Numa sala com poltronas de couro e aquecida pela brasa estalante de uma lareira, pai e filho discutiam:
— Martino, isso não é uma proposta. É uma ordem. Sabe a diferença?
Don Salvatore era um homem velho e sério, que jamais era contrariado. Ele transpirava autoridade. O luto não era um sentimento incomum para ele, por isso sabia tomar decisões lúcidas mesmo coberto de tristeza. Pai de dois filhos, Martino e Giovani, precisava de pulso firme e paciência para lidar com o comportamento explosivo dos dois. Concluiu que era mais difícil ser pai do que mafioso.
— Luigi foi um dos meus homens mais fiéis e é meu dever honrá-lo após a morte. Além disso, como meu filho mais velho, é necessário que você se case e continue o legado da família.
— Pai, dentre tantas mulheres aqui, entre nós! Mulheres que conhecem o negócio da família. O senhor escolheu logo uma desconhecida para mim?
— Basta. Isso não é discutível. A minha escolha é certa. Prometi a Luigi que cuidaria da família dele. Um homem digno possui uma prole digna, a filha dele será sua esposa. Agora pegue o meu charuto e não falamos mais nisso.
Martino levantou-se e retirou um charuto da caixa, levou até a boca do seu pai e acendeu.
— Ciao. — ordenou Don Salvatore.
— Ciao. — respondeu Martino de má vontade.
Ajoelhou-se para beijar a mão de seu pai e saiu.
Ao sair para rua, Martino acendeu um cigarro. Nada o irritava mais profundamente do que ser contrariado.
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Na parte mais afastada e humilde da cidade, uma triste senhora costurava um véu branco. As suas mãos eram enrugadas e lentas. Seus olhos lacrimosos já não enxergavam como antes. Luigi era seu único filho. Desde muito novo teve que se tornar o provedor da casa e para isso começou a prestar serviços para Don Salvatore. Durante muitos anos fez o trabalho sujo, até que, infelizmente, o trabalho sujo o pegou. Célia não sabia se tinha valido a pena.
Ela ouviu quando a porta rangeu ao abrir. Era sua neta. Penélope beijou e abraçou sua avó. Havia acabado de chegar da feira onde vendia os tecidos que fabricavam manualmente. Tinha a pele bronzeada do sol e cabelos castanhos desgrenhados amarrados com um lenço.
— Penélope, querida. Il capo virá buscá-la hoje.
O rosto de Penélope encrespou-se de desgosto. Seus lábios carnudos formaram uma gruta, seus hipinotizantes olhos cinzas encheram-se de rancor.
— Não faz nem uma semana que o papai se foi. Isso… isso está rápido demais! Ele não gostaria de nada disso!
— Meu amor, isso é tudo que ele poderia querer. Sua querida filha casada com um Don. Não há maior honra para seu pai. Ele lutou muito para que nós vivêssemos com decência.
— Nonna, não é justo — implorou Penélope enquanto ajoelhava-se aos pés de sua avó.
— Justiça não tem a ver com o que queremos, mas com o que precisamos. Você está pronta, terá que ser corajosa.
As portas da velha casa estremeceram quando Penélope, aos prantos, saiu correndo para a rua.
Don Salvatore chegou à casa da enlutada antes do entardecer. Bateu apenas uma única vez na antiga porta, que se abriu quase como num passe de mágica para ele.
— Entre, senhor.
— Obrigado, Célia. Sinto muito por sua perda, novamente. Deus sabe que não é fácil perder um filho. Luigi era um irmão.
— Sei, sei.
— Bom, vamos ao que interessa: onde está a menina?
Célia sentou-se na cadeira de balanço.
— Fugiu para rua. Teremos que esperar.
— Ora, essa. Não posso ficar a noite toda esperando!
— Eu sei.
— E se ela não voltar?
A velha senhora não respondeu, voltou sua atenção para a costura. Resignado, Don Salvatore sentou-se para esperar. Se não fosse uma promessa, pensou. O sol levou embora as últimas horas do dia, a escuridão tomou conta do céu. A cena não mudou até que a porta voltou a se abrir. Penélope, em silêncio, ajoelhou-se para beijar a mão do Don, depois, abraçou a velha senhora que amava mais que qualquer outra coisa na terra. Então subiu as escadas para pegar suas coisas.
— Agradeço por confiar em mim, Célia. A senhora sabe que pode ir junto, uma família grande é uma família unida.
— O meu filho confiou em você primeiro, Don Salvatore. Eu apenas sigo o exemplo. Quanto a mim, Deus tirou meu único filho e agora cuidará da minha neta, a minha missão na terra está terminada. Não quero viver num mundo sem Luigi.
Don Salvatore assentiu. Penélope desceu as escadas com uma pequena mala e um saco. Beijou sua avó pela última vez e recebeu o véu de presente. Enfiou-o dentro do saco e seguiu Don Salvatore noite à dentro.
****************
Chegaram ao casarão tarde da noite. A mesa de jantar ainda estava posta. Penélope estava assustada com o quanto tudo aquilo era novo, mas sua avó pediu para ser corajosa.
— Está com fome, filha? Sente-se e coma.
— Não, obrigada, Don, eu… eu não estou com fome.
Era mentira. Nessa hora uma senhora formidável saiu por detrás das cortinas que separavam a copa da sala de descanso. Ticiana era esposa de Don Salvatore.
— O cheiro não é bom? Posso fazer algo que lhe agrade. — sugeriu.
— Aí está você. Aparece somente quando não esperamos, menina, se acostume. Ticiana, por favor, receba a ragazza.
Don Salvatore cumprimentou as duas e saiu, meia-noite para ele era como meio-dia. Ticiana olhou Penélope de cabeça aos pés e levantou as sobrancelhas. Era esbelta e dura. Os seus cabelos grisalhos estavam elegantemente presos num modesto coque. Seus olhos azuis eram capazes de gelar o inferno.
— Então, você é a filha do Luigi? Bom, espero que você não dê trabalho para nós. Muitas meninas pensam que fazer parte desta família é um sonho. Acho melhor que você deixe os sonhos pro travesseiro ou irá se arrepender de estar aqui. Porém, se você é forte e trabalhadora, viverá bem. Se for minha amiga, serei sua amiga. Acima de tudo, não minta para mim. Nem aja como se essa casa fosse antes sua do que minha.
Penélope oscilou.
— Sim, senhora.
— Ticiana, por favor. Agora vamos fazer algo para você comer, está muito abatida. Deve ser o luto.
— Não é necessário, eu estou be-
— Do que você gosta? Diga e farei.
— Comerei o que já está pronto, senhora.
Ticiana serviu um grande banquete. Depois levou Penélope até um quarto no segundo andar, onde ela dormiria.
— Descanse, querida. Amanhã é um grande e longo dia. Não se incomode com os sons lá de baixo ou não dormirá.
Quando se apagaram as luzes, Penélope ainda escutou os passos preocupados no andar de baixo. Não parou de pensar nos entes que havia perdido e no quão frios eram os que ficaram em seus lugares.
Martino havia passado o dia ocupado indo de um lado ao outro. Um carregamento de munições e bebidas deveria chegar aquela noite ao armazém. Para colaborar não sabia onde seu pai estava, ele havia saído de casa antes do pôr do sol e não voltara. Não que estivesse preocupado, mas seu pai inspirava confiança nos outros Dons e isso ajudaria a tornar o processo mais rápido. Não sendo possível, ele e seu irmão Giovani tiveram que visitar vários pontos da cidade a fim de planejar e preparar a rota do carregamento.
Dons mais velhos como seu pai quase nunca colaboravam se Don Salvatore não estivesse no comando. Para eles, Giovani não passava de um folião irresponsável e valentão, enquanto Martino era presunçoso e arrogante. Seus filhos precisam amadurecer, diziam para Don Salvatore, que concordava.
No entanto, nessa noite em especial, foram bem recebidos pelas famílias que visitaram. Parece que todos já sabiam do casamento. Martino foi recebido calorosamente pelos homens, que o abraçavam ou davam batidinhas em suas costas em sinal de empatia. As esposas efusivas teciam elogios à noiva que nem conheciam, enquanto as filhas cabisbaixas observavam emburradas.
Chegaram em casa durante a madrugada, Don Salvatore estava em seu escritório conversando com Ticiana.
— Buona notte! Pai, eu e Giovani conferimos a rota da entrega, está tudo certo.
Don Salvatore concordou com a cabeça.
— Muito bem. Porém, não é com isso que estou preocupado.
— Já sei. Aliás, todos parecem saber — respondeu Martino desolado.
— A sua noiva está dormindo no quarto de hóspedes. Quero que descanse, amanhã terá muito o que fazer, seu irmão pode terminar o serviço.
— Pai, não é para tanto... eu preciso estar lá hoje, Giovani não pode ir sozinho, o senhor o conhece...
— Se eu ganhasse dinheiro todas as vezes que você argumenta comigo estaríamos mais ricos.
— Ele está certo, Salvatore. Algo pode acontecer com Giovani — interveio Ticiana.
— Ele não é uma criança, não deve agir sob supervisão todo o tempo. Você não pode protegê-los deles mesmos, Tici. Se Martino teme tanto este casamento como faz parecer, é melhor enfrentá-lo e não evitá-lo fugindo para o trabalho.
— Não estou fugindo, pai.
— Então mostre-me! — gritou Don Salvatore, exaltado — Essa moça foi corajosa o suficiente para deixar sua avó e seus mortos para estar nesta casa. Não deixarei que ela se case com um ingrato. Mude sua atitude ou talvez seu irmão seja mais adequado para herdar este casamento e este negócio.
Os dois homens encararam-se com seriedade. Martino foi o primeiro a desviar o olhar. Beijou sua mãe e saiu do escritório.
Passou pela copa, onde Giovani devorava um prato de espaguete. Sua boca estava suja de molho.
— O velho está tranquilo? - perguntou.
— Igual um tiroteio. Você vai sozinho hoje, é melhor limpar essa cara.
— Espera! Sozinho? Onde você vai?
Mas Martino já tinha subido as escadas. Ao passar pelo corredor deteve-se na frente da porta do quarto de hóspedes. Encostou a cabeça na madeira e fechou os olhos. Não queria se casar, não agora. Não quando os negócios iam tão bem! Ainda mais com uma total estranha, que podia muito bem ser uma parva. Abriu vagarosamente a porta até que pudesse enxergar pela fresta. Estava escuro e ele só pôde constatar a silhueta de alguém deitado na cama. Nesse momento o peso no seu peito dissipou-se e o seu corpo formigou de curiosidade. Essa era sua noiva então? Fechou a porta e dirigiu-se para seu quarto. O novo sentimento não deixou que ele dormisse.
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