Observo as gotas de chuva batendo contra a janela, embaçando a visão das árvores, e não consigo evitar o sentimento de tédio que me acompanha fielmente nos últimos anos.

Acendo um incenso de lavanda e tomo um gole de chá, tentando escolher um livro da grande estante para ler. Um trovão reverbera do lado de fora, enviando arrepios pela minha espinha. Sempre tive medo de tempestades. Com o passar dos anos, o medo diminuiu, mas nunca desapareceu por completo.

Finalmente encontro o livro que estava procurando, mas antes que eu tenha tempo para abrir a primeira página, um uivo dolorido chega aos meus ouvidos. E a pontada no meu peito trás consigo a certeza de que estão cruzando um limite imposto muito tempo atrás.

Desço as escadarias com pressa, pegando minha capa de chuva antes de me lançar porta a fora em direção ao jardim. O som de uivos fica mais alto, soando como um lamento conforme me aproximo.

— Não sangre nas minhas flores.

Forço minha voz para ser ouvida acima dos outros sons, olhando com firmeza na direção do homem-lobo que tenta invadir minha propriedade. Ele está claramente ferido, com arranhões por todo o corpo. Mas seus rosnados passam uma mensagem clara: ele não veio pedir ajuda.

— Têm dois lobos meus na sua propriedade, feiticeira. - a voz grave e animalesca berra para mim do outro lado da cerca de rosas.

— Se eles estão na minha propriedade, isso significa que eu decido o que fazer com eles a partir de agora, Senhor Lobo. Agradeço pela gentileza de me avisar, agora deve ir embora.

— Não brinque comigo, bruxa!! Entregue esses traidores imediatamente. - Ele rosna em ameaça e dá um passo a frente.

— Se não o quê, Senhor Lobo? Vai romper a trégua que sua espécie têm comigo desde muito antes do seu nascimento, e arriscar a vida de todo o bando por causa do seu orgulho estúpido?

Fecho meus punhos sem desviar o olhar da criatura que me observa com olhos vermelhos brilhantes e furiosos. Minhas mãos e meus olhos brilham em resposta a minha irritação, assumindo um tom esverdeado. As plantas ao redor respondem imediatamente, se movendo como chicotes espinhosos na direção dos lobos que tentam invadir.

— É meu último aviso. Se ousarem se aproximar mais, minhas plantas vão estrangular todos sem nenhuma misericórdia.

As feras rosnam e uivam furiosamente, mas acabam por ir embora depois de alguns minutos, me deixando aparentemente sozinha no grande jardim em meio a tempestade.

Ouço as respirações pesadas perto de mim, no intervalo entre um trovão e outro. E me lembro dos dois lobos que disseram ter invadido minha propriedade.

— Devem estar realmente desesperados para entrarem no meu território dessa forma. - suspiro, indo em direção a porta de entrada do casarão. - Venham comigo, eles provavelmente vão ficar a espreita nos limites da roseira por algum tempo.

Abro a porta da casa e espero até a dupla de lobos mancar para dentro. Eles parecem ainda mais feridos e cansados do que eu imaginava. Assim que passam pela porta, os dois tombam sobre o carpete, retornando lentamente às suas formas humanas.

— Você... É a feiticeira... Heletria? - um dos rapazes questiona com dificuldades, me observando com olhos instáveis enquanto me movo pela sala em busca de ataduras e pasta de ervas.

— Sim, sou eu... É melhor descansarem por enquanto. Teremos tempo para conversas depois. - me ajoelho diante do garoto, examinando seus hematomas com cuidado. Parece ter algumas costelas quebradas e os arranhões em seus braços, pernas e abdômen são bem fundos.

— Você precisa... Libertar ele... Lady Heletria... - o outro rapaz murmura ao meu lado, seu peito chiando em cada respiração.

— Libertar quem? - olho para eles confusa, quando ambos apontam para a marca de pata em meu pescoço.

— O Deus Lobo... - eles dizem em uníssono.

Estou terminando de preparar o café da manhã quando os dois garotos descem as escadas, parecendo bem melhores do que quando os deixei noite passada.

— Lady Heletria... - o rapaz se curva quando me viro para ele, em uma reverência solene.

— Bom dia... Ah, não se curve diante de mim. Eu sou uma feiticeira, não uma deusa. - sorrio para o garoto, não escondendo que seu respeito me agrada.

— Bom dia, Lady Heletria. - o outro rapaz apenas acena para mim respeitosamente com a cabeça. - Obrigado por ter cuidado de nós essa noite, ficamos em débito com a senhorita.

Aceno com a mão, dispensando os agradecimentos e palavras gentis dos dois garotos. Eles se calam e se acomodam á mesa obedientemente. Á luz do dia, consigo dar uma olhada melhor nos dois. Eles são muito bonitos. Não parecem ter mais do que 22 anos e se me perguntassem, eu diria que são gêmeos.

Primeiro, temos Skoll, com sua postura descontraída e jovial. Ele parece um surfista de filme americano. Seus olhos são azuis e seus cabelos dourados como o trigo ao sol descem em ondas até seus ombros. Quando ele sorri, covinhas se formam em suas bochechas e têm um bronzeado permanente que o faz parecer uma cópia do deus Apolo. O que é quase irônico, uma vez que ele carrega o nome do lobo mitológico que persegue o Sol.

Então nós temos Hati, que carrega consigo uma forte aura opressora. Diferente do irmão, ele parece bem mais sério do que presumo que seja. Seus olhos são da cor da neve, com a pupila se destacando de forma a fazer com que pareça muito assustador. Seus cabelos são escuros como o céu noturno e descem em ondas até sua cintura. Porém seus traços e o tom de pele bronzeado confirmam que os dois são irmãos.

— Posso perguntar por quê vocês vieram buscar refúgio justo aqui? - observo os dois, que estão com as bochechas infladas por pães, parecendo famintos.

— Você... - Skoll aponta para a mancha visível no meu pescoço, falando de boca cheia. - Você é a emissária da Deusa Loba, não é?

— Não fala com ela de boca cheia, seu idiota! - Hati dá uma cotovelada no irmão, que geme de dor. Então volta sua atenção para mim. - Essa marca no seu pescoço, é a marca da Emissária de Lupa. Nós estamos procurando por você faz um tempão.

— Procurando por mim? - olho para Hati abismada. Faz muito tempo desde que ouvi falar sobre Lupa. E muito tempo desde que alguém procurou por mim.

— Sim, a aprendiz de Gullveig e emissária de Lupa. A humana que ousou roubar um fruto da árvore de Iduna e se tornou imortal... - Hati me olha com imenso respeito e admiração, querendo mostrar que conhece o meu passado. - Você é a única pessoa que pode nos ajudar a libertar Fenrir.

— Fenrir?! Vocês não podem estar falando sério!! - recuo instintivamente.

— Ele não é como dizem, tá legal! - Skoll bate na mesa, evitando olhar para mim. A frustração visível em seu comportamento.

— Nós precisamos dele para libertar a alcatéia. E precisamos de você também... - Hati olha nos meus olhos, como se enxergasse todos os meus temores. - Nosso povo está sofrendo, Heletria. Desde que aqueles lobos negros apareceram, nossas mulheres, parceiras, filhas e irmãs têm sido escravizadas e sofrido as piores barbaridades. Nossos irmãos presos. E você não faz idéia de quantos nós já perdemos tentando proteger os nossos.

— E o que vocês esperam que eu faça?... Eu gostaria de ajudar, é verdade. Mas os deuses ainda me odeiam profundamente por tudo o que eu fiz. E têm aquela coisa, a profecia... Völuspá, eu acho. - Jogo a cabeça para trás, tentando disfarçar minha apreensão. - A profecia diz que vai ter uma guerra e um monte de catástrofe quando Fenrir se libertar das correntes e...

— É tudo mentira! - Skoll me interrompe com firmeza na voz, seu olhar me atravessando com determinação. - Como feiticeira, você deveria saber! Os lobos negros que ameaçaram as völvas para espalharem aquela baboseira na forma de profecia.

— E com que finalidade eles fariam isso? - observo o loiro com curiosidade.

— Poder, é claro! - Hati me responde, bufando. - Fenrir é poderoso. E de acordo com as lendas do nosso povo, é ainda mais poderoso se estiver ao lado da Emissária Loba.

— Nós sentimos muito por atrapalhar sua existência longa e tediosa, Lady Heletria. - Skoll diz com irritação, se levantando da mesa exasperado. - Mas acredite em mim quando digo que não estaríamos aqui se houvesse uma outra maneira de fazer isso.

Com essas palavras, o garoto sai da casa, batendo a porta ao sair. Fico olhando para o lugar vazio á mesa que ele deixou, até o som de Hati limpando a garganta me trazer de volta.

— Desculpe pela atitude dele. Skoll é muito impulsivo e a tensão dos últimos dias não têm ajudado ele... - diante do meu silêncio, ele continua. - É por causa da parceira dele, Aesmir. Ela tá na mira do chefe dos lobos negros faz algum tempo, e ele está perdendo a paciência com ela.

— Entendo... Ele vai ficar bem? - indico a porta de entrada com a cabeça, enquanto me levanto para retirar as comidas da mesa.

— Eu não sei... - o moreno franze o cenho, se levantando para me ajudar. - Agora que todos sabem o que estamos planejando, Aesmir e todos os outros correm perigo...

— Vocês acham que essas garotas conseguiriam chegar até aqui? - Olho para ele determinada. Um plano começando a se formar na minha mente.

O último raio de sol desaparece entre as árvores, indicando que chegou o momento de agir. Deixo os gêmeos terminando de arrumar a cozinha após o jantar, por insistência deles, e corro para o santuário no porão da casa.

Faz uns bons anos desde que vim até esse lugar pela última vez. O porão permaneceu intocado desde então, e muitos dos meus objetos mágicos estão empoeirados. Uma emoção se apodera de mim. A mistura de nostalgia e ansiedade.

Respiro fundo, inalando o ar úmido mas ainda repleto de magia do santuário. Acendo algumas velas e incensos antes de começar a fazer uma pequena faxina pelo local, e em pouco tempo o ambiente parece outra vez com um local perfeito para realizar poderosas magias.

Troco minhas roupas cotidianas por uma túnica de linho branca, bordada com runas e sigilos mágicos, e amarro em volta da cintura um cordão repleto de contas metálicas com runas gravadas.

Quando termino meus preparativos e ritos, a sala está mergulhada em uma leve névoa com cheiro de ervas e eu já consigo sentir minha consciência se alterando levemente enquanto cantarolo uma antiga melodia que aprendi com Gullveig.

Meu corpo se movimenta pelo lugar em uma dança ritualística na qual mal tenho consciência dos meus movimentos, e não demora muito até que a visão venha até mim.

Em um piscar de olhos, eu estou em pé no meio da escuridão, cercada pelos rugidos e rosnados furiosos de uma fera. Eu corro aos tropeços na direção do som, caindo sobre meus joelhos depois de alguns passos. Ergo o olhar enquanto recupero o fôlego, sentindo uma energia opressora me envolver completamente.

Um par de orbes cor de sangue brilhantes surgem acima de mim, não muito longe. Determinada a não me deixar ser dominada pelo ódio que me cerca, aproximo minhas mãos e crio uma pequena esfera de luz branca, que ilumina levemente ao meu redor.

Levo alguns instantes para me adaptar a nova iluminação, e acabo paralisada quando percebo que as orbes vermelhas são na verdade os olhos de um grande lobo. Escuto o som pesado de sua respiração acelerada e ele rosna, expondo suas enormes presas, do tamanho de adagas, á minha pequena luz.

— Vá embora!! - uma voz grave, rouca e profunda ecoa de todos os lados, fazendo a escuridão ao meu redor e a esfera nas minhas mãos tremerem.

Pelo modo como o lobo dá um tranco na minha direção, parecendo ter sido puxado ou segurado por alguma coisa, acabo concluindo que a voz pertence a ele. Ainda assim, preciso reunir toda a minha coragem e concentração para não quebrar o transe e retornar ao santuário.

— Estou procurando Fenrir, o senhor dos lobos... - minha voz soa trêmula e não consigo nem olhar diretamente para ele, tamanha é a pressão de sua energia no ambiente.

— E quem é você que me procura? - ele para de rosnar, apenas me encarando com seus olhos furiosos, como se eu não fosse mais do que um inseto irritante.

— Heletria, a Emissária de Lupa... - aumento a luminosidade da esfera, para que ele possa me ver melhor e mostro a marca em meu pescoço, dando inconscientemente um passo em sua direção.

— Então é você...

O lobo fecha os olhos e um minuto de silêncio se segue, durante o qual a energia do ambiente muda e eu penso que vou sufocar. É então que eu vejo algo que não esperava ver. De repente, não estou mais diante de um lobo gigantesco, mas sim de um homem ferido.

Não fosse pelo mesmo olhar cheio de ódio, eu acharia que estava diante de outra criatura. Eu quase engasgo diante da visão do homem majestoso que me encara, caminhando nu em minha direção, com uma postura orgulhosa e energia selvagem.

Sua pele é escura como barras de chocolate, seu corpo musculoso e os cabelos longos e selvagens caem em tranças negras ao seu redor, presas com contas de runas prateadas nas pontas. Seus punhos estão envoltos por fitas brancas que desaparecem nas sombras, a chamada Gleipnir. Em seu peito, pernas e braços eu vejo inúmeras cicatrizes. Magnífico, e ao mesmo tempo intimidante e poderoso.

— O que quer comigo, Emissária de Lupa? - Ele para de frente para mim, a apenas alguns centímetros de distância. Suas iris vermelhas me encarando como se calculassem qual a melhor forma de me matar. Mesmo na ausência total de vestimentas, ele não parece nem um pouco constrangido diante do meu olhar.

— Eu estou entrando em contato a pedido de dois jovens lobos. Skoll e Hati... - ao mencionar os nomes, ele congela, parecendo chocado, o que me leva a explicar. - Eu sei que os nomes são familiares, mas não acho que sejam eles... A questão é que as alcatéias estão sofrendo por conta dos Lobos Negros, e precisam que você volte para liderá-los e retomar o que é seu.

O homem me olha com escárnio e desdém, abrindo um sorriso cruel para mim, com suas presas brilhando mesmo em sua forma "humana". Ele avança sobre mim, sendo contido a poucos centímetros do meu rosto pelas fitas em seus pulsos e tornozelos. Ele encara meus lábios por um instante antes de cruzar seu olhar com o meu, indecifrável.

— Você acreditaria seu eu te dissesse que não estou preso aqui porquê parece um jeito divertido de passar a eternidade? - ele rosna baixinho, sem se afastar um único centímetro de mim.

— Eu sei disso, é claro... - desvio meu olhar do dele, posicionando minha mão aberta sobre seu peito para empurra-lo de volta, mas ele não se mexe, apenas baixando o olhar para minha mão e erguendo uma sobrancelha para mim.

— Sabe, se te deixei desconfortável você poderia apenas ter dado alguns passos para trás... Você é realmente tão fraca a esse ponto, feiticeira? - outro ruído sai de sua garganta, e pelo jeito como seu peito vibra na minha mão, ele está rindo de mim.

— Não desvie do assunto!! - me afasto dele apressadamente, mas o calor e a sensação de sua pele permanecem, mesmo que este não seja o meu corpo verdadeiro. Respiro fundo e volto a encara-lo, determinada. - Eu posso te libertar.

— E porquê eu acreditaria em você?

— Porque eu consegui vir até aqui e falar com você. Se confiar em mim e me guiar com meu corpo verdadeiro até você, tem a minha palavra que irei te libertar.

Ele me analisa em silêncio por longos minutos, então volta a sua forma de lobo gigante e recua para longe da minha luz.

— Eu não posso confiar apenas nas suas palavras. Me procure novamente se quiser, de preferência com argumentos melhores... Eu já ouvi essas palavras antes, feiticeira. E como pode ver, eu ainda estou preso aqui.