"–Lolla, se esconda! – Papa grita comigo.
Corro, corro o mais rápido que consigo, mas minhas pernas são pequenas e eu não posso ir tão longe.
–Pequeña, venga! – Mamá me coloca dentro de um roupeiro e me manda ficar em silêncio.
Respiro fundo, o mais fundo que consigo, me distraio com as roupas coloridas aqui dentro... Mamá tem roupas tão bonitas!
Boom! Eu me assusto com o barulho e cubro a boca com as pequenas mãos. Boom! Um grito de mamá, muito, muito alto e agora shhhh.... O silêncio."
*******
–Que cara é essa, Eloísa? – Hector me pergunta assim que saio do meu quarto.
–Advinha? – Lanço meu olhar mais raivoso pra ele.
–O mesmo pesadelo com Papa e Mamá? –O olhar dele enternece.
–Sim. Já não aguento mais.
–Eu não imagino pelo que você passou, era tão "pequeña"... Eu devia estar lá para protegê-la. –Ele se levanta do sofá e me abraça.
–Chega irmão. Eu não preciso de mais drama, está bem? –Me desvencilho do abraço e beijo o rosto dele. –Vou me preparar para o trabalho, quer um café?
–Com certeza.
Todas as noites, com raríssimas excessões eu sonho com meus pais, morávamos no México, onde nasci, meu pai era Norueguês e mamãe mexicana das bravas, com essa miscigenação maluca nasceu Hector Flores Moe, meu irmão e Eloísa Flores Moe, que sou eu. Nossa vida no México era simples e muito feliz, não tínhamos falta de nada, mas também não éramos ricos. Meus pais sempre foram rígidos e também carinhosos, papai era bem mais doce e alegre, mamãe era mais durona, mas tinha seus momentos de ternura. Eu odeio me lembrar do que aconteceu naquele fatídico dia em que perdi meus pais e assisti a tudo pelas frestas do guarda roupas... Não, eu definitivamente não quero me lembrar disso agora.
Diante do espelho pronta para o trabalho, depois de um café da manhã na companhia do meu irmão, me analiso por alguns segundos. Olhos azuis com um pouco de rímel, pele branca com base de cobertura leve e blush coral, um batom nude delicado nos lábios carnudos, para trabalhar na lanchonete, isso serve.
Dirijo até Loop, o centro de Chicago- Illinois, onde fica localizada a lanchonete que trabalho, daqui irei para a faculdade e depois para a maldita boate Rainbow, onde mais uma vez irei trabalhar. Hector sempre me repreende por trabalhar nessa boate, mas embora eu tenha muitos problemas com os homens de lá, sou grata pelo salário cobrir a mensalidade da minha faculdade de medicina. Era o sonho do meu papa que eu me tornasse médica e o sonho da mamá que fosse cantora, de certa forma estou realizando os dois.
–Bom dia, Eloísa. –Sr Clover, meu chefe, cumprimenta.
–Bom dia, Senhor.
Prendo o cabelo e visto o boné com o logo da Food Happy e me posiciono atrás do balcão à espera dos primeiros clientes.
–Amiga, você não vai acreditar! –Debby se inclina à minha frente.
–Eu acredito em tudo o que vem de você. –Sorrio.
Debby é minha melhor amiga, nos conhecemos aqui mesmo, nesta lanchonete há três anos atrás quando começamos a trabalhar juntas. Ouço ela tagarelar sem parar sobre um rapaz bonito que chegou assim que eu saí e que como ela diz "potencialmente seria meu namorado".
–Como você pode saber disso? –Arqueio as sobrancelhas.
–Vocês iam ficar lindos juntos. Se ele vier outra vez, vou pegar o telefone dele. –Debby pisca.
–Eu não preciso de um namorado, Débora. Preciso de dinheiro. –Reclamo.
–Você precisa de uma rola! –Ela sussurra. –Já passou da hora de perder a virgindade.
–Você é maluca! – Rio e me dirijo aos primeiros clientes.
Trabalho na Food Happy há quase quatro anos e não tenho do que reclamar, sempre fui bem tratada, tenho boas gorjetas e os patrões são uns amores, mas o salário jamais seria suficiente para pagar todas as minhas contas. Debby pega no meu pé por não sair para namorar e por ser virgem aos vinte anos, mas que tempo eu tenho para isso? Desde que saí do ensino médio trabalho para pagar a faculdade e ajudar Hector com o aluguel e demais despesas. São ossos do ofício... Um namoro é tudo o que não preciso neste momento.
O dia voa e logo estou saindo da lanchonete para a faculdade, por sorte temos um quartinho onde podemos tomar banho e nos trocar, meus chefes pensaram em tudo. Em poucos minutos estarei na DePaul University.
–Hola, pequena Eloísa. –Brad envolve meus ombros com o braço esquerdo e caminha ao meu lado.
–O que você quer, garoto? –Reviro os olhos.
–Quero sair com você. –Ele sorri com dentes brancos perfeitos.
–E quantos nãos a mais tenho que dizer à você? –Não resisto e acabo rindo.
–Sabe que nunca vou desistir, miss México! –Ele beija meu rosto e sai em direção a sua sala.
Brad é um amor, me faz rir quando tenta falar minha língua, está sempre de bom humor e sempre disposto à me tirar do sério, mas eu não vou sair com ele, embora seja também muito bonito, eu não tenho tempo para relacionamentos.
A semana de provas está a todo vapor e depois de três muito difíceis, estou finalmente saindo daqui para a boate, segundo round de trabalho.
No camarim, assumo minha versão vadia, vestido colado e curto, preto de paetê, batom vermelho sanguë e olhos maquiados com sombra, delineado preto e cílios postiços. Modelo meu cabelo com baby liss para deixá-lo volumoso e ondulado... Pronta para a performance. Meu repertório de hoje inclui "I Put Spell On You", "Dangerous Woman" e outras canções tão ou mais sexys que estas.
–Lolla! -O assistente de palco me chama. –Está pronta?
–Sim, estou!
Hora de deixar a Eloísa para trás e me tornar quem sou quando estou aqui... Lolla!
Caille
–"I Put Spell On You, Because you're mine." (Eu coloquei um feitiço em você, porque você é meu)
Pelo céus, que mulher é essa e que voz é essa? Enquanto canta uma das minhas músicas favoritas, obviamente a versão de Nina Simone, embora Annie Lennox tenha feito um bom trabalho com essa versão, a garota loira de olhos marcados me encara profundamente, é como se o azul dos olhos dela fossem um gigantesco oceano onde eu facilmente me perderia.
Fazem quatro anos desde que me mudei para Chicago. Ao longo dos seis anos que vivi em Nova York perto da família de Tyler, o homem que me adotou, aprendi muita coisa, culinária, etiqueta, línguas, diversos tipos de luta e formas de atirar com qualquer arma possível, conheci o mundo da máfia de perto e desertei, já não bastaram as heranças de dívidas com gangues e agiotas que meu irmão me deixou, o desgraçadø sumiu sem deixar nenhuma pista... Além disso, foram duas faculdades em seis anos e diversos cursos em todas as áreas financeiras e administrativas para que eu finalmente pudesse abrir minha holding e me tornar CEO e dono do meu próprio mundo. Tyler me emprestou três milhões de dólares para que eu pudesse iniciar esse sonho e em um ano e meio eu pude devolver o valor com juros, embora ele não tenha aceitado. A CM's Holding existe pelo mesmo tempo em que moro aqui em Chicago e já é uma empresa bilionária, com ações e empreendimentos por todo o mundo. No entanto, aqui estou eu... Solitário nessa cidade gigantesca, com um único amigo fiel e diversas mulheres interessadas apenas no meu dinheiro, sozinho numa boate super cara e de olho na performática cantora loura na minha frente.
–Quem é a garota? – Pergunto para o barman.
–A cantora? –Ele volta o olhar à ela. –Se chama Lolla, latina, sexy e muito, muito brava.
Tomo minha cerveja e meus olhos não desgrudam da moça, parece nova e inocente, mesmo debaixo de toda aquela maquiagem e do vestido curto. A voz é suave e rouca, como uma sereia. As curvas bem delineadas se mexem conforme o ritmo em uma dança lenta e sensual... É, essa garota mexeu comigo.
– Acha que eu teria uma chance se falasse com ela? – Volto a questionar o barman.
–Sinceramente? Não. –Ele ri. –Você é até bonito, não me leve a mal, mas não seria o primeiro à quem ela recusa. Na verdade, nunca a vi sair com ninguém.
É, eu me considero um homem bonito, mas isso não é importante... Ou será que é? A personalidade não conta muito mais? Meus funcionários me acham durão, grosso, implacável e metido, eu já os ouvi falar nas minhas costas, mas não ligo. Não foi fácil chegar onde cheguei, demandou muita dedicação e tempo, dores de cabeça e noites mal dormidas, broncas de Tyler e notas exemplares. Então hoje eu tenho razões para me achar bonito, pois invisto muito na minha imagem, inteligente, já que também investi demais em conhecimento e podre de rico em consequência disso.
Ao fim das inúmeras canções a garota se dirige ao bar e se senta numa cadeira próxima a mim, pede um coca cola e bebe distraída, decido me aproximar.
–Bela voz, parabéns.
–Obrigada. –Ela sequer olha pra mim.
–Lolla, não é?
–Sim. –De novo ela continua olhando pra frente, me evitando.
–Me chamo Caille, prazer. –Estendo a mão e sorrio.
–Ouça, Caille... Eu já passei por isso muitas e muita vezes, então para não desperdiçar seu tempo ou o meu, eu vou direto ao assunto: Não vou sair com você e eu não aceito dinheiro em troca de sexo. Tenha uma boa noite. –Ela pega a coca e simplesmente sai.
Por essa eu não esperava, não sei se rio ou se choro... O barman ri e me oferece um whisky que aceito de bom grado, acabo rindo também. Okay, tentarei ser empático, a garota deve receber inúmeras ofertas ilícitas já que trabalha numa boate carregada de garotas de programa e homens que se acham donos de tudo e controladores do universo. Mas eu vou voltar aqui mais vezes e encontrarei alguma forma de pelo menos conversar com ela.
–Eu disse ao senhor. –O barman se escora no balcão à minha frente. –Eu já vi isso tantas vezes que nem me surpreende.
–A garota é uma fera, eu só queria conversar.
–Ninguém quer só conversar com uma mulher daquela... –Ele pisca e sai para atender um casal.
Ele tem toda a razão, mas tudo começa com uma conversa, não é? Cavalheirismo, cortejo, romance... Sou um homem à moda antiga, a arte da conquista para mim é prazerosa e satisfatória.
Ao fim desta semana visitarei minha família, meu irmão Tyler e sua esposa Lucy, meus sobrinhos Grace, Hope e Elliot. Eles são minha fortaleza, conheci Tyler em ação quando estava pagando as dívidas do meu irmão e senti que poderia confiar nele, fui salvo duas vezes e na primeira oportunidade que tive entrei na frente de um tiro por ele... Até hoje eu tenho a cicatriz e ela me lembra de quão importante foi esse acontecimento e o tanto que minha vida mudou depois disso. Devo tudo ao Ty e sou grato por todo o carinho e acolhimento dos amigos e familiares dele. Ao fim dessa visita eu com certeza voltarei nesta boate com um ótimo plano em mente para conquistar essa garota, eu adoro um bom desafio, mulheres que se jogam aos meus pés não me interessam, o que me atrai de verdade é a indiferença e essa garota soube me tratar com uma indiferença ímpar...
Segunda feira e eu mal consigo me concentrar no trabalho, todas as vezes me pego pensando na loira com voz de sereia, na forma como ela pronunciava as palavras com seu sotaque latino, no movimento dos seus quadris enquanto performava, nos intensos olhos azuis me encarando.
–Samantha! –Grito da minha mesa.
–Sim, senhor! –A secretaria entra praticamente correndo em minha sala nos seus barulhentos saltos agulha.
–Me traga um café, muito forte e bem doce. –Resmungo.
Vejo a garota sair rebolando, Samantha é uma mulher muito sensual, mas sua forma grotesca de dar em cima de mim quebra todo o encanto, quando ela começou a trabalhar pra mim, confesso que fantasiei com aquele corpo debruçado sobre minha mesa diversas vezes, mas como é com todas as mulheres, logo eu perdi o interesse.
–Seu café, senhor. – Ela coloca a xícara sobre minha mesa.
–É só isso, obrigado. –Volto a atenção ao meu computador.
–Se me permite, Senhor Morgan... –Ela faz uma pausa e ergo meus olhos para seu rosto moreno. –Desculpe perguntar, mas aconteceu alguma coisa? O senhor está mais mal humorado que o normal.
–Aconteceu. –Suspiro. –Eu estou cheio de trabalho pra fazer e no entanto, estou sendo interrogado pela minha funcionária.
–Está certo. Me desculpe. –Ela abaixa a cabeça, constrangida.
Droga, quando foi que fiquei tão ranzinza? Talvez eu tenha aprendido com Tyler. Não... Tyler é ranzinza mas nunca tratou mal um funcionário, acho que tenho que aceitar que me tornei um filho da putä arrogante. Por sorte, nesse fim de semana irei visitar meu irmão adotivo à quem tanto estimo e voltar ao lar sempre me conecta com o meu melhor lado.
–Caille Morgan. –Atendo ao telefone da empresa.
–Tempo livre para o almoço? –Josh pergunta do outro lado da linha.
–É claro. –Respondo.
–Que tal irmos àquela lanchonete de novo? –Josh sugere.
–Não quero comer lanche, eu preciso de uma refeição decente e você também. É por minha conta.
–Te encontro em frente à sua empresa. –Ele desliga.
Josh é um ótimo amigo, o melhor amigo. Nos conhecemos no início da minha empresa, quando eu ainda alugava apenas uma pequena sala no alto deste prédio gigantesco, ele trabalha no prédio em frente e eu labutava dias e noites incessantemente, ele me via chegar todos as manhãs e quase nunca me via sair, até que um dia ele se compadeceu e entrou na minha sala com uma marmita quente e caseira, desde então nos tornamos excelentes amigos. Dessa época pra cá meu império cresceu exponencialmente e agora todo o prédio é meu, embora a minha sala continue sendo a mesma de sempre, só que agora reformada e moderna.
Hora do almoço e eu visto o paletó, pego o celular e entro no elevador em direção ao térreo, na rua em frente a fachada do meu prédio encontro Josh falando ao celular.
*Joshua Tisdalle*
–Querida, vou desligar. Caille chegou. Também te amo. –Ele encerra a ligação.
–Já estão no nível do "eu te amo"? –Pergunto irônico.
–Nós temos quase trinta anos Cai, precisamos resolver as nossas vidas, casar... –Ele diz, todo maduro.
–Fale por você. –Rio. –Vamos de carro, quero ir num restaurante aqui nas redondezas.
Pego meu carro no estacionamento e levo Josh comigo até o The Berghoff Restaurant. Eu adoro almoçar aqui, comida alemã, restaurante cinco estrelas e conceituado, por ser caro não vive lotado de pessoas e tem um tempero sensacional.
–Restaurante de luxo, Morgan? –Josh levanta uma sobrancelha pra mim.
–Qual o problema?
–Conheço você. –Ele sorri. –Você se cerca de luxos desnecessários quando tem algo ocupando demais a sua cabeça. Ande, me diga!
–Como você pode saber dessas coisas? –Digo enquanto abro os botões do paletó e me sento. –Tem realmente algo ocupando minha cabeça, ou melhor... alguém.
–Conheceu uma garota?
–Passou bem longe disso. –Coço o queixo com a barba por fazer. –Lembra que você me disse que eu deveria sair mais? Pois bem, eu fui numa boate na sexta feira e putä merda... A cantora daquele lugar é a mulher mais linda e intrigante que já vi na vida.
–Então, você conheceu uma garota?
–Eu tentei, mas ela foi bem grossa comigo.
–É sério? –Ele ri. –Caille Morgan levou um fora? Eu vivi pra ver isso. –Josh continua rindo de mim.
–Não teve tanta graça pra mim. –Resmungo, mas acabo rindo também. –A questão é que eu não consigo tirar ela da cabeça. A voz dela ainda ecoa nos meus ouvidos.
–Então você está apaixonado por uma cantora de boate? –Josh parece estar falando sério.
–Apaixonado? É claro que não! E qual o problema dela ser uma cantora de boate? Isso soou preconceituoso. –Refuto. –Acho que ela foi a primeira mulher em muito tempo que me deu um "não" na cara sem nenhuma piedade. Eu estou tão acostumado com as regalias de uma boa aparência e uma carteira recheada que me esqueci como era ser rejeitado.
–Era necessário. –Ele dá de ombros com ar de deboche.
–O que era necessário?
–Alguém que derrubasse você do seu pedestal de arrogância. –Josh pisca.
–A forma como você joga a verdade na minha cara é... Impiedosa. –Respondo e ele ri. –Enfim, ainda estou decidindo se volto lá. Você sabe que eu adoro um jogo de sedução.
–Pobre garota... Mal sabe o que a aguarda. Você vai visitar seu irmão Tyler neste fim de semana, pergunte a opinião dele.
–Tem razão. Vamos fazer o pedido?
Josh e eu almoçamos e conversamos sobre tudo sem tocar mais no assunto "cantora da boate", na verdade ele está bem empolgado com seu namoro e me conta alguns detalhes sobre os quais eu não preciso saber. Será que namorar é mesmo tão bom assim? Porque eu realmente não tenho nenhuma ambição para isso.
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