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Coração De Lobo

Capítulo 1- A chegada

...Lana...

A primeira coisa que sinto quando ponho os pés na calçada de Sitka, Alaska, é o vento frio agitando os meus cabelos. A travessia que me trouxe até aqui me deu tempo para reconsiderar a minha decisão, mas não foi o bastante. Não importa quanto possa parecer irracional voltar a esta cidade depois de tanto tempo, essa ideia não me abandonou desde que consegui lidar um pouco melhor com a dor.

Eu preciso da verdade. Preciso saber o que realmente aconteceu com Luke.

Suspiro, amarrando meus cabelos loiro-escuros em um rabo de cavalo. É verão, e o clima é ameno e fresco. Perfeito para passear de barco e ver as geleiras ou apenas fazer trilhas, que, a propósito, é o meu objetivo aqui. Por isso, aperto o passo para chegar na pousada que aluguei com antecedência, onde pretendo passar a noite antes de sair rumo à floresta.

Quando estou chamando um táxi, meu celular toca e posso ver o nome da minha ex-sogra brilhando na tela. Rejeito a ligação, não tendo coragem de falar com ela nesse momento. Não quando ela implorou para que eu desistisse dessa ideia louca de ir fazer trilha sozinha na montanha por dias, e eu soei como se fizesse pouco caso de seus sentimentos quando neguei de maneira bem seca.

Não é como se eu odiasse Samantha ou algo parecido. Pelo contrário, mesmo após eu deixar de ser sua nora, ela ainda continuou sendo minha única família viva, a pessoa que eu sempre recorria quando não conseguia mais bancar a forte, me sentia frágil e quebrada por dentro.

Por isso, desligo meu celular e torço para ela entender que não quero conversar agora. Não enquanto estiver aqui.

Balanço a cabeça, e com o canto do olho percebo a aproximação de um táxi. Aceno para ele, que para assim que me vê. Não perco tempo. Abro a porta e entro, logo passando o endereço a ele, que sai em disparada pelas ruas de Sitka, me deixando à mercê dos meus pensamentos traiçoeiros.

Pela janela, vejo a bela paisagem; o mar, os carros e as pessoas. Todos concentrados em seus próprios problemas, sem nem ligar que, nesta pacífica cidade, há dois anos, um incidente infeliz mudou a vida de muitas pessoas para sempre, inclusive a minha.

Mordo os lábios, não notando a chegada do táxi à pousada. Agradeço ao homem de meia-idade, lhe entrego o dinheiro e peço para ficar com o troco. Logo me apresso, com minha única mala na mão, rumo a entrada do edifício rústico à minha frente. Antes de atravessar a porta, encaro a fachada, admirada com a arquitetura rústica e sofisticada do lugar.

Passo os olhos pela pintura marrom clara e o telhado de um tom mais escuro, tudo tão lindo que, se não fosse a pressa em querer descansar, eu teria ficado horas ali, só admirando. Me contenho, no entanto, e aperto a alça da mala e não hesito em empurrar a porta com a minha outra mão.

Um cheiro de biscoito recém-saído do forno invade minhas narinas, me causando uma mistura de estranheza e nostalgia. Olho de um lado para outro, e vejo uma senhora de idade — que julgo ser a dona — oferecendo uma bandeja de guloseimas a um casal muito empenhado em recusar.

Meus lábios se curvam para cima. A lembrança de Samantha vem à mente, e eu a vejo assando biscoitos e Luke roubando alguns às escondidas, sempre levando bronca quando era pego no flagra. De súbito, sinto meu peito apertar ao imaginar a quantidade de vezes em que ela tentou falar comigo após eu desligar meu celular.

Sinto até meus olhos marejarem ao pensar em como eu adoraria me ver novamente naquela cozinha, sobre as broncas de Samantha e as risadas de Luke. Isso, sim, é minha definição perfeita de felicidade. De algo que se tornou inalcançável e impossível, apesar de tão desejado.

Bufo, frustrada com o rumo dos meus pensamentos. Esfrego meus olhos com minha mão esquerda, e me aproximo do balcão. A atenção do casal e da senhora logo se voltam para mim, o que me faz sorrir em um cumprimento meio desajeitado.

— Aqui é a pousada Pele de Lobo? — pergunto, mesmo já sabendo a resposta, e coloco minha mala no chão.

— Sim, senhorita — a senhora responde, sem esconder o sorriso que surge em seus lábios. — Eu conheço você. Já a vi antes.

— Perdão? — Arqueio uma sobrancelha, não entendendo como ela pode me conhecer.

Nunca estivesse em Sitka antes, nem mesmo para vir confirmar o… Bem, quando tive a infeliz chance de realizar este que era meu sonho da adolescência.

— Uma vez um moço veio aqui. Um rapaz alegre e brincalhão — ela conta, como se eu não tivesse dito nada. — Ele era alto e tinha cabelos pretos. Muito belo! Ficou por pouco tempo, mas me lembro bem do porta-retrato que ele deixava orgulhosamente sobre a cômoda de seu quarto. Uma foto dele e de uma jovem. Ela se parecia muito com você.

Porque provavelmente sou eu, meu celebro responde, agora me repreendendo por escolher a mesma pousada que Luke ficou quando veio aqui. Mas não havia muito a ser feito. Este era o lugar mais próximo e com melhor preço perto da trilha que irei me aventurar amanhã. Não tinha condições de ser outro. Infelizmente.

— Deve ser só uma coincidência — falo, com um sorriso trêmulo nos lábios. A senhora inclina a cabeça para o lado, e sinto a necessidade de mudar de assunto antes que ela comente justo sobre aquilo que eu não quero falar. Mas já é tarde demais. — Senhora…

— Não acho que seja — ela me interrompe. — Como poderia? Mesmo depois dele ter sido encontrado todo desfigurado na trilha, ainda tive muito tempo para ver com atenção o rosto da jovem que estava com ele na foto. Os dois pareciam…

De repente, a senhora se cala, finalmente percebendo a expressão amarga e chorosa em meu rosto. O casal, entendendo a gravidade do que ela havia falado, saem de fininho, e eu me sinto uma idiota por nunca conseguir controlar minhas expressões.

Abaixo minha cabeça, não conseguindo mais sustentar o olhar de pena dela ou de qualquer outra pessoa que pudesse ter ouvido suas palavras.

E é assim que meu segredo é revelado.

Sim. Luke, meu ex-noivo, não só foi morto há dois anos de uma forma misteriosa, como também aqui estou eu, decidida a conseguir respostas sobre o que aconteceu naquele fatídico dia. Algo que desejo acima de tudo, e sinto que preciso para poder finalmente seguir em frente.

De uma vez por todas.

Capítulo 2 - O passado

...Lana...

Meu nome é Lana Lynch. Nasci em Massachusetts, Ohio, mas morei no Oregon pela maior parte da minha infância, adolescência e vida adulta. Foi lá que conheci Luke, na faculdade. Ele fazia teatro, sonhava em apresentar musicais e, quem sabe um dia, atuar em Hollywood.

Ele tinha um jeito engraçado de ver a vida, de me provocar e me fazer acreditar que tudo era possível, que tudo era uma questão de tempo. Mas, infelizmente, esse "tudo" saiu dos trilhos quando ele decidiu ser hora de dar um passo adiante no nosso relacionamento. Que, ao invés de fazer um pedido comum, iria realizar um dos meus sonhos no processo.

Se ele tivesse feito diferente, me pergunto se ele ainda estaria vivo, ao meu lado, comemorando o sucesso de alguma peça aleatória que participou enquanto pensava em doar parte do dinheiro ganho com isso para um abrigo florestal.

Luke era assim. Ele amava a natureza, se aventurar nos palcos ou em trilhas perigosas. Esse último era um detalhe que tínhamos em comum, e foi lá que ele planejou com tanto esmero me pedir em casamento.

Como eu sei disso, você deve estar se perguntando? Samantha, é claro, não conseguiu segurar a língua e me contou todos os detalhes uma semana antes do pedido. Ela disse ser para me preparar, ao passo que também queria expressar sua preocupação em relação à decisão que Luke tomara.

Quem diria que no fim seus receios estavam corretos. Que meu amado Luke não voltaria para casa vivo — e inteiro — e que eu cairia em um abismo fundo demais para sequer poder tocar no nome dele sem me derramar em lágrimas por quase dois anos inteiros.

Naquela sexta-feira tranquila, um dia antes da minha viagem até Sitka, tudo parecia calmo demais, parado demais. Samantha me mostrava as fotos do par de aliança que Luke me daria — e que eu nunca teria a chance de ver pessoalmente, uma vez que elas nunca foram encontradas com ele após sua morte.

Ela era linda, embora simples. Era folheada a ouro e tinha nossas iniciais gravadas em seu interior. A minha, em especial, possuía umas pedrinhas pequeninas nas laterais. Mesmo que eu soubesse que aquilo não era diamante ou algo parecido, para mim era a coisa mais preciosa do mundo. Era algo que Luke ia me dar, e não precisava ser dito mais nada para justificar minhas palavras. Bastava ser algo dele, dado por ele, e era o suficiente.

Sorrio de forma triste, e encaro o teto acima da minha cabeça. Na tela do meu celular, vejo com o canto do olho que já são onze da noite e nada do meu sono vir. Desde que tudo aconteceu, não consigo mais dormir como antigamente. Preciso e tomo remédios para isso, algo que me deixa na maioria das vezes muito sonolenta.

Dessa vez, no entanto, me recuso a recorrer a essas drogas disfarçadas. Amanhã precisarei estar alerta, e beber esses remédios só me deixariam o oposto disso. E eu não quero, acima de tudo.

Solto um pequeno chiado pela boca, e me levanto para caminhar até a janela. Através do vidro, vejo uma paisagem linda lá fora, contrastando com o embrulho no estômago e o aberto crescente que sinto em meu peito.

Eu não quero me sentir assim, mas é inevitável. Estou a poucas horas de visitar o lugar onde meu noivo foi encontrado morto, em busca de respostas que eu nem sei se conseguirei achar.

Luke morreu de um jeito brutal. Na época, todos falaram que foi um ataque de urso, comum nesta região. Mas o jeito, até o cenário em volta relatado pela pessoa que o encontrou, não parecia sustentar essa teoria. Tirando a cena do crime, tudo estava limpo demais, intocado demais.

Não poderia um carnívoro de mais de duzentos quilos não ter deixado pelos pelo caminho, marcas e galhos quebrados nas árvores ou qualquer outra coisa que um animal desse porte poderia deixar. Os investigadores não encontraram nada disso, o que levou a teoria de que poderia ter sido um ou mais lobos. Mas, novamente, que animal que não deixa rastros?

Era impossível, isso não parecia se encaixar de jeito nenhum em minha cabeça, mesmo dois anos depois. E por isso estou aqui. Quero tentar compreender o que houve, descobrir se há algo que deixaram passar nisso tudo e, acima de tudo, entender que preciso seguir em frente.

Não é uma tarefa fácil ao ter seu coração apegado a memórias, a pequenos momentos e atitudes que fizeram toda a diferença. Eu ainda o amo. É inegável. Depois de sua morte, não fui capaz de me relacionar de forma emocional com ninguém, embora houvesse, sim, um ou outro com que transei.

Foram casos de uma noite tão fúteis que é perda de tempo relembrar.

Fecho os olhos, me permitindo sentir o vazio em meu peito. Busco no fundo das memórias os momentos com Luke e os sem ele, tentando entender se em algum momento aqueles dias de sexo casual que tive ajudou de alguma forma. A resposta que preenche a minha mente e me deixa um pouco grogue logo soa mais amarga do que pensei, acompanhada de um grande "não".

Não, aquilo só serviu para que eu tivesse certeza que era impossível amar novamente. Que era impossível acreditar que, no fim, poderei encontrar algo semelhante àquilo que tinha com Luke. A conexão, a felicidade.

Isso é algo do passado. Um passado que quero de volta — mesmo sendo impossível — e que me manterei apegada para sempre.

E está tudo bem assim.

Capítulo 3 - Reunião

...Gabriel...

O primeiro som que escuto quando coloco meus pés no centro da clareira é o barulho de uma discussão. As vozes alteradas — acompanhado de rosnados ferozes — ecoam por meus ouvidos, o que me faz me sentir tonto, muito mais do que eu gostaria de admitir.

Suspiro, sacudindo a cabeça. Todas às vezes em que eles se reúnem é assim. Parte da matilha deseja a todo custo provar que sou o melhor que eles poderiam ter, enquanto a outra — a menor e mais encrenqueira — só conseguem apontar erros em minhas decisões.

E às vezes me pergunto se eles não têm um pouco de razão.

As vozes cessam assim que surgo da mata fechada, restando apenas um sussurro ou outro, que nunca é baixo o suficiente para meus ouvidos apurados e sensíveis não conseguirem captar.

Mantenho minha expressão dura enquanto me dirijo até Anabel, a ômega responsável por tratar os feridos da nossa última disputa por poder. A três luas atrás, um dos alfas insatisfeitos por minha decisão de não deixá-los ir atrás de pistas sobre os desaparecimentos dos nossos companheiros nas redondezas, acompanhado de dois betas, tentaram inutilmente roubar meu posto como alfa supremo e líder.

Eles não tiveram chances. E, talvez, seja exatamente por isso que este burburinho tenha se formado.

— É incrível como vocês sempre conseguem fazer esse tipo de reunião pelas minhas costas — falo, com uma expressão sombria e irônica brilhando em meu rosto.

— Como descobriu? — um dos alfas presentes me questiona, parecendo surpreso por minha visita inesperada. Arqueou uma sobrancelha, e volto meus olhos para Anabel.

O que será que ela fez dessa vez para conseguir estar aqui sem ser considerada uma suspeita?, me questiono mentalmente, franzindo o cenho. 

— Imagino que não devo respostas a você, ou estou errado? — rosno, entredente. O alfa automaticamente se encolhe, o que me causa uma certa satisfação que não consigo colocar em palavras. — Eu sou seu líder. Nada que façam estará livre dos meus ouvidos e olhos.

— Você é só um convencido e egocêntrico — outro alfa fala, e dessa vez me lembro o nome: Martim. O fito com ainda mais intensidade do que fiz com o primeiro, e até chego a vê-lo vacilar, mesmo que por pouco tempo.

— E que alfa que não é? — retruco, com frieza, e saboreio quando vejo as veias de seu pescoço saltarem e sua pele ganhar um tom avermelhado.

— Ei, ei, ei! Fica frio, cara. Você não quer acabar como o Arthur, quer? — o primeiro alfa fala, sendo apoiado por um beta que estava ao seu lado. Contenho um sorriso maldoso, desejando profundamente poder quebrar a cara de cada um deles.

— Mas ele…

— Só sumam logo, e fiquem avisados: se eu encontrar com vocês aqui de novo, se reunindo debaixo de meu nariz, podem apostar que não acabará com apenas uma pequena repreensão. Juro que farei vocês desejarem nunca ter nascido — rosno, e eles recuam um passo. Nem pensam em retrucar, apenas se transformam e correm de volta para a vila, para bem longe de mim.

— Desse jeito você só irá criar mais inimigos, Gabriel — Anabel fala, o que me faz virar para olhá-la nos olhos.

Nós dois forçamos um sorriso.

— E que líder que não tem? — retruco, sentindo um embrulho se formar no meu estômago. Tento conter uma careta de desagrado ao ouvir como minha voz sai desleixada, e aproveito o momento para mudar de assunto antes que Anabel perceba: — Aliás, o que você fez para conseguir se infiltrar no meio deles sem ser considerada suspeita?

— Oh, querido, não há nada que uma mulher e ômega capaz de manipular não consiga fazer — ela diz, me fazendo pensar em mil e uma coisas, muitas bem desagradáveis, que fez para conseguir esse feito.

— Você não precisa me dar detalhes — adianto, fazendo uma careta.

— E quem disse que eu pretendia contar? Eu só…

— Tá, tá. Já chega disso — a interrompo, voltando meus olhos para a direção em que os outros haviam saído. — O que eles disseram?

— O de sempre. — Dá de ombros, me deixando perplexo.

— Anabel…

— Eu sei, não é isso que você quer ouvir — murmura, e solta um longo suspiro que só me deixa mais tenso. — Há um traidor, El. Só ainda não descobri quem é.

— Um traidor?

— Sim. É ele que está atiçando os outros. E algo me diz que tem dedo dele nos desaparecimentos recentes também.

— Merda — xingo, e não consigo evitar passar a mão pela minha cabeça. — Eu preciso investigar isso.

— Você vai — afirma, o que me faz erguer uma sobrancelha. — Amanhã mesmo irá até Sitka. Eu já avisei aos anciãos.

— E é nesse momento que eu sinto que é você a verdadeira líder — resmungo, em parte irritado por ela já ter tomado a decisão por mim. A outra parte, que não gosta de falar com os anciãos e detesta ter que me justificar, agradece com fervor.

— Fazer o que, né? Você não vive sem mim — Anabel graceja, me fazendo revirar os olhos. — Mas, admito, tá aí algo que não é uma má ideia.

— Convencida.

— Você não imagina o quanto.

Nós dois sorrimos, e dessa vez posso afirmar que não é nada forçado.

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