. Eu não corro meus olhos pelo local porque estou me sentido mortalmente envergonhada pelas minhas vestes. Foco meu olhar apenas em Richard. Mas assim que ele me vê entrando na sala, para de falar e me olha com uma expressão de surpresa.
Tem como ficar pior?
Abaixo minha cabeça e ajeito meus óculos com o dedo indicador em um movimento involuntário. Sinto os olhares de todos naquela sala em minha direção. Deus, eu queria ter o poder de ficar invisível agora.
— Me... lissa? — Ouço a voz de Richard e olho para ele novamente.
Ah, caramba... poderia olhar para meu rosto?
Pergunto mentalmente quando o vejo olhando para meus seios e, posteriormente, meu corpo.
— Desculpe o atraso, tive um imprevisto — falo e ando rapidamente até meu assento, que fica próximo a Richard. Ele pigarreia e volta a falar com os demais ali presentes.
Não fique vermelha, não fique vermelha... recito para mim mesma. Sinto que há alguém olhando para mim, mas foco minha visão apenas em Richard. Estou mortificada. Tudo que eu queria era minha camisa larga e grande que não mostre tanto meu corpo como essa daqui está mostrando. Mas pelo jeito, terei que passar o dia recebendo esses olhares de surpresa em minha direção.
E o pior é que estou intrigada com o ser humano que me fez tomar um banho de capuchino. Será que foi só uma coincidência? Não poderia ser ele.
Poderia?
— Melissa!
Quero dizer, ele está em outro país, bem longe daqui. Não faz ideia para onde me mudei. Ele se casou e, até onde eu soube, ele ia cuidar da empresa de seu pai. Então, não tem como alguém que cuida de uma empresa de arquitetura vir parar em uma empresa de jogos. Pelo menos, eu acredito e peço a Deus que não.
Devo está ficando louca, isso sim.
— MELISSA! — Dou um pulo da cadeira quando ouço Richard gritar meu nome.
Merda...! Onde estou com a cabeça? Nem ouvi o que ele falou desde que me sentei aqui.
— Desculpe, o que você disse? — pergunto, demonstrando o quanto estou perdida. Ouço algumas risadinhas ecoando pela sala e Richard solta um suspiro antes de voltar a falar.
— Você é a única entre os funcionários aqui dessa sala que conhece bem todos os setores da empresa. Seria pedir muito para você mostrar tudo ao nosso novo sócio?
— Claro que não, chefe — respondo simplesmente, me sentindo ainda mais envergonhada.
— Então, te apresento nosso novo sócio, Thomas Mello. — E quando ele fala, sinto como se tivesse acabado de mergulhar em um pesadelo. O ar some de meus pulmões e sinto meu corpo tenso da cabeça aos pés.
Lentamente, me viro na cadeira e olho para a direção que Richard aponta: e lá está ele, me olhando atentamente.
Puta merda!
Não acredito.
Ele? Tinha que ser ele?!?
O sorriso dele se amplia assim que meu olhar encontra o seu, um maldito sorriso que faz meu coração acelerar a ponto de me fazer pensar que terei um ataque cardíaco a qualquer momento. Agora ele tem uma barba por fazer, o cabelo penteado e o rosto com o maxilar mais marcado do que eu me lembro. E usa uma camiseta cinza que deixa os músculos em evidência. Suas vestes são informais, e agora, tenho certeza absoluta que foi ele quem esbarrou em mim.
Ele é o novo sócio?!?
Agora, definitivamente, eu preferia algum riquinho metido a besta usando terno e gravata.
Mas não, eu não tenho sorte.
Ele, em sua expressão totalmente relaxada, parece me analisar bem. Não sei quanto tempo ficamos ali nos olhando atentamente. Então, percebo que a sala ficou totalmente vazia e só sobrou nós dois.
Em algum momento, meu chefe encerrou a reunião, porém, eu não me dei conta disso. Não quando meus olhos se recusam a acreditar no que estão vendo. Isso só pode ser castigo.
Devo ter feito algo muito ruim em alguma vida passada e agora estou recebendo a punição pelo meu erro. Não que eu acredite nisso, mas é a única explicação plausível.
Contudo, eu jamais poderia imaginar que ele pudesse ficar ainda mais bonito. Pena que, por baixo dessa aparência bela, o conteúdo é uma negação. Ele é como um livro cujo a capa é uma perfeição, mas o conteúdo é uma história cheia de erros e falta de coerência; algo frustrante de se ler já no primeiro capítulo.
— Melissa Vasconcellos, há quanto tempo — ele fala em português, com aquela voz que agora está mais grossa do que eu me lembrava, chega a ser intimidadora.
— Pois é, quem diria — digo, dando um sorriso forçado. Preciso parecer normal, embora por dentro, eu esteja surtando.
— Gostei da camisa — ele fala com um sorriso presunçoso e tenho vontade de socar a cara dele. Eu faria isso, se tivesse certeza que minha mão não doeria.
E, claro, se agressão não fosse crime.
Seu modo de agir está muito estranho. Não deveria sorrir para mim assim, dada a situação como tudo terminou há quinze anos atrás. Mas é o que ele está fazendo, sorrindo como se estivesse feliz em me ver. O que só piora minha fúria.
— É emprestada. Um idiota me fez molhar a que eu usava, então, tive que trocar — respondo, de modo seco.
— Hum! Agradeça ao idiota então. Graças a ele, descobri que seus peitos cresceram.
Eu não ouvi isso, ouvi? Ele sorri vitorioso pela expressão de indignação que tenho certeza que mostro.
Ah, filho da mãe!
— Assim como sua capacidade de ser um babaca! — Após meu insulto, ele apenas dá de ombros. Eu quero muito bater nele. E olha que não sou a favor de agressões físicas.
O que ele pensa que está fazendo?
— E, além do mais, você ficou horroroso com essa barba. Isso é o quê? Uma tentativa de parecer um terrorista? — indago, sem conseguir conter a raiva que estou sentindo. Ele se recosta na cadeira e cruza os braços, antes me lançar um sorriso de lado.
Por Deus, homem, não me dê esse sorriso quando quero matar você só pelo fato de você existir.
— Já vi que vai ser interessante trabalhar lado a lado com você. Sua personalidade não mudou muita coisa. Ainda julga as pessoas sem dar a elas a chance de se defenderem.
— Até onde sei, eu só tenho que te mostrar a empresa — falo, ignorando seu comentário, e ele me olha em diversão.
— Mas não lembrava de você ser tão desatenta. No que estava pensando, Mel? Você não ouviu quando Richard anunciou que eu serei o novo designer de jogos? Que trabalharei lado a lado com a melhor programadora de jogos que ele tem? Acredito que a “melhor” seja você, não? — ele indaga, de modo debochado, fazendo um sinal de aspas com os dedos ao pronunciar a palavra melhor.
Cadê os objetos pontiagudos nessa hora? Ou pesados, mas que dê para lançar na cabeça dele e fazê-lo desmaiar? Por favor, Deus, que isso seja um pesadelo, não posso trabalhar lado a lado com esse cara. Não depois de tudo.
— Isso não... — Fico sem reação. Meus pensamentos estão desorientados; algo entre raiva e desespero.
Tento focar minha atenção em apenas uma parte de sua fala, que me irritou mais do que todo o restante.
Mel? Quem ele pensa que é para me chamar assim. Me levanto rápido, fazendo a cadeira cair, e ele me olha surpreso. Respiro fundo e me curvo sobre a mesa para encará-lo nos olhos.
— Melissa para você, seu cretino. E prefiro pedir demissão a ter que trabalhar com você... seu... seu idiota de uma figa! E se quer conhecer a empresa, se vira! Não vou sair andando por aí com alguém tão desprezível! E fique bem longe de mim enquanto estiver nesse país! — ordeno, exalando fúria. Percebo ele trincar o maxilar e vejo alguma mágoa em seu olhar, porém, ignoro qualquer sentimento que isso me causa. Eu preciso e quero sentir apenas raiva, então, sem mais palavras, saio batendo a porta.
Ando a passos largos até a porta de Richard enquanto assimilo que isso realmente está acontecendo. Isso coloca muita coisa em risco, inclusive, minha sanidade mental. As memórias vêm com força.
Eu o esqueci. Eu sei que esqueci qualquer sentimento bom que tinha por ele. Mas a presença dele aqui ainda complica as coisas.
Assim que chego em frente à porta da sala do meu chefe, eu entro sem bater, mas me arrependo amargamente ao ver o que acontece lá dentro.
— Que droga, Richard.
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